25 janeiro 2007

Diário Político 40

Est modus in rebus!

Parece que o senhor Primeiro Ministro que nos foi dado ter neste invernoso Janeiro de 2007 entendeu brindar o Parlamento e o País com um vibrante exemplo do seu estilo oratório. S.ª Ex.ª terá uma vez mais mostrado que não tem medo das palavras e muito menos dos que dela (Sexa) se atrevem a discordar. Já uma vez dera mostras do seu robusto talento e refinada educação ao dirigir-se desabridamente ao Chefe da Oposição. Agora para provar que, para si, não há diferença entre filhos e afilhados entendeu qualificar uma proposta do Engenheiro João Cravinho, deputado do PS. “Asneira” assim qualificou S.ª Ex.ª uma proposta do deputado. “Asneira” repetiu uma vez mais não fosse haver algum surdo no distinto areópago ou perder-se esta pérola de delicada oratória na geral desatenção parlamentar.
Se S. Bento fosse um campo de futebol e o Senhor Primeiro Ministro um comentador desportivo de algum jornal de províncias, ainda se perceberia a rude elegância da apóstrofe. O futebol, quando não chafurda no escândalo continuado da compra de árbitros e na especulação de jogadores, tem direito a tiradas deste género, qualificado de “viril” por quem desculpa alguma jogada mais violenta, uma carga num adversário perigoso, um empurrão e meiguices semelhantes.
Todavia o Sr. Primeiro Ministro não estava num recinto desportivo, numa feira semanal, numa discussão à mesa de um “sueca” puxada entre quatro cavalheiros amigos que vão jogando as cartas segundo um rito antiquíssimo que pede berros ao parceiro, desafios aos adversários, uma piscadela de olhos, vá lá uma canelada. Depois, acabado o jogo, vem uma garrafa de bom tinto (Mouchão nunca, a pedido de uma senhora brasileira e médica que nos frequenta o blog e não permite consumo de álcoois de qualidade na sua ausência!) umas fatias de presunto recém cortado, alguma rodela de salpicão e pão que acompanhe. E a zanga da jogatina logo se desfaz porque, como bem ensinava o imortal Terence Reese (a propósito do bridge mas a regra pode alargar-se à sueca), o melhor de uma partida é no fim podermos insultar o parceiro. Faz parte do jogo.
Mas, como ia dizendo, Sexa não estava no futebol, nos touros ou numa sala fumarenta a bater a cartolina. Estava no Parlamento. A responder à Oposição. Como Primeiro Ministro de dez milhões de criaturas. E dizer que uma proposta de um senhor deputado do seu próprio partido, sobre questões que afligem a sociedade portuguesa, que estão na boca de todos, que concitam as criticas unânimes da opinião pública, é uma asneira pode ser deselegante. E mais deselegante se tal proposta já tiver sido retirada pelo proponente. Ou seja: dizer que a proposta “X” é uma asneira, sabendo perfeitamente que tal proposta já não existe, significa apenas uma tentativa de desqualificação do pacote de propostas entretanto mantidas pelo mesmo deputado.
E, já agora, quem é esse cavalheiro, esse engenheiro João Cravinho, alvo deste façanhudo substantivo?
Pois nem mais nem menos do que o mesmíssimo homem que o governo presidido pelo Sr. Primeiro Ministro entendeu ser o homem ideal para ocupar um alto e honroso lugar numa importante instituição europeia. Mas há mais: este deputado, autor da defenestrada asneira, foi Ministro em vários governos nos últimos anos, é apontado unanimemente como um distinto especialista, um homem de uma seriedade a toda a prova, um político que nunca precisou da política para criar um currículo invejável desde muito antes do 25 de Abril. E mais ainda: um homem de coragem que, com mais uma ínfima minoria da população portuguesa, se bateu pela democracia e pela liberdade quando isso significava arrostar perigos que o Sr. Primeiro Ministro nunca afrontou e de que não deve fazer a mínima ideia.
Os actos ficam com quem os pratica. E com quem silenciosamente os vê perpetrar e não se sente capaz de sequer se indignar, de dizer “alto e pára o baile”. É por isso que este blogger eleva aqui a sua fraca voz, perante um pequeno auditório, sem grandes esperanças que a sua atitude comova demasiada gente.
Convém para finalizar, fazer aqui o chamado registo de interesses: conheço o João Cravinho há mais de trinta anos. Sou amigo dele e honro-me da sua amizade. Não conheço nem me interessa conhecer o Sr. José Sócrates. A meu ver não honra o nome helénico que tem mas isso é outra conversa.

