22 janeiro 2007

Estes dias que passam 45

Tal como no mediterrâneo “as coisas vão cair do alto com ferocidade e darão depois a luz e alimento” (as azeitonas). Por este atalho de vinha em Fiesole ia a andar Leonardo ou acaso aqui (Milão Romagna) ou nas ardenas viu os mortos transportar os vivos”
Fiama Hasse Pais Brandão: “in memoriam” O texto de João Zorro


Está escrito desde há muito que por muito incerto que o mundo seja, uma certeza subsiste: todos morreremos. Mais cedo ou mais tarde, mas a Parca não se esquece nem se engana.
E à medida que vamos avançando em idade mais e mais a presença da morte se torna frequente. É natural. Os que connosco cresceram desaparecem mais naturalmente do que os mais novos. E desaparecem em maior número. O nosso mundo vai-se povoando de sombras e memórias, de ausências e óbitos.
Apesar de sabermos isto perfeitamente, raras vezes, ou nunca, nos habituamos. Pior cada vez mais a morte nos aparece como uma blasfémia, algo de não natural, contrabandeada em salas horrendas e impessoais onde, envergonhadas, as famílias depositam os seus mortos.
Mas basta de pregar no deserto e recordemos uma vez mais a Fiama e o Denny e velho abbé.
A Fiama apareceu-me em livro nos idos de 60 0u 61: um livrinho tosco, “O aquário” edição de autor, com data de 1959. Uma prosa poética que, na altura, não me terá cativado demasiadamente. Mas que, mesmo assim, me fez comprar fielmente os 14 livros que terá publicado, incluindo neste número a Obra Breve e dois folhetos da Inova. Se me falta algum foi por que se me escapou. Porque a Fiama, que nunca conheci pessoalmente (e ao que sei tantas vezes nos cruzámos nesses primeiros anos sessenta) era uma força discreta se é que isto se pode dizer: quem a lia ficava preso, “enganchado” mas ao reler agora alguns versos dou-me conta, mais uma vez, da “discrição” da “não publicidade” do calado ofício desta enorme mulher.
A bem dizer, ela já morrera: notícias de amigos comuns davam-na como extremamente doente, incomunicável, um Parkinson tremendo e maleitas anexas. Há anos que não escrevia, que não podia escrever. E isso, num poeta, é pior do que a morte.
Quem me lê, dirá agora, mas porque é que nunca a referiste entre tantos livros, na “farmácia de serviço”? Por isso mesmo, porque até eu, seu leitor recorrente me esquecia ou não sabia da gravidade da doença. E depois, tinha a vaga ideia de que a “Obra Breve” ( 1991, Teorema ed. somatório excelente) ainda andava por aí à venda. Se anda, não hesitem, leitores e amigos: é um grande livro que reúne quase toda a produção poética de Fiama Hasse Pais Brandão. Quase seiscentas páginas da melhor literatura da segunda metade do século passado, do seu século!

Denny Doherty, “Mamas and Papas”, ah quanta alegria me deram as suas canções. A nossa geração deve muito a este quarteto. É bom sermos devedores de tanta gente e sentirmos isso. É provável que isso nos incline a alguma modéstia e igual dose de generosidade. Como a Fiama, ele era outro sessentão. Como ela, podia olhar para trás sem medo do julgamento. Como ela, encheu a nossa vida de música e de alegria. Depois de “Mama” Cass chegou a vez de Denny... Ponham um dos seus discos e ouçam-no com atenção e digam-me se, durante um breve momento, não foram tocados pela “Graça”.
God bless you Denny!

Um santo que foi um herói. O abbé Pierre morreu hoje. O corpo já não aguentava mais. E aguentou muito, há que dizê-lo. Esse homem franzino, doente pulmonar desde novo, a pontos de ter de sair do convento porque o regime de clausura era demasiado severo. Foi aliás graças a essa fragilidade que escapou milagrosamente á prisão quando os alemães o foram buscar à paroquia onde era padre. Duas vezes preso duas vezes evadido, o compromisso resistente deste homem que salvou inúmeros judeus passando-os pela fronteira suíça, continuou na defesa dos sem abrigo e na constituição da associação Emaüs. E não deixa de ser simbólico que a morte só o tenha levado depois de em França se anunciar uma legislação sobre o direito ao alojamento.
Como os meus leitores sabem, sou um absoluto, total agnóstico*. Com uns laivos de anarquista, já agora. E uma desconfiança visceral das igrejas todas. Mas nem isso me impede de pensar que este homem está agora à mão direita do Deus em que acreditou, um deus de pobres de perseguidos, de damnés de la terre, esses mesmos a que a canção se refere.
Também já aqui disse que gosto de pensar que os mortos todos os nossos mortos, são um elo entre nós e os que os precederam, manias adquiridas em África e no estudo dos mitos africanos. Espero que estes três que agora nos deixam dêem de nós uma boa imagem aos que esperam notícias deste pobre planeta.
Soll es sein! Muss es sein!

* para mim um agnóstico é alguém que não crê na existência de um Deus mas que nem se dá ao trabalho de fazer apostolado desta sua não crença como ocorre com certos ateus.

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