05 dezembro 2006

o tempo esse grande simplificador 5

Carta 2ª que o recoveiro do Foco enviou ao Carteiro do Marco
Meu caro Carteiro
Eu devia usar o seu vero nome, Joaquim se não estou em erro, ou Joaquim Manuel se bem lembro, dois belos, antigos e leais nomes portugueses, curiosamente os dois nomes mais usados durante um bom par de séculos neste rincão à beira mar plantado. Agora é o que se vê: as pobres criaturas que ainda vão nascendo têm nomes raros, estrangeirados (no mulherio a coisa é ainda pior; ele há Carinas, Sandras, Natachas –estas coitadas até têm nome de diminuitivo pois Natasha vem de Natália e Sandra de Alessandra!- Vanessas e o que mais virá.)
Lá me perdi outra vez. É a a velhice, caro Amigo, a velhice que chega a galope numa vassoura ou num aspirador para me dar cabo dos fusíveis! E essa velhice que me dá estes cabelos brancos e este arrastado na escrita, diz-me na sua infinita sabedoria que este blog anda muito necessitado de sangue novo ou quase (que V. Já passou dos quarenta!). E anda muito necessitado, repito, da sua excelente prosa, desse tom dorido e levemente irónico, desse golpe de asa para o que é espuma do tempo e que V., com esse passado jornalístico, tão bem usa.
Note meu caro que eu não lhe estou a pedir (ou melhor não me atrevo) colaboração diária, nada disso, mas apenas uma semanal crónica para este placard que foi, é e será sempre, seu e que V. ajudou a crescer. Eu sei que V bloga (ou voga?) nestes mesmos mares etéreos num blog feito por Si e à Sua medida mas isso, que é muito e é bom, não implica que, volta que não volta, V. não possa deixar aqui a sua “carta a Garcia” semanal como a antiga missa (ou como o antigo banho, lá nas nossas Coimbrãs de meninos e moços onde boa parte dos estalajadeiros cocediam ao rapazola vindo das berças para se ilustrar um banhinho semanal e quem quisesse mais que fosse ao Hospital, pelo menos foi o que uma bruxa me disse quando quis alugar um quarto horrível mais perto da faculdade para poder dormir mais cinco minutos antes da primeira aula da manhã naqueles Gerais siberianos)
Não resisto, caro Carteiro, a contar-lhe aqui, entre quatro olhos e muito à puridade, como me libertei da escravatura do toque da “Cabra” e das faltas às aulas que um bedel escrupuloso até dizer basta apontava rapidamente numa folha com o diagrama da sala. Devo ao Pedro Mendes de Abreu o conselho salvador que me libertou ad aeternam das aulas sem que as faltas fossem marcadas: o solerte PMA, amigo do peito, murmurou-me que uma garrafinha de whisky em Outubro e outra do mesmo teor em Março tornavam o meu lugar invisível aos olhos perscrutadores de bedéis, ajudantes ou simples ferrabrazes da cimitarra (que era assim que um contemporâneo do meu Pai chamava aos archeiros). A partir desse dia entre todos celebrado e recordável tornei-me um exemplo de (falsa) assiduidade às aulas. Até que... até que o destino funesto me fez encontrar um dos poucos professores de quem fui amigo. A verdade, a trágica verdade é simples.
Havia nesses tempos de vinho e rosas, ali para a zona do Parque, antes de se chegar à Fábrica da Cerveja, um pequeno bar que in illo tempore se chamou “Caveau”. Sítio agradável onde, milagre das rosas!, se tocava um pouco de jazz. Claro que V. está já a ver-me, ali, firme como uma rocha, ao balcão de cervejinha em punho, a varar a noite. Ora, começou por lá a aparecer um gajo grande, calado, simpático e igualmente apreciador de cervejola ao balcão. Estas vizinhanças dão sempre em conversata sem grandes apuros mas conversata quand même. E vai daí, o tipo, claramente mais velho, do que os fregueses balcânicos, começou a perguntar o que é que fazíamos. Com a natural sobriedade do noctívago contumaz, chegada que foi a minha vez, deixei cair que andava “na faculdade” (que lá em Coimbra ninguém usava o termo “escola” como em Lisboa ou a pirosice “universidade”. Quem por ali anda(va) com ar jovem e bem disposto era seguramente um estudante universitário pelo que universidade cheirava a patetice.) O grandalhão ouviu, ponderou, bebeu mais meio “fino” e voltou à carga. Que faculdade? Eu, ainda inocente e confiado, adiantei, dando-lhe também aos gorgomilos secos meia dose de liquido, “direito”. E o arganaz, consumindo num gole olímpico mais 15 centilitros da amarelinha: e em que ano?Segundo, respondi, secando também o meu recipiente e pedindo logo nova dose na passagem. E, subitamente desconfiado, perguntei em troca: E V. que faz na vida?Assistente repontou o tipo com um ar risonho de canibal a preparar-se para reduzir o oponente a torresmos comestíveis. –De quê? – perguntei angustiado. - De Teoria Geral. –repontou o maligno.
Porra que o gajo é meu professor, pensei. –E como é que nunca o vi? – perguntou a criatura lembrando que o mês de Janeiro estava quase no fim.
Para abreviar: a minha carreira de faltoso sofreu a primeira e única excepção. Nunca mais faltei às aulas do Carlos Mota Pinto, recente assistente dessa cadeira e futuro grande amigo meu mesmo quando ele se alistou no PPD e foi Primeiro Ministro. Alguma vez contarei outras histórias desse Professor com P grande, dessa excepção à regra entre os professores de Direito, desse imenso conhecedor de tudo e mais alguma coisa desde que jurídica, está bem de ver.
Desta vez não me perdi. Quis mesmo contar-lhe a Si, aluno que foi da mesma alma mater, mas de posterior geração, esta historieta pois calculei que eventualmente lhe agradaria. E assim com a história, disfarço o desafio que no início desta carta Lhe fiz. Vá lá, uma vez por semana, assine o ponto aqui, neste blog que V ajudou a crescer e onde só tem amigos, leitores e um admirador que Lhe manda um abraço
Ex corde
mcr

