30 janeiro 2007

Tudo a bombordo 5

Mudar a vida ou mudar o mundo? Mudar a vida e o Mundo!

Mortos vamos e expulsos e incriados
mas é em nós que os planetas e os mais corpos do
espaço
molham as mãos
e esmagam a cabeça

Mário Cesariny Planisfério e outros poemas, 1961

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite

Herberto Hélder A colher na boca, 1961

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento digo-te adeus
e como um adolescente
ropeço de ternura
por ti

Alexandre O’Neil No reino da Dinamarca, 1958


Ainda nem comecei este texto e já gastei uma página! Tentei desesperadamente reduzir as citações mas, como já disse, e agora repito, eu sou cão que conhece dono e pago com pontualidade as minhas dívidas. E se me abrigo à sombra luminosa de três grandes poetas é porque lhes devo muito, muito mais do que sou aqui capaz de exprimir. Tempos houve em que era capaz de recitar de cor centos de versos deles, coisa a que hoje já não me atreveria. Não que lhes tenha perdido o gosto, a música, a respiração mas apenas porque, provavelmente eles já são tão parte de mim que me permitem ir tentando ler outros e apropriar-me de outros. Mas basta que me passe ao alcance um dos livros que citei e mais um quarteirão de outros e eis que regressa intacta a esperança, a alegria e a permanente novidade do poema.
Acabei o meu texto anterior (publicado aqui em Dezembro do ano passado) dizendo que aos meus 19, 20 anos de idade me cruzara com o surrealismo. Deveria ter escrito, apanhei com o surrealismo em cima porque foi isso mesmo o que me sucedeu. Apanhei com ele e foi como se de repente, descobrisse um outro mundo e uma outra sensibilidade, e uma outra maneira de ver, fazer, viver, agir política.
Os meus leitores que me desculpem. Eu, canhoto de pata e de coração, não passava de um perdido rapazote, de origem burguesa, com uns fumos de intelectual. Em casa, trabalhadores manuais não havia. Na família também não. Nos meios que frequentava idem, aspas, aspas. Claro que na meninice os meus colegas de escola eram filhos de pescadores, que eu frequentei, deus seja louvado, a escola oficial. Depois, aqui e ali, encontrei pessoas que de perto ou de longe pertenciam ao mítico mundo do trabalho mas não exerceram sobre mim influência que se visse ou que eu recorde. Os poucos comunistas que entretanto terei conhecido (e nesse tempo, não havia ninguém que se confessasse comunista a um rapazola deslumbrado e papalvo) eram intelectuais. Como eu começava a ser, queria ser e acabaria por ser. Portanto as imagens do mundo do proletariado que me chegavam eram todas via romance ou ensaio.
E é bem sabido que os burgueses passados ao campo da revolução dão na maioria das vezes em pernósticos. São duros, implacáveis e exigentes. A moral bolchevique beberam-na com tal ânsia que ficam permanentemente bêbados de verdade de linha justa, de posições correctas, tudo muito enfeitado de citações, penosamente tiradas de livros que, as mais das vezes, tiveram a sua época e foram brandidos mais como arma de arremesso ocasional do que como tratados de ciência política e social. Isso que agora parece tão claro, era nos tempos obscuros, difícil de perceber. E como não tínhamos o viático da origem proletária obrigavamo-nos a brandir os pequenos catecismos como verdades eternas.
É sobre este espesso pano de fundo que a fogachada surrealista fez efeito. Ponhamos que a leitura dos primeiros livros surrealistas e julgo que os três citados terão sido de facto os primeiros, me “tirou do sério”. Que, a derisão por um lado, e a fundura deslumbrante me permitiram adivinhar que era possível ser de esquerda sem ser infeliz, sem ter remorsos de calçar sapatos, sem sequer me obrigar a jejuar por nunca ter tido fome.
Por outro lado, a primeira, e pouco significativa, prisão sofrida permitiu-me começar a ser capaz de saber que poderia levar a cabo acções revolucionárias sem receio de mais tarde, uma vez preso, delatar companheiros, camaradas e amigos. E que o campo da acção revolucionária era de tal modo amplo que não era obrigatório ser do pc para estar nele. E mais: que se podia estar nele, de igual para igual com os militantes comunistas. Com uma diferença: os “compagnons de route” nunca teriam, nunca tiveram, por trás deles e ao lado deles a fabulosa máquina de auxilio aos presos políticos que o PC proporcionava aos seus militantes. Mas isso, mesmo nessa altura, não parecia ser demasiadamente grave ou importante. E, mesmo que eventualmente esteja a ser injusto, permitia a muito boa gente também não ser arrastada pelas sucessivas vagas de prisões que de 62 a 65 varreram organizações inteiras do pc que caíram por