21 dezembro 2006

Au Bonheur des Dames 43

De regresso a casa, à sombra das tamargueiras que já não são....

Começo a estar velho para este bulício todo, para a confusão das últimas compras, para as malas que se têm de fazer, enfim um saco, também não é assim tanta coisa, por quatro ou cinco dias no máximo. Dantes, sim, dantes ia-se com tempo para essa velha casa de família, para estar com todos com os vagares que convêm ao inverno, às longas noites de lareira, o frio lá fora e um luar de pasmar mortos e vivos, como se subitamente regressássemos a um tempo mais puro, mais inocente, mais próximo desses outros povos que a estultícia ocidental ousou chamar primitivos, como se o cultos do antepassados fosse menos digno do que outros mais modernos e mais distantes do que somos, do que vimos e para onde vamos. A velha polis grega só começou a sê-lo verdadeiramente quando houve a consciência de um espaço habitado por gente que rendia preito aos mesmos deuses e aos mesmos antepassados comuns. O resto, irmãos, companheiros e amigos, é paleio de encher, auto-engano, renúncia ao que somos.
E nesta chamada aos que foram estou a incluir um par de serviçais velhas que faziam parte da família, mais do que muito familiar. No caso em apreço, o nosso, est(ar)ão à mesa a Maria “costureira”, as Berlanjas todas, mulherões de levar tudo à frente delas, a Joaquina, a Clarisse e a Deolinda, a Maria do Rão e, porque não, os fidelíssimos criados negros que durante dezoito anos serviram em nossa casa, em Nampula, comandados pelo senhor Tesoura, cozinheiro de mão cheia que a minha mãe achava que fumava maconha, o mainato, muçulmano convicto que dava cabo do juízo ao Mário, o “moleque” que era da nossa idade quando começou a trabalhar lá em casa e se transformou num bêbado impenitente. Quando a minha mãe o ameaçava de despedimento pelas borracheiras tremendas com que aparecia, ele dizia-lhe com um despudor absoluto: Senhora não pode. Mário é irmão dos meninos.
E era!
Tudo isto, toda esta cada vez mais imprecisa memória de África, agora mais cores e cheiros que factos precisos, que faces nítidas, mistura-se com o natal de Buarcos, quando vinham os avós paternos e na casa se armava uma árvore de natal com enfeites antigos, do tempo de menino do meu pai ou até de antes, sei lá. E nesses natais recebemos parcimoniosamente, ano pós ano, juntamente com alguns, não demasiados, presentes modernos, os antigos brinquedos do pai, um carrinho de pedais vermelho que o Alfredo Esteves haveria de estragar metendo o corpanzil gordo e volumoso lá dentro, um canhão que disparava balas de borracha, indústria alemã garantida, muitos livros, alguns brasileiros oferecidos ao pai pela bisavó Ubalda Heinzelmann, e entre eles os Vernes. Ah os Vernes, que encantamento. Ainda recordo um entre todos, “Robur o conquistador” lido numa tarde. Quando pedi outro porque aquele já estava aviado, a família com ar grave entendeu não acreditar. E mandaram-me contar a história: quando lhes disse toda a primeira página, enfim grande parte dela, que há algum tempo voltei a recitar à vendedora de mais uma edição quase nos mesmos termos, caíram das nuvens. Que memória!, dizia o avô Alcino, que memória repetia orgulhoso o pai Marcelo. Eu bem que tentava explicar que só tinha memória para o que gostava mas eles nada. Quem tem memória e não é burro de ferrar, tem de ser bom aluno. Ai o que penei por via do Robur o conquistador e da teoria do voo dos veículos mais pesados do que o ar...
O Natal representava forte actividade lá em casa, comidas que se faziam, peru que se embebedava, rabanadas cuja confecção o avô Alcino comandava, com um espantoso avental e dois instrumentos apropriados para as tirar da sertã e que tinham vindo de Inglaterra. Ainda os temos, esses instrumentos extraordinários que já por várias vezes usámos cá em casa. E são de tal forma curiosos que a “Dóris Ibarruri” não deixa o seu uso a ninguém. Só ela sabe, o diabo da adventícia... Pretenciosa!... Por razões que desconheço havia um par desses instrumentos de forma esquisita de modo que é um para cada irmão, bom princípio de partilha que a minha Mãe impôs.
