Memória luminosa de alguns dias de Maio
Em Maio de 1962 Portugal tremeu mas mão mudou. Ou melhor: mudou mas poucos deram por isso. Por outras palavras, os vencidos das jornadas de Maio de 62 ganharam o combate do futuro, deram uma imagem completamente diferente de Portugal a todos quantos vieram ver o que se passava no país do silêncio e do medo. E vieram muitos porque a história acelerara subitamente nesse deserto extremo da Europa. A guerra de Angola, a perda dos restos do império na Índia, a agitação estudantil, o interminável ciclo de greves e manifestações mais ou menos dirigido pelo partido comunista, a estrondosa demissão do reitor da universidade de Lisboa, um antigo delfim de Salazar chamado Marcello Caetano levavam a pensar que depois do golpe de Botelho Moniz, da tomada do Santa Maria, do avião panfletário de Palma Carlos e da intentona de Beja (todos ocorridos em 1961 e contemporâneos da perda de Goa e do início da guerra colonial) o regime português estava por um fio. E mesmo que se desconhecesse um plano nesse ano gizado por Franco Nogueira (abandono negociado de Timor, Macau, Guiné, São Tomé e Cabinda) o que não é de todo em todo verosímil (pelo menos para as centrais de espionagem das grandes potências) o facto é que Portugal começava a valer uma missa para os grandes órgãos de imprensa internacionais. Uma forte emigração clandestina e um igualmente forte incremento do turismo compõem o resto da fotografia de fundo de um pequeníssimo acontecimento que vou narrar. Não é importante senão para os que o viveram com uma única excepção: o António Mendes de Abreu na altura com dezasseis anos sempre sonhou fazer parte deste grupo de que só escapou por ser demasiado novo aos olhos da pide, coisa que ele nunca lhes perdoou.
Já por aqui se contou que na sequência do Dia do Estudante de 1962 e sua brutal interrupção e consequente repressão as universidades de Lisboa e Coimbra entraram em greve. Mais forte e, sobretudo, mais longa em Lisboa há que dizê-lo. Talvez por isso, pela má consciência que nos assaltava ao vermos que a nossa Associação e a nossa Universidade deixarem os colegas de Lisboa sozinhos, entendemos forçar o destino e provocar uma reviravolta na atitude coimbrã. Para o efeito ocupámos a sede da Associação Académica que estava encerrada pelas autoridades. A polícia desalojou-nos e dos duzentos ou trezentos ocupantes enviou quarenta e quatro para Caxias. Os quarenta rapazes foram divididos em dois grupos à chegada e o mais pequeno deles (doze estudantes se a memória me não falha) foi enfiado numa cela miserável, subterrânea onde até uma parede escorria água. Como uma da camas estava colocada junto dessa parede o colchão estava podre e embebido. O colectivo da cela entendeu pôr os três mais novos e mais franzinos em duas camas que se juntaram. Ainda me recordo de ver o António Bernardes, “mor” da “Rãs-te-parta” e o Zé Orlando Bretão olharem para os nossos três benjamins a dormir como quem olha para um filho. A vida nesse local infame escorria lenta e desagradável tanto mais que nunca se saía daquele pequeno espaço. A comida era a que se pode esperar de uma prisão e raras vezes nos chegavam coisas de fora que repartíamos irmãmente. Até que um dia, proveniente da sala maior onde estariam os nossos companheiros chegou um frango e algumas vitualhas mais. Dramático, como convinha a um açoriano da ilha Terceira, o Bretão guinchou que ali devia vir uma mensagem. Para espanto meu, céptico como qualquer pessoa que vem de Buarcos, a mensagem existia e, apesar de inócua, causou grande excitação e forte dose de “efe-erre-ás”. E cortou por um breve instante a tristura clausural que nos roía devagar.