traição interna, falta de coragem na polícia, imprudência manifesta, provocação policial etc... Porque a história exemplar de heroísmo dos comunistas não pode ocultar a acção de responsáveis políticos do partido (e no campo universitário não foram assim tão poucos...) que entregaram à polícia dezenas e dezenas de militantes. Nem pode ocultar que quando se tratava de combater dissidentes, o partido e os seus órgãos de informação não se coibiram de denunciar os seus ex-militantes. Como exemplo bastará citar a denúncia contra João Pulido Valente, Rui de Espiney e Francisco Martins Rodrigues, fundadores do “comité marxista leninista português” e da sua organização de massas, a FAP (Frente de Acção Popular). Retrospectivamente nada justifica a campanha levada a cabo pelo PC, que de resto se virou contra o partido. Convém lembrar que o clima intelectual dos primeiros anos sessenta estava moldado pela revolução cubana que despertara um enorme entusiasmo pelas primeiras independências africanas e, porque não, pelos anos Kennedy. A União Soviética aparecia nesta fotografia sob duas imagens: a do senhor Nikita Krutchov que lançara a guerra ao culto da personalidade, que pusera um satélite no ar, que repetira a proeza enviando o primeiro homem para o espaço e a dos seus imediatos sucessores que voltaram a fechar o país. Por outro lado a China emergia como o pais do grande salto para a frente, dos revolucionários de pés nus, do poeta Mao Tse Tung, enfim do pais que apoiara a Coreia do Norte e o Vietnam onde mais uma vez começava outra guerra. Tudo isto, esta multiplicidade de referentes político-sociais, esta (para nós) generosa e anárquica divisão do bloco progressista em diferentes centros de poder, permitia ser de esquerda sem ser “revisionista”, permitia voltar a ouvir falar dos velhos trotskistas, dos países rebeldes a Moscovo, sobretudo (e só, aliás) a Jugoslávia. A nova ideologia, um pouco fourre-tout dava direito a uma dose de Cuba, outra de guevarismo, uma pitada de anti-racismo com molho universitário estado-unidense, algum terceiro mundismo. E nesses novos “horizontes vermelhos” a cartilha soviética e stalinista perdia terreno para fórmulas mais ousadas e mais liberais. A espessa armadura ideológica dos anos 30 e 40 desfazia-se com as novas ideias. O capitalismo popular em que o Ocidente europeu entrou em cheio em finais de cinquenta tornava mais sinistra a fotografia a preto e branco do leste. Parafraseando um título célebre de Remarque, “a oeste havia algo de novo”.
Éramos jovens, sabíamo-lo, não tínhamos patrões ideológicos e isso era também alimentado pela nova literatura (nova de vinte trinta anos!) pela nova música (e aqui a irrupção do rock e derivados foi fatal) pela nova arte (Picasso é agora admirado por milhões) e pelo cinema. A televisão traz o mundo para dentro de casa e será a melhor arma dos vietnamitas. O turismo de massa arrasa Espanha e Portugal varrendo com leis imemoriais de decência nas praias, trazendo para o convívio dos iberos a liberdade, o sexo e as nórdicas, mesmo que isso fosse as mais das vezes um exagero. A democracia passou a ser um referente de vida. Mesmo a direita portuguesa estava acossada, embiocada no seu canto, aparvalhada com os biquínis nas praias e uso de calças pelas mulheres. A guerra colonial obriga as mulheres a entrar no mercado de trabalho. A emigração torna ainda maior essa necessidade de recorrer à mão de obra feminina. E uma mulher que trabalha é algo que deixa de ser dócil, de fazer fretes de andar às ordens do senhor prior da freguesia. Em meados de sessenta o mundo bisonho e português já não era. Ou melhor era um cadáver a quem ninguém passava o atestado de óbito. E isto que era muito, talvez não se visse com a precisão que aqui resumo mas via-se, e de que maneira, com os óculos surrealistas que alguns de nós tínhamos espetado no nariz. Podíamos mudar a merda do mundo e, de passo, a merda da vida.
Pela parte que me tocava, era um programa de acção e peras.


Nota: nunca pensei que ao responder a um desafio de alguns leitores deste blogue sob a minha viagem pelas ideias e emoções de uma vida desse tanto pano para mangas. Disso me desculpo mas o que isto deve ter de longo, chato e repetitivo, só sairia se eu me levasse muito a sério e me corrigisse, apagasse, reescrevesse e mais não sei quantas coisas. Assim optei por indo pondo estes ovos de avestruz, que devem dar uma omeleta desenxabida deixando-os tal e qual saem do dedinho teclador. Têm a humilde vantagem de serem frescos. O que por si só não é qualidade mas isso, como dizia no final do texto 4, é outro falar.

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