3 comentários:

o sibilo da serpente disse...

Do Carteiro do Marco para o Recoveiro do Foco


Caro Marcelo:
Foi com grande prazer que registei a sua carta e com maior prazer ainda que a li. Não só porque parte de um acto de boa amizade, como também porque fala (ao seu estilo vibrante) das coisas de Coimbra, das coisas, dos cheiros e dos tempos que, como já aqui escrevi, marcaram a minha vida de forma perene. Eu gostei de Coimbra como, provavelmente, só são capazes de gostar os que não são de Coimbra e que por ali passam num tempo em que quase tudo se aprende. Sobretudo fora dos bancos das faculdades. Que, de resto, foi o meu caso, tão poucas foram as aulas a que assisti, num tempo em que não havia faltas.
Fui, de qualquer modo, um frequentador assíduo dos bares de todas as faculdades, inicialmente das Letras - motivos à vista - e, depois, de Direito, quando as infindáveis obras terminaram e eu acabei por conhecer verdadeiramente os meus colegas e os professores.
De Mota Pinto, sei pouco. Não foi meu professor de Teoria Geral - eu tive o "azar" de pertencer às fileiras de Orlando de Carvalho, que nos assustava com a sua imensa sabedoria, mas, mais ainda, com a sua exigência desmedida. O que sei de Mota Pinto, foi das vezes em que estive em sua casa, antes e depois do seu prematuro falecimento, porque me dava muito com o Paulo - olá Paulo, tenho faltado aos encontros em casa do Abel, eu sei -, que, embora mais jovem, aparecia regularmente nas andanças do meu grupo, onde pontuavam alguns indígenas de Coimbra. Claro que ele saía menos, que tinha uma média para assegurar (17, creio) e a maioria de nós só tinha o ano para cumprir. E uma vontade imensa de viver aqueles tempos de máxima liberdade.
Temos, assim, que o meu conhecimento dos professores vinha sobretudo do bar e, quanto aos assistentes, das noitadas, porque eles também por lá iam de vez em quando e eu era um rapaz agitado, mas de trato afável, sobretudo fora dos tempos em que não resistia a provocações e não me ensaiva nada em andar à batatada por tudo e por nada. O resto, era conhecimento das orais. Daqueles momentos sofridos depois de directas sucessivas e de comprimidos que supostamente tiravam o sono e que nós "traficávamos" uns entre os outros, conforme as apetências de cada um.
Foi também em Coimbra que conheci alguns dos meus melhores amigos, que conheci algumas das mulheres que mais me marcaram e até aquelas que nunca deveria ter conhecido. Foi lá, também, que fui formando o meu carácter. O bom e o mau. Aprendi sobretudo quanto valia a tolerância, a tolerância sobretudo em relação à divergência política, isto numa década de 80 em que as fricções eram ainda muito evidentes. Eu fui candidato de direita a presidente da Associação Académica e descobri que uma boa parte dos meus votantes era de esquerda, no fundo aquela malta com quem eu convivia na Clepsidra e na Rosa de Luxemburgo e com quem tinha discussões tão monumentais como as escadas.
Quem aprendeu tanto como eu aprendi em Coimbra, não esquece a cidade. Uma cidade onde raramente volto, porque eu sei que ela para mim faz parte de um tempo que agora já não saberia viver, tanto quanto é certo que não seria capaz de viver nela de outra forma que não fosse a que descrevo, com todos os seus excessos.
Receba, Caro Marcelo, o meu abraço de enorme estima pessoal.