Tudo isso porém desapareceu quando fomos avisados que os nossos solícitos carcereiros nos iam mudar de instalações. E foi assim que nos juntámos ao grosso do pelotão numa cela enorme, dividida ao meio por umas instalações sanitárias. As janelas davam para um corredor para onde abriam outras duas celas. O corredor, por sua vez, abria várias janelas para um pátio. Estávamos numa casamata, das cobertas por terra, fora da área principal onde se ergue o reduto propriamente dito. Nesse pátio, a que –se bem me lembro - nunca tivemos acesso, passeavam-se à hora do recreio muitos dos presos do golpe de Beja. Foi em tom de fado menor numa versalhada pungente e de pé quebrado que nos contaram as desventuras enquanto do lado de cá se respondia com idêntica falta de métrica que nos apresentámos. Os nossos vizinhos da esquerda, mais tarde viemos a saber que eram ferroviários não se manifestaram mas do lado direito, horas mais tarde elevou-se uma voz lindíssima a cantar modas alentejanas.
Eu sei que, nesta altura da historieta, alguém vai reclamar: cadeia, estudantes alentejanos a cantar modas só num romance neo-realista de saldo. E está cheia de razão a criatura vociferante. Bom, cheia o que se diz completamente cheia, não. É que mesmo nestas historietas com que vou desfiando pequenos pedaços da minha insensata biografia, há cenas destas, mau gosto a rodos mas duma verdade como punhos. Portanto, Caxias, casamatas asquerosas, estudantada refilona e alentejanos a cantar. Na altura, ninguém acusou a policia por via deste cocktail de mau gosto e muito menos nós que naquela idade estávamos por tudo mesmo por um neo-realismo piegas e de segunda.
O cantor, viemo-lo a saber chamava-se, se a memória não me engana, Belchior e era sapateiro. Ele e os camaradas vinham, também se não me engano, da zona de Évora. E era ele, apesar de sapateiro quem, digamos, dirigia a cela onde inclusivamente haveria algum regente agrícola. E cantavam. Ai como cantavam... Eu, não sei se já aqui o disse, tenho costela alentejana: o meu avô materno e todos os seus familiares eram de Niza e arredores. A minha mãe dá-se mesmo ao luxo de considerar Niza como a sua terra, mesmo tendo nascido a milhares de quilómetros dali. E em nossa casa, em Buarcos, os primos do Alentejo eram visitas frequentes: apareciam carregados de coisas que não estávamos habituados a comer, ou então cozinhadas de uma outra maneira que, ainda hoje, me fazem suspirar. Também é verdade que tenho boa boca, muito apetite (sobretudo agora que ando a seguir uma ligeira dieta que já me tirou dez quilos...) e uma queda pelo cação de coentrada, pelas migas e mais um par de especialidades do Alentejo.
Todavia, naquele longínquo Maio de 62, não era nisto que eu pensava, sequer na parentela alentejana, mas apenas no acaso feliz que nos juntara, apesar das grades a um grupo de alentejanos combativos. Os nossos melhores cantores (e aí mais uma vez se distinguia o Zé Bretão e o Germano Rego de Sousa –esse mesmo que chegou a bastonário da ordem dos médicos ) gargarejavam para o lado de lá canções populares dos Açores e baladas coimbrãs enquanto os alentejanos respondiam com os seus coros e sobretudo com o seu primeira voz, Belchior o sapateiro.
A certa altura, comprados que estavam os guardas – graças ao talento do Carlos Mac-Mahon que negociou com o director da cadeia um largo par de regalias para nós (!!!) e esportulava os cerberos com generosidade – conseguimos mandar para a cela dos alentejanos farta dose de vitualhas que familiares e amigos constantemente nos traziam (direi que nunca comi tão bem no meu tempo de estudante como neste meu primeiro período de Caxias). Nem sei mesmo se não terá sido leitão da Bairrada em quantidade que se visse para um grupo de alentejanos. Em troca, mandaram-nos cerejas. Era o que tinham, desculparam-se. Famílias longe e sem meios. Essas cerejas repartimo-las com cerimónia, gravidade e um fundo nó na garganta. Sabíamos o que representavam e o que valiam, vindo de quem vinha. E sobretudo essa troca de presentes dava-nos um pouco a impressão de que entravamos num outro clube, mais reservado que o Grémio Literário, mais exigente e sobretudo muito mais solidário. Eu não sei, ou sei mal, como é que cheguei a Caxias, que pensava daquela experiência que ia viver. Todavia sei como saí. E se o meu amigo, e leitor ocasional, Rui Namorado ler esta descosida crónica, ele que também partilhou estas forçadas férias prisionais, gostaria de lhe dizer e com ele a todos quantos ainda estão vivos, que aqueles dias me marcaram indelevelmente, me deram amigos para a vida inteira, mesmo que muitos de nós se tenham perdido de vista e que os lembro sempre que vejo uma modesta cereja. Não sei se isto é ser fiel a uma ideia, a da liberdade, ou apenas teimoso. Sei que trago esta marca e que isso me tem ajudado a (sobre)viver.
