10 dezembro 2006

Diário Político 34

Morte de um canalha

Um militar chileno chamado Augusto Pinochet morreu hoje. Morreu de surpresa como de surpresa começou a ser sinistramente conhecido. Este homem – se isto era um homem (pelo menos na acepção de Primo Levi – começou por trair quem nele confiou. De facto o presidente legal do Chile nomeou este militar para o comando supremo das forças armadas.
A paga foi uma intentona infame e sangrenta. O homem dos óculos escuros estreou-se na sua novel carreira de traidor matando e fazendo desaparecer milhares de pessoas. O homem dos óculos escuros ao mesmo tempo que perdia a honra, perdia a vergonha. De facto sabe-se actualmente que mantinha contas escondidas pelo menos num banco norte-americano, o Banco Briggs. Dez milhões de dólares para ser mais preciso. Provavelmente descobrir-se-ão outras em seu nome, no da mulher e dos filhos. O tempo o dirá.
O homem dos óculos escuros morre na cama, na cama que negou a Allende e a milhares de concidadãos seus. Morre aos 91 anos, meio destruído psiquicamente, depois de ter perdido o respeito de milhares de antigos adeptos. Morre de surpresa. Não era a primeira vez que se enganava: quando foi obrigado a montar uma mascarada eleitoral para continuar no poder, um referendo, perdeu-o sem perceber que quando o povo é obrigado a escolher não escolhe carrascos. Tentou desesperadamente manter-se à tona, no comando do Exército primeiro, como senador vitalício depois. Isso não o impediu de ser perseguido internacionalmente e de ter estado preso em Inglaterra, de onde só conseguiu sair fingindo-se doente. Nem isso o poupou à seguinte inculpação no seu próprio país. A morte veio hoje, impedir que a prisão domiciliária se transformasse em prisão pura e simples.
A justiça chegou tarde mas estava a caminho. Antecipou-se-lhe a morte. Mas o que já não foi conseguido por Pinochet foi o galopante avanço da verdade. Sobre ele. Sobre os seus familiares. Sobre os seus sequazes. Sobre os seus roubos. Que este seja o seu epitáfio: traiu tudo e não ganhou nada. Morte, onde está a tua vitória?

9 comentários:

100anos disse...

Não podia estar mais de acordo.

al-ex disse...

A Maria e a Cármen , que viveram o inferno e portam para sempre no seu corpo as marcas da infâmia .
Hoje , sem ódio, dois seres extraordinariamente humanos, é por elas ,que amo, que me revolto contra esta morte que nos atraiçoo a todos
e como ela me repetiam ainda esta noite lo importante és:

"que viva Chile y mierda ... "

josé disse...

Concordo em que se vituperem os desmandos da ditadura chilena de Pinochet.

Mas ditaduras há algumas e houve muitas. E quando leio só vitupérios só para um lado, verifico um desequilíbrio notável.
Esprero bem que estes postais inflamados que se podem ler por essa blgosfera fora, politicamente correctos, atentem também noutros casos.
Por exemplo, neste que me parece arrepiante também.

Deverei ter esperança na justiça da razão?

M.C.R. disse...