josé disse...

Ora bem, como a carta é aberta, afoito-me a meter o bedelho.
Coimbra, para mim, é uma cidade sem nada que mereça realce.
Estive lá no final dos setenta e foi nessa altura que li, ouvi e aprendi outras coisas para além do curso pobre que tirei.
Como sou um diletante empedernido e orgulhoso de o ser, o Direito não havia de ser excepção e foi por isso que nem notei que se podiam subir notas como quem sobe degraus das monumentais: na diagonal, que custa menos.
Tentei iniciar actividade radiofónicas por causa dos gostos musicais, mas cedo aprendi que quem domina, só larga o poleiro à força...de argumentos sólidos. E um deles era o proselitismo político. COmo nunca me dei a esses preparos de putedo de ideias, dando o corpo ao manifesto da distribuição de panfletos e participação em reuniões de conspiração para tomar poderes, fiquei sempre só, a olhar de soslaio quem me dizia que "na sociedade que queremos construir,não há lugar ao álcool". Isso, para me justiticarem a ausência de uma mísera Cergal, mini, no fim da bicha da cantina, para pôr no tabuleiro. Tempos difícieis...
Depois, os meus interesses eram outros. Também os que havia no bar das Letras, caro carteiro. Também...mas sem consequências de maior. Nisso, estou tranquilo: Coimbra nem merece referência. O tempo dos namoros, passei-o algures, a duzentos quilómetros de distância.
Devo convir que é muito quilómetro, numa altura em que as boleias avulsas, eram meio de transporte normal, para poupar cobres para a Rolling Stone e Crawdaddy e outras americanas mais pulposas.
Assim, quando dei por ela, tinha uma oral de Reais à minha frente e o Professor Orlando por trás da mesa da sala...
Como correu bem, fiquei logo a trabalhar no ensino e por aqui me fico que só vim meter o bedelho, esperando a vossa compreensão.

o sibilo da serpente disse...

Olá, José:

Creio que já tivemos destas conversas, aqui no INC, em tempos idos. E já nessa altura fiquei com a sensação de que Coimbra não o tinha marcado especialmente e houve até, já não sei quem (Rui do Carmo?) que foi um bocado severo com a cidade.

Curioso. Afinal, ambos íamos de fora, ambos estivemos no mesmo curso e temos uma visão tão diferente das coisas. Será do tempo em que estivemos, V. antes e eu depois? Será uma questão idiossincrática?

De qualquer modo, é verdade que conheço outras pessoas que não têm recordações especiais de Coimbra e outras, até, nem gostaram de lá estar.

Que se há-de fazer? Cada um vive os dias de forma diferente, vive as cidades de forma diferente. Olhe, por exemplo, eu que acho Lisboa uma cidade bonita, não sinto qualquer apelo pela grande metrópole. E, no entanto, há muitos que gostariam de viver em Lisboa e quase todos os que lá vivem, gostam.

Fez bem em "intrometer-se".

Abraço cr