04 janeiro 2007

Diário Político 38

Os reis magos estão atrasados

É verdade, caros paroquianos: os reis magos estão atrasados e correm o risco de não chegar. Correm, até outros riscos como se verá. Adianta-se desde logo que Gaspar, o que vem da África pode encontrar-se perdido no Darfur onde teria chegado há semanas procurando um caminho livre até ao Egipto e daí para a terra do leite e do mel. Pior sorte poderá ter tido Melquior, o que viria da Pérsia. Na impossibilidade de viajar por terra e tendo como certo que para chegar a Belém lhe conviria apanhar um avião para a Europa e daí para Tel Aviv para depois, em os israelitas permitindo, atravessar o muro da infâmia para chegar à manjedoura onde o Menino dorme, parece que errou os cálculos e fez escala por Madrid. Escava-se agora os destroços gigantescos do aeroporto para verificar se ele era ou não uma das vítimas mortais do ultimo (até ao momento em que escrevo) atentado bombista da ETA.
Quanto ao terceiro, Baltasar, o que era suposto vir da Arábia, mais problemas se põem. Em primeiro lugar ignora-se se o regime wahabita lhe permitirá sair do país; se, saindo, poderá levar mirra, ouro ou incenso para fora das fronteiras. Em segundo lugar, é duvidoso que consiga atravessar incólume as terras da Assíria e da Babilónia ocupadas por uma potencia estrangeira e entregues a uma desenfreada guerra civil. Finalmente nada garante que o Hamas ou o Al Fatah lhe permitam transitar pela Palestina ou, melhor dizendo, pelo que dela resta.
Os meninos que esperam a cavalgata dos reis poderão pois sofrer uma enorme desilusão e os adultos que conservaram intacta a inocência e a ingenuidade a pontos de ainda comemorar uma festa que marca o fim do Advento ou outra coisa qualquer que no Inverno lhes dê alegria e forças para afrontar os dois meses frios, o “inverno do nosso descontentamento”, melhor será que ponham as barbas de molho. O ano que começa, não promete nada de bom. Ah, se houvesse eleições lá mais para o Verão ... outro galo nos cantaria. Mas como não há, façam o favor de fazer mais um furo no cinto que bem pode ser preciso.

Arrumada que está a explicação do título vejamos em que estado entra 2007. Para os lusitanos já se sabe: 2007 noves fora, nada pelo que quem poder que hiberne trezentos e tal dias para não se stressar. Os outros que aguentem.

E no resto do mundo? Pois no Iraque é o que se vê: o país respira o fumo das bombas e prepara-se para mais uma sangueira diária. A justiça iraquiana vai de vento em popa: conseguiu condenar Saddam Hussein num processo ainda mais fraudulento do que os do tempo do ditador. Era difícil mas eles esmeraram-se. A Europa protestou contra a pena de morte, Bush não quis pronunciar-se sobre um assunto interno de outro país soberano, o que prova que o homem é capaz de ironia. Os comentadores nacionais acharam que ao fim e ao cabo Saddam tivera o que merecia e que afinal, no Iraque a pena de morte é legal. Obrigado, comentadores, obrigadinho, foi bom ler-vos. Não se esqueçam do que escreveram, tá?
A Palestina era um projecto de nação. E uma terra relativamente amável antes de uma desgraçada “declaração Balfour”(1917) entender que o governo de Sua Majestade Britânica não achava descabido construir lá o “lar nacional judaico”. O facto do território estar ocupado por habitantes não foi considerado impedimento para esta hipotética trasfega de populações. Ao fim e ao cabo eram beduínos, arábes comerciantes, alguns drusos, outros tantos cristãos sem falar num pequeno de judeus, pelo que varrê-los de lá e pôr outros não parecia nada de extraordinário. E de facto não foi. Como se viu e como se vê. Aquilo é hoje em dia o Far East onde em vez de pistolas falam as Kalashnikov. Quanto à lei de Linch parece que foi substituída pela lei que permite e encoraja os assassínios selectivos de políticos, militares e outra gentuça desde que árabe...
Mais perto de nós, aqui mesmo ao lado, para sermos mais precisos, a ETA mostrou qual a noção que tem do diálogo com o governo. Não matava há anos. Proclamara solenemente uma trégua, desmentida aqui e ali, pela kale borroka, pelos roubos de explosivos, de matrículas de automóveis, pela reconstrucção de “zulos”, pelas ameaças pintadas nas paredes. De todo o modo, tudo isso pareceria mais folclore e pressão indirecta, se nada mais ocorresse. Mas ocorreu. Um carro carregado de explosivos fez voar um dos edifícios do aeroporto de Madrid. Milagrosamente, ou não estivéssemos na época natalícia, apenas morreram duas pessoas. Equatorianas ainda por cima, provavelmente meio índias ou pior. Definitivamente, desnecessários, supérfluos. Para a ETA que se rege por uma curiosa teoria racial (de um lado eles os bascos com muito RH negativo – mas menos que os portugueses, grande azar! – puros, antigos anteriores aos indo-europeus, quiçá aos cro-magnon até, e de outro os “metecos” os espanhóis, os tiranos os colonizadores enfim os bárbaros) estas duas mortes são de tal modo uma ninharia que os rapazes da Herri Batasuna continuam a apregoar que o diálogo não está roto!
A ETA é tão só um pobre e descerebrado grupo de criminosos que sabe que só a guerra a poderá fazer viver, morra quem morrer, desapareça quem desaparecer. A ETA sabe que é uma doença que se alimenta do medo de muitos, da cobardia de outros tantos e do sangue de inocentes. Se isso desaparecer, desaparece ela, “o pais basco e a sua liberdade” – que isso que ironicamente a sigla quer significar – desaparece o mito racista de Sabino Arana e a estratégia hitleriana da guerra por um espaço vital que ela prossegue há mais de quarenta anos.