Meu caro José

em Paracuellos terão sido mortos dois mil prisioneiros retirados á pressa das prisões de Madrid no inicio da campanha de cerco desta cidade pelas forças franquistas. Foi um crime. Um crime não se defende nem se discute. Mesmo se de facto Madrid estava cercada, se de facto o general Mola na radio falava das quatro colunas atacantes e da "quinta" a do interior. É daí que vem a expressão "quinta coluna". Mesmo assim continua a não haver desculpa. O regime republicano que era o legal (é bom não esquecer) deveria ter tido a força para impedir esta matança. Não a teve. Provavelmente nunca a poderia ter detido mas a verdade é que um governo legítimo está obrigado a defender a legaludade republicana.
Claro que eu poderia dizer-lhe duas coisas sobre o seu não "inflamado" comentário. E começaria por dizer esta evidencia: o regime republicano espanhol não foi, nunca foi uma ditadura. como depois aconteceu com Franco.
Poderia depois dizer-lhe que nisto de matanças a republica espanhola perde quase por KO.
De facto os exércitos sublevados mataram nas retaguardas dezenas de milhares de cidadãos sem julgamento. Só em Badajoz terão sido executados mais de três mil pessoas segundo Mário Neves e os jornalistas franceses que lá chegaram. A marcha das colunas vindas da Andaluzia para a Extremadura e Castela ficaram célebres por não deixar inimigos ou "suspeitos" vivos. Disso mesmo se gabava o general Queipo de Llano. O mesmo ocorreu com a coluna que foi limpando o litoral andaluz até Málaga e depois até Alicante. Não preciso de lhe falar da Galiza onde aquilo parecia uma debulhadora. E por aí fora.
Pode ter a certeza que daqui do meu posto de franco-atirador não pouparei ditadura alguma. É só ter ocasião, evidentemente. Detesto ditadores, governantes autoritários, e o politicamente correcto. Disso aliás penso já aqui ter dado testemunho bastante mas quando achar que omito ou esqueço alguma coisa é só perguntar.
sobre Pinochet desconheço o que se diz por aí. Eu digo o que sei: foi um traidor, um criminoso e um gatuno. E espero que os processos não parem. Só porque me parece necessário restituir a dignidade aos mortos e aos desaparecidos.

josé disse...

Meu caro MCR:

Fiquemos no séc.XX e vejamos este mundo que é o nosso.
Na Europa, a II Guerra Mundial foi provocada por ideias de extrema direita que se opunham a ideias de extrema esquerda ( o comunismo científico de Lenine e Estaline).
Esses dois extremos do espectro político, motivaram antes a Guerra Civil Espanhola, onde os nacionalistas da direita combateram os republicanos da esquerda. Direita e Esquerda, assim definidos, provocaram quantos mortos no nosso mundo do séc. XX?

Milhões. Cada um deles, porém, representa uma tragédia individual para os entes queridos que ficaram.
Para mim, cada um desses mortos por causa das ideias do “comunismo científico” e da “direita dos interesses”, vale o mesmo.
Para outros, e nesses outros ouso indicar principalmente os adeptos da “esquerda”, científica ou meramente afectiva, esse valor é relativo. Se for um morto do “outro lado” é um sinal de vitória para os “nossos”. Se for ao contrário, é um exemplo da selvajaria alheia.

O alinhamento faz-se pelo espírito de seita e não há muitos que sejam independentes disto. Será assim táo difícil olhar de fora as duas ideologias mortíferas para o género humano?
Só assim é que se compreende que na altura em que Álvaro Cunhal morreu se tenha dito o que se disse, sem dizer o mais importanto: por vontade dele, fazia-se aqui o que Estaline fez na terra dele. Menos, porque afinal somos de brandos costumes e o país é pequeno. No entanto, Salazar foi um hediondo ditador que prendeu, torturou e mandou matar. E com Salazar vai todo o cortejo dos fascistas, aí se incluindo naturalmente aqueles que como eu, não embarcam facilmente nesse jogo de espelhos que reflectem apenas uma imagem monocromática, a preto e branco.
Quem não é por nós...

Assim, a grande tragédia do séc. XX tem origem num logro e num embuste ( nem sou eu que o digo…mas um tal Soares) que afinal é o comunismo.
Em nome do comunismo matou-se aos milhões e torturou-se e prendeu-se e ainda se reprimiu a sociedade, tal como o fascismo italiano e o nazismo alemão o fizeram.
Morreram milhões de pessoas na Rússia e no báltico, na China e noutros lados por causa da ideologia que afinal se revelou um “embuste”.
Morreram milhões de pessoas provocadas directamente pelo nazismo, como também foi aos milhões a causa directa atribuível ao comunismo.
O nazismo e o fascismo duraram quantos anos? E o comunismo?

