03 fevereiro 2007

Au Bonheur des Dames 49


Iniciação ao bridge
Já por aqui me lamuriei da crise que grassa entre as civilizadas criaturas que se dão ao honesto prazer do brigde, jogo de cartas assaz interessante que tem honras militares (já lá iremos) civis e revolucionárias (de que também se falará). De facto, ando muito falho de parceiros tanto mais que já me não apetece frequentar o bridge de competição, coisa para rapazes mais novos e mais dispostos a estudar do que eu.
Comecemos pelo óbvio: o mundo divide-se em duas categorias: os que gostam de jogar cartas e os que não. Não vale a pena dizer: bem eu não sei, nunca joguei, talvez se me ensinarem... Nada disso. As cartas é coisa que se ganha ou perde entre a meninice e a adolescência. Claro que se começa pelo princípio, como muito bem se ensinava, na nunca suficientemente celebrada Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: o doutor José Carlos Moreira, ou outro por ele, dizia que o direito romano tinha começado por não existir. Como as cartas, tal e qual.
As criaturas pequenas começam por aprender a bisca lambida, o burro, o burro em pé, o diabrete, o bom dia senhorita, os reis e rainhas. Depois passam aos primeiros trabalhos práticos: a sueca. Jogo de parceiros, de gestos, de sinalefas, enfim o princípio da malandrice. A partir de um certo momento há sempre alguém que propõe começarem a jogar o king que é uma coisa que não é carne nem peixe. Conta-se que um rei inglês (Jorge III ou IV) burro que nem um portão de quinta adorava jogar mas que não atinava com o bridge (aliás com o whist, um antepassado) pelo que se facilidade em facilidade lá arranjaram uma coisa que tinha um bocadinho de tudo e, sobretudo, não era a parceiros: o king. O rei que ainda por cima era parvo não percebeu que sem um parceiro a ajudar a coisa ainda era pior mas parece que praticou durante longo tempo o dito cujo jogo baptizado em sua honra. Quando a adolescência vai alta entra-se na batota. Na jogatina a dinheiro: lerpa, sete e meio, montinho, vinte e um real (black jack), burro americano e póquer.
A partir desta idade, os caminhos divergem. A maioria dos jogadores de cartas ficam pelos jogos de azar ou pela sueca. Um grupo relativamente pequeno ingressa nos altos estudos: bridge e póquer. A malta do póquer é maioritária, claro. Os do bridge, raras vezes saem disso mas quando saem dão uma mãozinha no póquer.
Portanto um jogo de parceiros. Jogo em que há um leilão para se determinar o naipe que vai ser jogado, e uma fase de carteio. Não vou ensinar mais nada porque não é para isso que aqui venho. Basta pois dizer que o bridge, por razões que me escapam, tornou-se um jogo razoavelmente popular em todo o mundo excepto em Portugal onde é considerado de elite.
Eu aprendi a jogar vendo o meu pai e os amigos. Como mirone. O mirone diz um provérbio, está calado e dá tabaco. No meu caso, sentava-me caladinho e encolhido ao lado da paternidade, não abria a boca e ia aos recados. Vai dizer ao bar para nos trazerem mais uma rodada. Vai buscar um maço de cigarros. De vez em quando findo o jogo perguntava a razão de ser de uma jogada e havia sempre um parceiro generoso que a explicava.
O que nunca entendi foi o facto do meu pai, excelente criatura aliás, fazer o grande número do incendiário. Eu explico. O pater-familias era um fumador convicto. Sentava-se à mesa de jogo, punha o cigarro ao canto da boca, dava cartas. Depois de tirar uma fumaça punha o cigarro no cinzeiro da esquerda, abria as suas cartas para as ordenar e zás rapava de um cigarro que acendia. Os três parceiros davam-se cotoveladas. Entretanto, umas vez arrumadas as cartas por naipe e por valor, o pai punha o cigarro no cinzeiro que mão solícita e mal intencionada lhe estendia. Mais uns momentos e pimba, terceiro cigarro na rampa de lançamento, isqueiro e fumaça forte. Nesse momento já tinha três cigarros no activo. Dava conta da distracção e tentava que ninguém reparasse fumando ora um ora outro ou o terceiro. Os parceiros ou seja o parceiro e o par adversário estrepolinhavam de pura alegria silenciosa. Eu torcia-me todo, não por solidariedade com o autor dos meus dias mas feito com os maus. Um pagode.
Convém talvez acrescentar que os meus esforços e o meu silêncio eram premiados pelos outros parceiros que me pagavam coca-colas (isto passava-se em Lourenço Marques, claro) canada-drys e outras mixórdias como prémio à minha falta de carácter.