E notícias boas, não há?
A ver vamos, mas pelo menos, à luz desta triste e solitária vela que nos alumia, a ideia de que o “direito a um alojamento condigno” tem dignidade constitucional e pode ser oponível via tribunais, vinda de França e de Chirac merece pelo menos um aplauso. De facto, só quem não quer ver a realidade, a realidade atroz dos “sem abrigo”, “sem domicílio fixo” é hoje também ela uma infâmia, um pecado mortal da civilização ocidental. E não se diga, como se adivinha, que basta trabalhar, basta não consumir drogas, não consumir álcool, para deixar de existir gente sem casa. Uma casa, uma simples e desgraçada barraca começam a ser miragens para muito pobre de Cristo que por aí pena. Em França, sete de cada dez sdf trabalham, mas não ganham o suficiente para pagar um arrendamento. Juntem-lhe as mulheres desempregadas com filhos a cargo, os imigrantes legais mas de cor duvidosa, e mais uns quantos idosos com pensões miseráveis e têm aí limpo e cruel o quadro dessa outra sociedade que nos esforçamos por não ver.
Já começaram as criticas, claro. Um par de fascistóides veio dizer que isso, essa lei insensata, terá como consequência o afluxo de imigrantes, a fuga ao trabalho de muito indolente, a preguiça generalizada e o clientelismo estatal. Não se admirem de ver já neste próximo fim de semana ou um pouco mais para a frente este argumentário traduzido em português e debitado pelos pensadores do costume.

Nota final a propósito de pensadores: então não é que uma autarquia (Gaia?) qualquer entendeu fazer uns colóquios chamados clube dos pensadores com Carrilho, Santana Lopes e outros do género? Pensadores! Santo Deus! Abrenúncio!

3 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Não sei se Zapatero foi demasiado crente ou ingénuo, mas acreditou que era possível levar a ETA a renunciar ao terrorismo. Foi derrotado, pela cúpula dirigente ou pelas bases é o que falta saber. De todo o modo, continuo a pensar que a aposta no diálogo deve ir a crédito de Zapatero. Até porque do outro lado, da direita pura e dura, também não se vislumbra uma alternativa que permita resolver esta ferida aberta e que continua a matar inocentes.

O meu olhar disse...

É de facto uma boa notícia vinda de França a preocupação por salvaguardar um alojamento condigno. Ter um tecto é o mínimo. A questão dos sem abrigo, isto para não falar de outros também verdadeiramente carenciados, é uma daquelas questões que fazemos por passar ao largo tão ostensivo que é do fracasso do nosso sistema. Claro que remeter para a culpa de quem se deixou “arrastar” para essa situação conforta e protege o nosso mundo mas, sabemo-lo bem, não preenche todas as razões, longe disso. A responsabilidade da nossa sociedade face à marginalidade que produz deve traduzir-se em solidariedade responsável ou seja, não subsidiar a miséria mas dar-lhe condições para ser ultrapassada, pelo menos aos mínimos da dignidade humana.

M.C.R. disse...

Caro JCP como decertp verificou não responsabilizo zapatero. Responsabilizo e por inteiro a ETA. zapatero tentou o diálogo. A ETA rompeu-o desrazoavelmente. criminosamente se tivernmos em conta os mortos. estupidamente se tivermos em linha de conta a repressão que virá e que se torna cada vez mais eficiente porque cada vez a ETA é menos apoiada. E mais imprudente. E incapaz de estabelecer uma qualquer meta política para o país basco.

Cara O Meu olhar: excelente olhar, ainda por cima! De facto estamos a assistir a um processo de exclusão de pobres e remediados das grandes cidades. E o pior é que eles já não têm para onde ir se quiserem trabalhar. diria que é o Sistema o culopado não por ser sistema mas por ter perdido as suas pequenas salvaguardas que permitiam aos pobres continuarem pobres mas com um mínimo vital. Agora até isso está em causa por via do preço do alojamento!
claro que se nãoi trata de subsidiar a miséria ou a preguiça ou a ignorancia. Trata-se apenas de finalmente compreender o mecanismo trucidante que é a volatilidade do emprego, a idade em que se perde este, a deslocalização etc... É o regime capitalista puro e duro que deve estar em causa. Inclusivamente nos EUA onde o slário mínimo horário é de 3, 2 dolares. Assim ninguém consegue realizar o grande sonho americano ou outro qualquer. curiosamente é esta a primeira medida que os democratas tem em mente: auentar o salário mínimo que não sofre alteração alguma há seis ou sete anos!