O que se passou com Pinochet e Allende, como o que se passou com Videla , para nos atermos à América do Sul, passou por causa de quê, exactamente?
Por causa da luta do comunismo contra a “direita”, ou vice versa que vai dar ao mesmo.
Só isso.
Preto e branco; dois tons; o bem e o mal, definidos conforma a perspectiva de que se coloca de um ou outro lado da barricada.

O regime de Pinochet mandou matar quantas pessoas? 3 mil? E em Cuba, quantas morreram após a chegada de Castro ao poder?
Quando Castro morrer, quem vai fazer o obituário equilibrado?

PS. Escusado será dizer que anda por aí um espreita de um blog manhoso a tentar insinuar que o que eu escrevo é “fascista”. Se aparecer por aqui, leva. Ai leva, leva…

M.C.R. disse...

A 2ª guerra mundial não foi provocada pelo duelo extrema direita extrema esquerda. Nem a guerra civil espanhola. A tese poderia ser atraente mas não recobre sequer uma parte significativa do conflito. A guerra de Hitler começou por ser uma guerra de reconquista e contra as democracias mormente a França e a Inglaterra para já não falar no "espaço vital" a leste . A Checoslováquia dos sudetas, a Polónia (mesmo de Pildusky) eterna vítima que se apoderara de territórios ancestralmente alemães e pouco mais. Para o efeito até houve uma aliança contra-natura com Moscovo. E durante os primeiros dias da ocupação da França até foi autorizado o jornal "L'Humanité". Claro que depois houve o volte face e a invasão da Rússia. que coincidiu com a ocupação da Grécia, o avanço para o Egipto e a conquista dos Balcãs. As guerras sabe-se como começam mas nunca como acabam. Provavelmente se se soubesse nem começariam. A guerra de Hitler era para ser curta, rápida e afundar a França e alcançar um acordo razoavel com a Inglaterra. Por isso depois de Dunquerque esta não foi invadida. Não foi apenas pela heroica resistencia da RAF. A Alemanha nunca pensou que o Japão entraria em colisão com os Estados Unidos. Também não acreditou que os Estados Unidos entrassem na guerra. E estes aliás também não pensavam em nenhuma dessas probabilidades. Sabe-se como as guerras começam mas não como acabam.
A segunda questão tem a ver com o comunismo cientifico de "Lenin e Stalin". Stalin é o claro negador da politica leninista que ele enterrou como o recuo sobre a revolução mundial e a construcção do comunismo num só país. Stalin não queria a guerra, não a queria com a Alemanha e foi surpreendido pela invasão. Stalin estava todo contente a ver os seus inimigos a estraçalharem-se.
A terceira questão diz respeito à Espanha. Só rectrospectivamente se pode falar numa luta comunismo fascismo e de resto não há nenhum historiador de mérito médio que a coloque nesses termos. De facto a rebelião militar foi apenas contra a republica burguesa com um vago toque de frente popular. Os rebeldes pensavam ganhar em quinze dias, um mês no máximo. Como era costume nos pronunciamentos. Foi a resistencia popular (repito popular) que arrastou a guerra por três anos. Ocasionalmente também transformou os actores do drama. O PCE em 36 era quase insignificante. Os anarquistas ou o POUM eram mais importantes sobretudo nas zonas operárias. Foi a guerra, a reorganização politico-militar e social que transformou o pequeno partido comunista no eixo político central. Todavia o exército nunca foi controlado pelo PCE e o governo foi sobretudo dirigido por socialistas relativamente moderados. Mesmo Negrin, o último primeiro ministro, nunca foi o homem de Moscovo. A força do PCE veio muito ajuda dos russos e da força da UGT. E o reflexo das brigadas