Em memória de Alfredo Soveral Martins, João Quintela, Abílio Vieira, Luís Bagulho, Alfredo Fernandes Martins e Jorge Bretão
Já por aqui se contou que na sequência do Dia do Estudante de 1962 e sua brutal interrupção e consequente repressão as universidades de Lisboa e Coimbra entraram em greve. Mais forte e, sobretudo, mais longa em Lisboa há que dizê-lo. Talvez por isso, pela má consciência que nos assaltava ao vermos que a nossa Associação e a nossa Universidade deixarem os colegas de Lisboa sozinhos, entendemos forçar o destino e provocar uma reviravolta na atitude coimbrã. Para o efeito ocupámos a sede da Associação Académica que estava encerrada pelas autoridades. A polícia desalojou-nos e dos duzentos ou trezentos ocupantes enviou quarenta e quatro para Caxias. Os quarenta rapazes foram divididos em dois grupos à chegada e o mais pequeno deles (doze estudantes se a memória me não falha) foi enfiado numa cela miserável, subterrânea onde até uma parede escorria água. Como uma da camas estava colocada junto dessa parede o colchão estava podre e embebido. O colectivo da cela entendeu pôr os três mais novos e mais franzinos em duas camas que se juntaram. Ainda me recordo de ver o António Bernardes, “mor” da “Rãs-te-parta” e o Zé Orlando Bretão olharem para os nossos três benjamins a dormir como quem olha para um filho. A vida nesse local infame escorria lenta e desagradável tanto mais que nunca se saía daquele pequeno espaço. A comida era a que se pode esperar de uma prisão e raras vezes nos chegavam coisas de fora que repartíamos irmãmente. Até que um dia, proveniente da sala maior onde estariam os nossos companheiros chegou um frango e algumas vitualhas mais. Dramático, como convinha a um açoriano da ilha Terceira, o Bretão guinchou que ali devia vir uma mensagem. Para espanto meu, céptico como qualquer pessoa que vem de Buarcos, a mensagem existia e, apesar de inócua, causou grande excitação e forte dose de “efe-erre-ás”. E cortou por um breve instante a tristura clausural que nos roía devagar.
Tudo isso porém desapareceu quando fomos avisados que os nossos solícitos carcereiros nos iam mudar de instalações. E foi assim que nos juntámos ao grosso do pelotão numa cela enorme, dividida ao meio por umas instalações sanitárias. As janelas davam para um corredor para onde abriam outras duas celas. O corredor, por sua vez, abria várias janelas para um pátio. Estávamos numa casamata, das cobertas por terra, fora da área principal onde se ergue o reduto propriamente dito. Nesse pátio, a que –se bem me lembro - nunca tivemos acesso, passeavam-se à hora do recreio muitos dos presos do golpe de Beja. Foi em tom de fado menor numa versalhada pungente e de pé quebrado que nos contaram as desventuras enquanto do lado de cá se respondia com idêntica falta de métrica que nos apresentámos. Os nossos vizinhos da esquerda, mais tarde viemos a saber que eram ferroviários não se manifestaram mas do lado direito, horas mais tarde elevou-se uma voz lindíssima a cantar modas alentejanas.
Eu sei que, nesta altura da historieta, alguém vai reclamar: cadeia, estudantes alentejanos a cantar modas só num romance neo-realista de saldo. E está cheia de razão a criatura vociferante. Bom, cheia o que se diz completamente cheia, não. É que mesmo nestas historietas com que vou desfiando pequenos pedaços da minha insensata biografia, há cenas destas, mau gosto a rodos mas duma verdade como punhos. Portanto, Caxias, casamatas asquerosas, estudantada refilona e alentejanos a cantar. Na altura, ninguém acusou a policia por via deste cocktail de mau gosto e muito menos nós que naquela idade estávamos por tudo mesmo por um neo-realismo piegas e de segunda.
