15 novembro 2006

Au Bonheur des Dames 38

De favas, de amigos e da Coimbra de lavados ares

Eu, de vez em quando, irrito-me com a Coimbra actual que a ganância construtora tem desfeado irremediavelmente. Convenhamos que não são só os construtores. Ele há muito chico esperto camarário a ajudar nessa missa negra. Há momentos porém em que me arrependo, paro com as imprecações e pergunto aos meus botões se isto não será caturrice de velhadas, antigo estudante que não se revê no mundo novo e diferente que obrigatoriamente a cidade oferece. Educados na velha escola e temendo que eu os arranque num ataque de fúria, os botõezinhos lá me vão acalmando como podem. Que sim, a cidade está feia. Que não, que não estou velho, só um pouco usado. Que, de todo o modo, há mais gente e precisa de casas para viver. Que a morte de um par de cafés na velha baixa (e logo aqueles dois: o Arcádia e A Brasileira! ) foi serena, que já não tinham fregueses, que isto e que aquilo. Aceito entre duas rosnadelas, pouco convencido e lá me volta um pouco de cor às faces ao lembrar que ainda por lá vivem alguns amigos, antigos, antiquíssimos com quem basta um segundo para reatar conversas de há trinta, quarenta anos. Como se fosse hoje!
E foi mesmo isso que sucedeu há bem pouco tempo quando o CITAC e o seu primeiro cinquentenário reuniu uma alegre companha (eu escrevi companha, palavra honrada e que o Houaiss regista. Grupo de pessoas que viajam juntas, equipagem de um barco de pesca. Palavra, esta vai para o João Vasconcelos Costa, muito de Buarcos, terra marinheira e pescadora, meu berço adoptivo) de senhoras e cavalheiros da nossa melhor sociedade que na sua estouvada juventude se deram ao luxo de ser jograis, teatreiros, o que se queira chamar desde que se passe em cima de cinco tábuas, à luz dum projector e diante da respiração contida do público.
E é aqui que entra em funções o Zé Oliveira Barata, perdão o senhor professor doutor, por extenso, J. O. B., companheiro de tertúlias infindáveis, fino espírito que todavia apresenta dois defeitos de fabrico. À uma é do Sporting (coitado! É dos que andam pelo menos uma década à espreita de um título) e depois não come peixe. Beirão da Beira Baixa e interior parece que tem uma teoria: peixe não puxa carroça!
Fora isto, que é bastante, anda agora a escrever uma História do Teatro Universitário em Portugal. E à pala dessa louvável actividade temo-nos encontrado várias vezes. E descobrimos mesmo que além desse interesse comum pelo teatro somos ambos utilizadores de computadores apple. Utilizadores exclusivos! Com isto teremos já o céu meio ganho.
E é por aí que o gato vai às filhoses: o Zé é tu cá tu lá com uma malta óptima da apple em Coimbra, prontos a ensinar a um cafageste informático como eu todos os truques necessários à boa gestão de um computador aristocrático que tem o seu quê de diferente. E foi assim que entendi jornadear pela Coimbra dos lavados ares (sicut Eça) para equipar o meu material das mais modernas aquisições da ciência informática. Não vou maçar as escassas leitoras com o que disse a um espantado e educado técnico, que pelos vistos nunca vira um ignorante do meu jaez. O professor doutor sentado numa cadeira apreciava o espectáculo da minha ignorância informática com a mesma bonomia com que assiste ao contínuo espalhanço dos seus alunos nos apuros de um exame. Sorria embevecido e devia calcular a nota do chumbo que me ferraria se me apanhasse no seu rebanho.
E terá sido por isso, por esse momento de intenso gozo sádico, que depois me levou a casa para me dar de comer. E aqui entram as favas. Ou melhor primeiro entra um gato, provavelmente o verdadeiro dono da casa, que depois de me cheirar convenientemente me permitiu uma pequena carícia. Fui seguidamente apresentado a uma senhora, de seu nome Fernanda que é quem naquela casa se encarrega do chope-chope e demais tarefas domésticas.
A fada do lar, fada sim, mas do lar pouco, chegaria depois uivando de fome, como se fosse ela e não nós quem tivesse pacientemente esperado pela dona da casa para ver se se comia coisa de jeito. Agora sim, entram as favas.
Eu, ex-aluno (melhor diria: vítima) de execrandos colégios internos onde penei todos os pecados de, pelo menos, três vidas, ganhei uma ojeriza tremenda a vários alimentos que nesses locais era habito dar à rapaziada. E nessa lista as favas estavam, até hoje, num dos primeiros cinco lugares. Todavia, convém esclarecer que eu, perguntado sobre favas, disse corajosamente ao Zé que comia tudo. Como estou a tentar perder uns quilos consolei-me pensando que comeria pouquinho arguindo da imperiosa necessidade de perder peso, verdade visível para quem me conhece. Portanto, chegadas que foram as favas, servi-me cerimoniosamente e ofereci o sacrifício em pagamento de uns pecados não especificados (e que calarei convenientemente). Mas, a amizade, a Coimbra menina e moça, as mãos de fada da referida senhora de nome Fernanda, deram cabo desta minha boa intenção. Aquilo era óptimo. Estava de comer e chorar por mais. Por onde andei eu, todos estes anos a fugir das favas com seu ovo, seus enchidos, sua carninha, tudo rescendente, saboroso e bom? E agora? Quem me restitui as favas de trinta anos de abandono? Como é possível que um leitor exagerado de Eça tenha posto em causa, duvidado, abjurado mesmo, do Mestre que celebrou um arroz de favas comido de parceria com o Zé Fernandes?
O resto da jornada não precisa de ser descrito. Quando três amigos se encontram, quando a ternura está de quarto (como no bridge) que história se pode contar? A felicidade não tem história, é como o bom cheiro de alfazema na roupa posta de fresco na cama. Dorme-se melhor, com mais inocência e um bom sonho de permeio.
Vai esta descosida prosa para a Manuela Cruzeiro, fada do dito cujo lar e mãe do gato Simba e de mais três criaturas humanas, demasiado humanas, agradecendo almoço, livro e companhia. De um admirador literário e não só.

2 comentários:

JVC disse...

Achei engraçado eu ter um homónimo, ainda por cima do meu tempo de Coimbra e membro do CITAC, cujos espectáculos eu não perdia. Não dei então por isso.

M.C.R. disse...

JVC!