internacionais também deu uma ajuda. Mas põr este conflito como uma luta entre comunismo e fascismo é errado. Aceitaria mais a ideia de reacção e democracia que foi a origem da rebelião militar. de resto Franco (como Salazar) uma vez no poder controlou os seus fascistas, integrou-os num partido franquista que até era criticado pelos "camisas viejas" que não aceitavam a preponderancia dos camisas nuevas. Como também não simpatizavam com os aliados que Franco lhes impôs e que os adeptos puros e duros de José António consideravam reaccionários.
Em quarto lugar para mim e para muita gente que conheço um morto é sempre um morto independentemente da bala que o matou. E garanto-lhe que essa ideia é predominante na esquerda que conheço.
As ideologias de per si não podem ser responsabilizadas por qualquer morte. Os responsaveis tem rosto e são humanos demasidamente humanos. É por isso que se diz que Hitler desencadeou um massacre de cerca de cinquenta milhões de pessoas, como o dos kmeres vermelhos desencadeou o de um milhão de pessoas. Não agiram sozinhos? claro que não, mas esta simplificação visa apenas encontrar um princípio de responsabilização.
A história nunca se fez com a famosa hipótese do nariz de Cleopatra: se fosse mais curto Octávio não teria vencido o seu rival ou o conflito não se teria dado naquele momento. Por isso quando se fala de Salazar fala-se do homem e do que ele fez. O mesmo se terá de fazer em relação a Cunhal sem ter de se lhe imputar o que ele faria se... e se... e ainda se...
Finalmente nem no Chile nem na Argentina se pode falar na luta comunismo contra a direita. No primeiro caso o Partido comunista não foi o motor da Frente Popular mas antes o PS de Allende. No caso da Argentina o pc era de tal modo exíguo que nem vale a pena falar dele. Videla reprimiu a extrema esquerda, alguns movimentos católicos a ela associados e uma boa parte do peronismo que era quem mandava e manda nos sindicatos argentinos.
A la rigueur aceito que se fale em esquerda e direita mas isso em termos muito genéricos. Eu até falaria (agora com o exemplo de Chavez - que começou por ser um golpista de direita! - na Venezuela) numa luta de populismos com forte representação de caciquismo. Aliás e curiosamente os casos argentino e chileno só se aproximaram nos métodos e na brutalidade. O Chile era um país com alguma tradição democrática enquanto a Argentina tinha um historial bem mais violento e de deriva autoritária que não começou em Perón mas bem antes.
É evidente que o espectro do comunismo pairou sempre por lá mas julgo que foi apenas usado para garantir apoios da América do Norte. De facto os ditadores latino americanos souberam sempre usar esse argumento último. E os pc locais nunca tiveram verdadeira força ou real implantação naquelas sociedades. Mesmo em Cuba onde durante muito tempo o pc olhou Fidel de esguelha.
finalmente em Africa onde as ditaduras prosperaram e de que maneira é dificil falar em conflito direita-esquerda clássico porquanto são muitos os outros factores (tribalismo, p.ex. ) que estão em jogo e que são poderosos.
quando Fidel morrer, cá estarei para dizer o que penso. todavia se quer que lhe diga, para mim morreu há trinta e muitos anos. E com ele muitas esperanças minhas.
Deixe o espreita vir: a gente cá está para o que der e vier e se isso lhe serve sempre direi que não o acho "fascista". Mesmo que isso me desse jeito mas também não dá. V. é um conservador e isso que eu saiba não é pecado mesmo para Stalin que decerto os preferia aos velhos bolcheviques...

josé disse...

Meu caro MCR:

O Fascismo, segundo o que posso ler aqui e ali, foi a segunda revolta totalitária contra o modo de vida liberal ocidental. O Comunismo fora a primeira.
O primeiro país a tornar-se fascista foi a Itália, nos anos vinte e a seguir foi a Alemanha, dez anos depois, tal como o Japão.
O fascismo rejeita a herança grega da nossa civilização ocidental, bem como a religião judaico-cristã que nos seviu de berço a todos por aqui e que num só conceito reune todos os motivos por que o fascismo o rejeita: a ideia de que os homens nascem iguais, em Deus criador. Só por isso , rejeito que Salazar seja fascista. Aliás, tenho por aqui um conjunto de ensaios de João Medina sobre o regime salazarista e o fascismo que comto por algures quando tiver tempo. Juntamente com o célebre artigo de Eduardo Lourenço- o Fascismo nunca existiu- e que originou o livro com o mesmo nome.
O comunismo, tal como o fascismo, não admite dúvidas e raramente se engana e a a superioridade de alguns sobre outros, é apanágio de ambos. A violência como culto e modo de vida para reprimir a “subversão” também é comum e a ideia de elite é igualmente partilhada. No comunismo, a ditadura do proletariado náo passa sem o partido e sem o sacrossanto comité central que tudo prevê e nada deixa ao acaso. No fascismo, a elite é o próprio poder que contraria a ideia democrática.
Entre estes dois modos de entender o mundo e a sociedade, algo sobressai: o fascismo é eminentemente guerreiro, militarista, expansionista, com a idolatria própria das virtudes militares. O comunismo pretende o quê? O internacionalismo proletário sempre foi uma bandeira, até aos anos oitenta e nós sofremos na pele o PREC, reflexo disso mesmo.
Assim, retomemos a primeira questão:
A Alemanha nazi começou a guerra para quê? Para se vingar da derrota da primeira guerra mundial. Como? Anexando uns países á volta. Pergunta-se: quem era o inimigo principal do nazismo? Ou antes, e ao contrário: quem era o principal inimigo dos comunistas?
A Rússia também ficou derrotado em 1918. Emparelhava com a Alemanha na vontade de derrotar os vencedores de 1918. Havia por isso essa ligação entre as duas nações.
Á Alemanha punha-se o problema simples: ou cooperava com a Rússia e assim decidiu em 1939, partilhando a Polónia; ou opunha-se-lhe e assim ficou decidido em 1941, com a invasão.
Com a derrota de 1945, os junkers alemães perderam o domínio económico.
Além disso, o Mein Kampf de Hitler a quem se atira ideologicamente? Aos judeus e ao comunismo que para Hitler , são quase a mesma seita. Tudo em nome da raça superior, ariana. E atira-se ainda à União Soviética, cujas planícies da Ucrânia e da Rússia branca satisfariam a grande Alemanha uber alles.
Assim, se é certo que a segunda guerra mundial não terá começado imediatamente por causa das divergências ideológicas marxismo-leninismo/nazismo, analisemos então o que se passou na Itália:
Os fascistas apareceram por reacção aos socialistas e para combater grevistas, certo?
Qual o inimigo principal, ideológido, dos fascistas italianos? O socialismo comunista, parece-me. As minhas fontes, nesta matéria são Hans Kohn e Arnold Toynbee e ainda André Latreille( o principal teórico da explicação que perfilhei) , cujos livros guardo.
Foi essa a razão pela qual simplifiquei ao dizer que a II grande guerra apareceu por causa dessa luta ideológica.

Segunda questão: a guerra civil de Espanha espelha bem a dicotomia entre o comunismo e as forças conservadoras e fascistas. Parece-me que aqui é mais notória esta divergência ideológica e a guerra civil espelha isso mesmo também.
Mas não discuto, como diletante que sou, como começou e porque começou. Sei que as duas facções na guerra civil encarnavam posições ideológicas antagónicas e irredutíveis.
E é por isso que lanço a terceira questão: quais são efectivamente as ideologias radicais que apareceram na Europa no séc XX e que aqui se defrontaram, em termos de guerras a quente e a frio? Precisamente, o que eu quis dizer…

M.C.R. disse...

