23 novembro 2006

farmácia de serviço especial/pintura


Na galeria degrau arte (Rª Afonso Lopes Vieira,186 -isto é no Foco e no Porto) está patente uma exposição de desenhos de Jorge Pinheiro nome grande da nossa pintura e um dos elementos do antigo grupo "os quatro vintes". De boa vontade mostraria aqui um dos desenhos mas ainda me não chegou à mão. O que, sim, já cá canta é o excelente texto da Professora Doutora Fátima Pombo que amavelmente me permitiu reproduzir. com dupla alegria o faço. À uma Fátima Pombo escreve para ser entendida o que é prodigioso num meio em que a cifra parece ser a regra. Depois porque Jorge Pinheiro é um dos mais singulares e honrados percursos artísticos desta terra devotada aos filisteus. Finalmente porque a pequena galeria onde a exposição se mostra tem, também ela, uma prática expositiva nos antípodas do habitual. Ele há invejosos que murmuram entre dentes que "aquela gente tem a mania da cultura". É verdade. Com a publicação do texto a farmácia de serviço paga esse enorme contributo e homenageia de uma penada Marta Cristina de Araujo, poetisa e directora da galeria. Podem ir lá visitar a exposição porque vale a pena e ninguém vos robda à espera de um sinal para vos propor in actu uma compra. Primeiro é para ver. Depois, querendo, els também vendem.
Já me esquecia: a exposição está patente todas as tarde de segunda a sexta. aproveitem!


Desenhos

Para Jorge Pinheiro o desenho é um instrumento de conhecimento do mundo; um conhecimento finito, lento, continuado em cada esboço, em cada fragmento. O desenho expressa a minúcia de um pensador sobre a consciência da metamorfose do corpo e da metamorfose da alma. A velhice é um dos seus temas. Algumas das figuras estão estendidas no leito de morte, parecendo esperar, pacientes, sem desafiar o destino. A delicadeza do traço na mancha do papel deixa vastos momentos de vazio, que ficam assim, dados à contemplação, entre a figura encolhida, à espera da sua vez, e o branco onde tudo poderia começar. Jorge Pinheiro desenha mãos, desenha rostos, desenha corpos, desenha os panos e os véus que os cobrem. Eu penso que o artista quer testemunhar o tempo e o seu poder de orquestrar o esvaimento. As figuras prostradas já estão docilmente dentro da noite serena. O poeta deseja a eternidade da luz e do incessante pulsar do frenesim do dia. Do not go gentle into that good night,/ Old age should burn and rave at close of day;/ Rage, rage against the dying of the light. [Dylan Thomas]. (Não entres docilmente nessa noite serena,/ porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;/odeia, odeia a luz que começa a morrer). [trad. de Fernando Guimarães]. Eu diria que Jorge Pinheiro sabe que a luz se apaga e que não se pode pedir emprestada a luz das estrelas; mas também sabe que essa luz pode renovar-se. Ao lado de mãos gastas, aparecem mãos lisas, de crianças, gerações entrelaçadas ao ritmo da luz e da escuridão, da rapidez e da lentidão, do antes e do depois, do fim e da esperança.
Jorge Pinheiro, na mesma folha, ensaia um inventário possível da tal consciência da metamorfose, propondo a contemplação do sagrado do pormenor discreto. A imensidão do particular na existência humana e no mundo é tão irrepetível que nunca está completa. Os desenhos são exaustivas notas de pensamento sobre o sangue e os nervos da vida. É nesse exercício do desconhecido que não se pode tocar um trilo duas vezes da mesma maneira, nem escrever a mesma frase duas vezes da mesma maneira, nem desenhar a mesma coisa duas vezes da mesma maneira. Na persistência de continuar a tentar o que é insondável no tempo de uma existência, o artista propõe a contemplação do silêncio que emana dos traços. Lembro-me de Vermeer que para retratar o silêncio, pinta instrumentos musicais em cenários domésticos, pertencentes a figuras femininas plácidas e introspectivas.
A metáfora do pão pode ser, talvez, a metáfora da continuação do ciclo da natureza, indiferente ao silêncio, à metamorfose, à velhice, à morte… como se o que contasse fosse sempre o futuro, o sentido que as coisas têm amanhã, o amor que se pode encontrar ainda. O pão é a prova da simplicidade nessa crença e a expressão do seu significado concreto. O pão está do lado dos que não querem renunciar à vida, dos que não querem enfrentar o Inverno como a derradeira estação da alma, sabendo que é a derradeira estação do corpo.
Jorge Pinheiro não abandona as interrogações fundamentais da existência. Tem, certamente, não longe de si, os mandamentos do Oráculo de Delfos, aqueles que confluem para o conhecimento, a começar pelo de si mesmo…, sabendo que nesse conhecimento a margem de erro, de desilusão, de engano é muito grande.
O enigma dos mandamentos persiste, anda de roda do artista e ele dedica-lhe o seu tempo e o seu génio. Observemos a série de desenhos das freiras. Fiquei muito tempo a olhar para esses desenhos. São intrigantes, insólitos, misteriosos. São inspiradores de uma reflexão metafísica, mas também de uma narrativa literária. A série remete-nos para a cultura judaico-cristã, mas o universo iconográfico é feminino e especificamente representado por freiras, eventualmente de clausura. Estão muitas emoções e muitos sentimentos concentrados nesses desenhos. O olhar do artista remete-se para a ambiguidade: relata cenas de uma via da paixão de inesperadas personagens, sem mostrar bem qual o investimento de ironia, ou de misericórdia que coloca nesse relato. Jorge Pinheiro apresenta a metamorfose da alma no registo do esquecimento do corpo, escondido no hábito religioso. É impossível não pensar nas confissões poéticas e nas experiências místicas de Santa Teresa d’Ávila, participadas ao mundo como o encontro íntimo do belo e da consolação.
Jorge Pinheiro que sabe desenhar a sensação de tristeza depois da canção terminar, parece também sugerir que a tristeza não é eterna. Esse é possivelmente o canto que relança os dias.


Fátima Pombo
Porto, Outono de 2006

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