Estes natais vieram aliás depois doutros, passados em casa dos avós maternos, no meio de uma alegre confusão em que dois netos pequeníssimos, eu e o meu irmão, eram alvo das atenções do avô Manuel, militar e severo que se desfazia com os pequenos. Contam que ele passava a vida com um de nós ao colo e outro pela mão. Os meus tios mais novos, por seus turno, tentavam roubar filhozes e balhoses guardadas (está quieto ó mau!) no quarto do avô. Rastejavam como índios para não ser avistados da cama onde o pater famílias repousava dos afazeres da reforma. A avó Aldina tinha mão doceira e era gulosa. E nunca deixou definitivamente de o ser mesmo quando, obtido o estatuto de a mais velha, coisa que lhe aconteceu quando terá feito os oitenta anos e lhe ofereceram um bengala. Tornou-se imponente e bisavó por essa altura, argumentos suficientes para eu e a prima Maria Manuel lhe outorgarmos o título de “Velha Senhora” que ostentou até aos 97 anos, morrendo trisavó e, aliás, numa véspera de natal. Mas deixou na nossa memória tribal um tal rasto de energia e de alegria que não foi por isso que os natais perderam perfume. Faz mais falta, é mais sentida a ausência, o meu pai que sentia o natal como algo muito seu. Quando nasceu o segundo neto, um rapaz, o meu sobrinho Manuel, eis que o orgulhoso avô comprou imediatamente um complicado comboio eléctrico que o neto só poderia apreciar anos depois. Bem, eu tentei, na mesma altura, comprar para um bebé de dias um “mecanno”, brinquedo que me tinha encantado pelos sete, oito anos. Azar dos azares, quando cheguei à loja onde o vira, por um preço esdrúxulo, já tinha sido vendido. Outro tio babado, de certeza!
Isto, como de costume, está a sair de bica aberta, raio de mania, de modo que me esqueci de assinalar que nos natais da casa de Buarcos a tarefa dos dois meninos era a de partir as nozes. Íamos com o saco das nozes, um martelo e um prato para umas escadas exteriores e partíamos conscienciosamente os frutos secos. Volta e meia esborrachávamos uma que, por imprestável, poderia ser consumida rapidamente. Quando a tarefa terminava apresentávamos o fruto do nosso labor, nozes esborrachadas num canto e era-nos concedida licença para as comermos. Depois íamos para perto da mãe para assistir à confecção de vários bolos. Uma vez feita a massa e retirada para o tabuleiro de ir ao forno concedia-se aos anjinhos do lar o direito de rapar o recipiente. Ai meus Deus... nunca me hei-de esquecer daquele gosto. E do outro ainda mais especial que era o de atirar um dedo à massa logo que a mãe olhava para o lado. Corria-se o risco de apanhar um carolo mas a tentação era mais forte.
Haverá melhor natal do que este, com meninos lambuzados de massa crua de bolo roubada com risco das próprias vidas, enfim das cabeças, uma aventura, toda uma aventura?...
Anos depois, tantos, eram os dois sobrinhos mais velhos, a Sara e o Manuel, muito pequenos e igualmente guerrilheiros que havia que conter. Cá em casa, deste escritório de onde escrevo, tive uma vez que telefonar para o telefone da sala para o meu sobrinho, ameaçando-o de severíssimas punições caso ele não deixasse de fazer tropelias extraordinárias. Durante um ano ele acreditou, na inocência dos seus três anos, que era o pai natal que lhe telefonara. Entretanto a Sara, mais velha e mais prudente (apenas nesta quadra, convém esclarecer), portava-se como um anjo. De tal modo que no dia 25, pela manhã, dia das prendas, esperava a tremer de frio, descalça e com uma camisita de dormir, desde as sete ou sete e meia da manhã pelo primeiro adulto que acordasse e lhe abrisse a porta da sala onde as prendas dormiam sob a árvore.
Agora que os meninos cresceram desmesuradamente, que excepção feita da Margarida que só tem dezoito anos, já são adultos e trabalham, o Natal perdeu o gozo. O Natal sem crianças que roubem nozes, figos, passas de uva, massa de bolo, pintem a manta ou tiritem de frio à espera de um presente, é apenas um dia em que a sombra dos que foram se espessa, uma ténue angústia nos invade, um cansaço, uma saudade, alguma impaciência.
Este ano será celebrado sob o signo de uma próxima visita a Buarcos para ver o “Nélito” Pinguel, amigo de há quase sessenta anos que me pediu para lembrar a fiel Joaquina, hoje, doente da Marta sua mulher. O que se faz com prazer. E com um recado: Nélito, prepara-te que os manos Correia Ribeiro não perdem uma hipótese de almoçar contigo.
Bom Natal, amigos, companheiros, leitores, gente da blog-esfera. E lembrem-se: nessa noite que celebra também o solstício do Inverno, à mesa há muito mais gente do que a que se vê. Ponham-lhes um pratinho com pequenos doces simples e um copo, um cálice de “porto”. Numa época em que poucas crenças subsistem, façam por pensar que somos tão só um elo entre os que partiram e os que estão a chegar.

Nota: por erro diz-se que visitaremos Buarcos. Nada mais falso. Não se visita o lugar a que se pertence e que nos fez: somos filhos do mar e da praia, não há volta a dar-lhe. E do vento Norte, da “nortada” que sopra em Agosto e abranda os ardores estivais.


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