Como sempre é um gosto conversar consigo.
Mesmo quando é evidente o desacordo.
Ora passemos às nossas encomendas. que o fascismo é uma deriva totalitária do que vem de antes, sem dúvida.
que rejeite a herança grega já me não convence. Rejeita isso sim a herança judaico-cristã na medida em que acena com um novo paganismo. de resto o Papa não teve pejo em o dizer. que depois se conformou ou amoldou à convivencia com a Igreja também me parece indesmentível. E só falo da Itália. A concordata foi isso mesmo. eu acho que o nazismo é um filho espúrio do fascismo ou, se quiser, um fascismo nacionalizado alemão.
Outro problema - e bem diferente - é o de saber se o fascismo e os movimentos seus epígonos foram uma reacção ao comunismo (e aqui haveria de se distinguir se estamos a falar do retoque leninista ou do stalinista, mas isso é outro conversar e levar-nos-ia muito longe) ou apenas à sociedade demo-liberal tal qual emergiu no século XIX. Inclino-me mais para esta hipótese. O ex-socialista Mussolini emerge depois da revolução bolchevique e mesmo depois do chamado leninismo triunfante. digamos que é mais coevo da direcção stalinista, portanto de fins da década de vinte.
Provavelmente não teria o êxito que teve se não se tivesse verificado a crise económica. esta de facto atirou para os movimentos musculados milhões de trabalhadores e por assim dizer toda a pequena burguesia. E não foi apenas na Itália ou na Alemanha. Na Polónia, V. tem o Pilsdusky, Horty na Hungria, Metaxas na Grécia, os rexistas na Bélgica, os croix de feux em França e por aí fora. A época prestava-se a isto. O mundo europeu saído da guerra e dos destroços do império austro hungaro (para já não falar do fim do império otomano e do alemão). as novas nações aquecem os nacionalismos, as velhas choram pelos territórios perdidos. A França quer reparações impossíveis e a Alemanha está reduzida á fome. aos distúrbios entre os nacionalistas e os socialistas.
qual é a estratégia dos pc durante este período? nada mais nada menos do que a luta de classes a outrance. "Klasse gegen Klasse" ou seja os pc durante um par de anos declararam-se inimigos de todos desde os nacionalistas até aos socialistas revolucionários. Lenin virá a morrer das sequelas de um atentado perpetrado por socialistas revolucionários. Na Alemanha o pc é contra os socialistas, há autenticas batalhas campais em Berlim. como depois as haverá na Espanha em plena guerra civil. O POUM foi assim liquidado e os anarquistas espanhois andaram continuamente num frente a frente com os comunistas ordeiros. Em Portugal mesmo o pc nunca foi tolerado pela CGT anarco-sindicalista.
Continuo a sustentar, porém, que a guerra de Espanha põe frente a frente os nacionalistas (requetés. falange, JONS, conservadores, o centro e a direita católicos) contra uma ampla frente popular que conseguiu, apesar do que antes disse, manter uma aliança contra os rebeldes. Por isso é que a repressão foi tão violenta. Não se esqueça que em Espanha há campos de concentração até aos anos cinquenta. Por leles passaram centenas de milhares de pessoas muitas das quais, a grande maioria, sem conotação partidária forte. E isto apesar da emigração política ter sido gigantesca. Ter-se-ão expatriado mais de quinhentos mil espanhois! É obra!
Daí eu continuar a insistir num espectro mais colorido e variado do que a luta entre "fascistas" e "comunistas". Essa também existiu mas dentro de outra mais geral e mais vasta.