Entre esses parceiros, havia um que nunca esquecerei quanto mais não seja porque era o padre mais porreiro ( o termo exacto é esse: porreiro) que conheci. O padre Cruz. O capitão capelão Cruz. Ou o “reverendo”, o “padre nosso”, e mais uns quantos nomes que os parceiros lhe iam arranjando. Um capelão militar das duas uma: Ou é uma criatura detestável e cacarejante ou um tipo que a sabe toda e que, conhecendo como ninguém os ínvios caminhos do Senhor, aguenta tudo, come mais do que o sargento da manutenção militar, bebe mais do que um major de engenharia (ai não sabiam? Eu que frequentei a família militar durante esses anos moçambicanos - o meu pai era médico e na altura era o capitão médico que fora reorganizar os serviços de saúde militares na colónia. O bridge abria ás cinco em ponto da tarde – como no poema de Lorca! – e fechava noite mais que cerrada.). Foi por isso que descobri que os oficiais do corpo de engenheiros eram sem qualquer espécie de dúvidas os maiores beberrões de qualquer guarnição. Pior: bebiam várias espécies de álcool em proporções diversas, com excepção de um tenente coronel de engenharia que mudava as bebidas consoante a hora. Se bem me lembro só entrava no whisky, às cinco da tarde, hora dizia-me ele do five o’clock tea. Às sete em ponto começava a época do martini (com azeitona!) que se prolongava até à sopa. Ou melhor em vez da sopa. “A sopa, dizia-me ele, faz-me azia!”. O resto do jantar era passado a vinho branco do Reno (“muito digestivo” sic ibid.). Depois do jantar, o brioso militar passava a um tête-à-tête com uma garrafa de fine Napoléon que lhe servia de calmante. Uma garrafa inteira entenda-se. E cheia. Ou melhor cheia até ele a abandonar vazia e imprestável. Hora em que, sempre segundo o seu estrito código de conduta, recolhia a quartéis!
E a cerveja? Esta pergunta, pelo que tem de caviloso, deve ter vindo do meu amigo Carteiro que anda fugido desta casa há demasiado tempo. Todavia responde-se. A cerveja era uma bebida franca usada só de manhã e excepcionalmente até ás cinco da tarde. A partir daí serve o calendário acima anunciado.
Tudo isto vinha a propósito das virtudes militares necessárias para se desempenhar o espinhoso cargo de capelão militar. O Capitão capelão Cruz era de facto uma excelente pessoa, por quem tenho enorme ternura e de que me recordo com saudade. Adorava jogar bridge e por altura da Quaresma oferecia ao céu um sacrifício digno de um rei: parava de frequentar o pano verde durante os dramáticos quarenta dias. A gente via-o passar de largo pelo clube militar sem se chegar sequer ao pátio redondo para onde dava a sala de jogo.
Os malandrins que com ele jogavam, ou seja todos, com a ajuda pressurosa do meu irmão e minha, passavam a vida a convidá-lo “Padre não quer dar-nos a bênção à sala de jogo?”, “Clérigo, andas fugido?”. Ou a pior de todas: “Padre Cruz não me diga que não joga por estarmos na Quaresma?”.
O pobre Capelão sofria horrores às mãos dos amigos. Não queria mentir mas não se atrevia a confessar que aquele era o sacrifício que oferecia ao patrão que jurara servir.
No sábado de aleluia, a coisa atingia o auge da crueldade. Nesse dia, aviada a missinha da manhã bem cedo era o ver o Padre Cruz fagueiro, sorridente, olhos a brilhar de excitação a aproximar-se do desalmado grupo de bridgeurs que com ar falsamente desenvolto começavam a inventar pretextos extraordinários para atrasar a sessão de jogatina. Que ainda era cedo, que queriam ir à praia, que tinham de levar os miúdos não sei bem onde, que estava calor(!!! Esta era infame!) que isto e que aquilo. O pobre capelão mortificado por quarenta dias de abstinência passava do vermelho ao verde e daí ao cinzento e daí à faísca. Mas vocês estão-me a gozar? E a coisa terminava antes que lhe desse um fanico que o Padre Cruz era de compleição robusta e passível de um enfarte. E a vida voltava ao seu trâmite habitual entre os cigarros semi-fumados do meu pai, as explosões do Padre Cruz e as piadas maliciosas dos outros parceiros, a minha dócil quietude só quebrada pelos recados que mandavam fazer. Até que o dia chegou em que faltando um quarto, os parceiros viraram-se para o meu pai e perguntaram “Ó médico achas que o miúdo pode dar uma mãozinha enquanto não chega mais ninguém?” A paternidade puxou doutro cigarro, do isqueiro, tirou uma fumaça que consumiu quase meio “Gazela” (era a marca dele nessa altura) e disse-me: “Aguentas-te?” Achei que sim! Então senta-te em frente do Clérigo, que para ti é, e será sempre, Senhor Padre Cruz e não me envergonhes!
E foi o que fiz.

Morreu há dias o coronel Mário Vasco Oliveira. Não jogava bridge. Era só mirone. Foi juiz militar e nesse cargo era de um cuidado e de uma honradez infinitos. Depois começou a estudar história militar e também aí surpreendia o seu brio e bom senso. Era o último de uma série de amigos de meu pai que foi quem partiu em primeiro lugar. Provaram-me mesmo antes do 25 de Abril que podia haver militares de carreira sérios, dignos e honrados. Mesmo que não jogassem bridge.

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