O cantor, viemo-lo a saber chamava-se, se a memória não me engana, Belchior e era sapateiro. Ele e os camaradas vinham, também se não me engano, da zona de Évora. E era ele, apesar de sapateiro quem, digamos, dirigia a cela onde inclusivamente haveria algum regente agrícola. E cantavam. Ai como cantavam... Eu, não sei se já aqui o disse, tenho costela alentejana: o meu avô materno e todos os seus familiares eram de Niza e arredores. A minha mãe dá-se mesmo ao luxo de considerar Niza como a sua terra, mesmo tendo nascido a milhares de quilómetros dali. E em nossa casa, em Buarcos, os primos do Alentejo eram visitas frequentes: apareciam carregados de coisas que não estávamos habituados a comer, ou então cozinhadas de uma outra maneira que, ainda hoje, me fazem suspirar. Também é verdade que tenho boa boca, muito apetite (sobretudo agora que ando a seguir uma ligeira dieta que já me tirou dez quilos...) e uma queda pelo cação de coentrada, pelas migas e mais um par de especialidades do Alentejo.
Todavia, naquele longínquo Maio de 62, não era nisto que eu pensava, sequer na parentela alentejana, mas apenas no acaso feliz que nos juntara, apesar das grades a um grupo de alentejanos combativos. Os nossos melhores cantores (e aí mais uma vez se distinguia o Zé Bretão e o Germano Rego de Sousa –esse mesmo que chegou a bastonário da ordem dos médicos ) gargarejavam para o lado de lá canções populares dos Açores e baladas coimbrãs enquanto os alentejanos respondiam com os seus coros e sobretudo com o seu primeira voz, Belchior o sapateiro.
A certa altura, comprados que estavam os guardas – graças ao talento do Carlos Mac-Mahon que negociou com o director da cadeia um largo par de regalias para nós (!!!) e esportulava os cerberos com generosidade – conseguimos mandar para a cela dos alentejanos farta dose de vitualhas que familiares e amigos constantemente nos traziam (direi que nunca comi tão bem no meu tempo de estudante como neste meu primeiro período de Caxias). Nem sei mesmo se não terá sido leitão da Bairrada em quantidade que se visse para um grupo de alentejanos. Em troca, mandaram-nos cerejas. Era o que tinham, desculparam-se. Famílias longe e sem meios. Essas cerejas repartimo-las com cerimónia, gravidade e um fundo nó na garganta. Sabíamos o que representavam e o que valiam, vindo de quem vinha. E sobretudo essa troca de presentes dava-nos um pouco a impressão de que entravamos num outro clube, mais reservado que o Grémio Literário, mais exigente e sobretudo muito mais solidário. Eu não sei, ou sei mal, como é que cheguei a Caxias, que pensava daquela experiência que ia viver. Todavia sei como saí. E se o meu amigo, e leitor ocasional, Rui Namorado ler esta descosida crónica, ele que também partilhou estas forçadas férias prisionais, gostaria de lhe dizer e com ele a todos quantos ainda estão vivos, que aqueles dias me marcaram indelevelmente, me deram amigos para a vida inteira, mesmo que muitos de nós se tenham perdido de vista e que os lembro sempre que vejo uma modesta cereja. Não sei se isto é ser fiel a uma ideia, a da liberdade, ou apenas teimoso. Sei que trago esta marca e que isso me tem ajudado a (sobre)viver.
Em memória de Alfredo Soveral Martins, João Quintela, Abílio Vieira, Luís Bagulho, Alfredo Fernandes Martins e Jorge Bretão
2 comentários:
Ao ler este relato, não resisto a enviar-lhe um forte abraço, extensível a todos os que partilharam consigo essa experiência, por certo inesquecível.
Ao longo da leitura deste seu excelente texto fui “visualizando” o vosso habitat, as trocas com os “vizinhos” e ouvindo as canções, nomeadamente as do Belchior. Quanta vida e quantas vidas há neste texto! Obrigada por o partilhar connosco.
Um abraço
Enviar um comentário