V. põe outra questão muito interessante quando cita o "Mein Kampf". De facto o sentimento anti judeu de Hitler (e dos seus numerosos seguidores) é indesmentível. Só que Hitler coloca os judeus em dois polos opostos: ou como perigosos bolchevistas ou como os grandes patrões do capirtal anglo americano. Convenhamos que é dificil. A questão judaica extravasa a questão meramente política. A destruição física dos judeus aparece como uma necessidade venham eles donde vierem. E o ódio ao judeu estava bem disseminado em toda a Europa Central onde os morticínios não comoveram assim tanta gente. O ghetto de Varsóvia revoltou-se e lutou sozinho contra os alemães. curiosamente as pessoas que o viram sucumbir haveriam de também elas desaparecer durante a insurreição de Varsóvia contra os ocupantes. Ironias da história...
O partido que Hitler chefiou chamava-se significativamente Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães: Nazional Sozialisticher Deutscher Arbeiter Partei: ou seja havia aqui a ideia de compatibilizar o nacionalismo com uma vertente trabalhista. E a noite das facas longas foi um ajuste de contas com a "esquerda" do partido nazi. O que abona um pouco a minha tese.
V. finalmente desafia-me a distinguir os movimentos radicais nados no sec XX. Pois creia que assim a secas tenho dificuldade em responder-lhe. De facto como terá visto eu não estou assim tão seguro que o "comunismo" e o "fascismo" tenham sido tão radicais como apregoavam e que tenham nascido já no seculo XX. boa parte da sua cultura vinha de trás, do século XIX, e boa parte do seu êxito foi devida à falência da paz de 1918.
A transformação mais radical que o século passado terá visto foi a substituição dos grandes países líderes . A França a Inglaterra e a Alemanha mergulham e os Estados Unidos erguem-se triunfantes. A Rússia, como se vê, perdeu uma oportunidade e a China só agora é que começa a aparecer. Ou por outras palavras: a Europa deixou de ser o centro do mundo.

josé disse...

Caro MCR: mais uma pequena achega.

Duas questões:
1. Fascismo/nazismo, rejeitam herança grega?
2. Fascismo reacção ao socialismo?

1. A ideia que o fascismo/nazismo, rejeitam o saber dos gregos, não foi inventada por mim. O totalitarismo fascista/nazi, bem como o totalitarismo socialista soviético, procuraram inovar numa coisa que lhes é comum: formar um homem novo. O nazismo através da ideia de raça; o socialismo comunista, através do homo sovieticus, o “homem novo”. Ambas as ideologias apresentam uma concepçáo global da vida humana.
“A partir do momento em que os bolcheviques tomaram o poder em 1917, o Estado soviético atacou sistematicamente todas as fontes de autoridade potencialmente concorrente, compreendendo os partidos político de oposição, a imprensa, os sindicatos, as empresas privadas e a igreja.” ( citei Fukuyama).

O Ocidente tem uma tradição de racionalismo, parece-me, herdada das ideias filosóficas da antiga Grécia. A cultura ocidental deve quase tudo aos gregos e latinos, em termos de ideias fundamentais. Dietrich Schwanitz escreve que a categoria central mais signifante e para a qual todas as outras contribuem, a ideia que é evidente por si própria- essa ideia é a de que a realidade obedece a padrões, mapas e formas esenciais através dos quais a realidade se organiza; e que todas essas formas essenciais são simples, cognoscíveis e racionais. Citei Schwanitz.
O fascismo/ nazismo nega esse racionalismo tradicional e nega ainda a ideia de igualdade de todos os homens, em prol de uma desigualdade enfatizada como ideal.
O Deus único dos cristãos, judeus e até muçulmanos ( mais tardio), é sinal de que todo o homem é filho de Deus e por isso, igual perante Deus e irmãos uns dos outros. A alma, sustenta um fundamento moral para todos. E a razão unifica a humanidade.
Estes conceitos são negados pelo fascismo/nazismo. Não seguem a razão como iluminadora. Negam a igualdade de todos, porque são especificamente racistas; negam o amor cristão e a solidariedade que se pode chamar caridade, porque nem acreditam na religião e no Deus único; escolhem elites para governar, com destaque para o Chefe, e usam o totalitarismo como método de governo, com recurso a violência; Incitam ao imperialismo.
Depois disto, como não aceitar que o fascismo/ nazismo é a antítese da herança grega?

2. O fascismo foi uma reacçáo ao socialismo porque apareceu na Itália como reacção ao sindicalismo de matriz socialista também.Apoiava os donos das fábricas contra os trabalhadores grevistas e opunham-se aos ocupantes de terras. Schwanitz ( ainda o mesmo) adianta por isso que o fascismo cresceu como parasita do socialismo. Em 1929, ganhou as eleições por 100% dos votos expressos!