Estava este texto pronto quando li a notícia da morte do Professor Doutor Oliveira Marques. Nunca o conheci excepto por leituras. Tenho, todavia, uma dívida pendente com ele. Entre outros livros, a “História de Portugal” esse manual em dois volumes gordos saída ainda antes do 25 A. Curiosamente, tinha a ideia que estes dois volumes substituíam um outro gordíssimo também com o mesmo título e publicado meses antes mas já não me lembro. A “História...” de Oliveira Marques foi um acto de coragem e de cidadania, num tempo fosco em que, como acima disse, “apareciam raros navegantes no mar vasto*”. A comoção entre os meus amigos com o aparecimento deste livro foi enorme. Finalmente, uma luz ao fundo túnel. Finalmente uma História com H grande. E que vinha até ao consulado de Marcello Caetano! Um manual que nos permitia tentar perceber qualquer coisa no meio da louvaminha historiográfica geral. Obrigado Professor Doutor Oliveira Marques. Foi bom tê-lo lido nesses anos de chumbo e cinza.

* “aparent rari Nantes in gurgite vastoVirgílio, Eneida, I, 118.

7 comentários:

josé disse...

“aparent rari Nantes in gurgite vasto” Virgílio, Eneida, I, 118.

Agora, talvez. Dantes, não.Havia muitos.

A prova está feita: actualmente, não há navegantes de mares ignotos.
Só os de terra à vista, e com gps assestado.

O meu olhar disse...

Não sabia dessa da “asneira”. Não percebo, ou antes, é melhor não tentar perceber.
A questão do tipo de legislação que temos de combate à corrupção, sobretudo à sua prevenção, é, ela própria, um caso de polícia. Se fosse possível, seria interessante criar uma “agência” que investigasse todos os partidos, sobretudo o PS e o PSD, sobre as razões que levaram a tanta ineficácia e inoperância no caso da corrupção. Parece que haveria lugar a muitos arguidos…

Só é pena que esta questão seja tão vital para o presente e futuro deste país. Caso contrário, toda esta situação seria um bom mote para uma anedota.

Silvia Chueire disse...

Mouchão, nunca. Bem, acho melhor aumentar esta lista. : )

Abraços, d'Oliveira,
Silvia

jcp (José Carlos Pereira) disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro MCR, os debates parlamentares medem-se sobretudo pela eficácia do resultado e, nesse aspecto, mais uma vez Sócrates goleou Mendes. Dirão que é um combate entre actores menores, mas continuo a achar que valia a pena deixar de considerar o "nosso primeiro" como um político menor.
Quanto às às propostas de Cravinho, não apreciei o método e a sua colocação na praça pública, como que a querer criar engulhos ao seu partido e ao governo, elevando a voz bem alto para gritar "Ninguém é mais incorruptível do que eu".
O exclusivo do interesse na luta contra a corrupção não está, creio bem, cingido a Cravinho. Por isso, quero continuar a acreditar nas boas intenções do governo. Sem ingenuidades...
Uma palavra final para Oliveira Marques, um autor e investigador muito importante para a historiografia portuguesa.

M.C.R. disse...

Meu Caro JCP

Eu, se quer que lhe diga, não estou interessado em saber quem ganhou o debate A ou o debate B. Os debates na minha modesta opinião são ganho por quem convence e não pelas palmas sos apoiantes ou pelo "arruído" dos sound bytes.
no caso da proposta cravinho a questão é bem outra. crasvinho veio dizer com imensa sensatez que o Zé Ninguém de ontem que hoje é deputado, ministro ou autarca e se mostra entre iates e ferraris, casas imensas e desportos de inverno em Gstaadt deve ser investigado porque a riquesa não cvai com a primeira chuva de Maio. Sócrates diz que isso é uma asneira. Poderia dizer que estºa em desacordo, que não lhe parecia curial, que isto e que aquilo. Ao escolher o termo soez sócrates quis mostrar que na sua capoeira só há um galo. Ele. Quis amesquinhar alguém que tem uma imensa carreira política atrás, de homem probo, de homem sabedor. ´
E duvidoso que a sua gritaria convença qualquer pessoa de bem, todavia o barulho disfarça a falta de vontade de acertar o passo a uma classe política que vive de fazer fasvores e de se favorecer. sócrates será sério, Convinha porém prová-lo com medidas a sério e corajosas em vez de andar a bater nos estafados ceguinhos do costume. O combate pela modernidade em Portugal passa por abater a corrupção e o clientelismo. Depois lá podem ir á pesca de alcatruzes entre os juizes, os professores, os funcionários públicos e outros que tais. E mesmo aí sempre lhe digo que as actuais medidas são poeira nos olhos. A função pública é perfeitamente auto-reformável não é preciso extingui-la para a substituir por privados gananciosos e piores.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

O PS e o seu grupo parlamentar ocuparam-se da luta contra a corrupção e acolheram muitas das ideias de Cravinho. A divergência fundamental recaiu sobre a inversão do ónus da prova, em que venceu a tese de que deve ser a máquina fiscal a ter de provar o enriquecimento ilícito, e quanto à criação de uma estrutura permanente de combate à corrupção na órbita da Assembleia da República, tida como desnecessária face aos organismos já existentes para o mesmo fim. Parece-me, por isso, que não houve uma renúncia à luta contra a corrupção, que aliás deve ser prioritária numa democracia moderna.