15 fevereiro 2007

O tempo esse grande simplificador 6

O Zeca a saque

“Senta-te aqui que te quero apresentar um gajo porreiro!” – disse-me certa tarde o Jaime Magalhães Lima, no Mandarim de saudosa memória. O Mandarim agora é um mac-qualquer coisa ou um entreposto de hamburguers , nem sei bem. Naquele tempo era um café, snack bar e restaurante como devia ser, estava aberto até às duas da matina, hora em que, cabisbaixos decidíamos atravessar a Praça da República e desaguar no Moçambique (“capital de Angola, é uma homenagem”, dizia o Fontes, seu proprietário). “Os senhores doutores emborracham-se no Mandarim e vêm vomitar para o meu estabelecimento." –outra vez o Fontes (em frase imortal dirigida ao João Amaral que Deus tem e ao Zé Quitério que ainda por cá anda sempre de olho onde se come bem semanalmente à disposição dos fregueses com aquelas crónicas inteligentes e bem escritas. Saravah Zé!).
Cortemos a eito esta digressão para introduzir o personagem desta crónica: o Zé Afonso chegado não sei donde por via de um exame qualquer de Pedagógicas ou coisa semelhante, com um par de poemas a tiracolo e entre eles o “ Meninos do Bairro Negro”. Eu o Jaime lemo-lo em primeira mão aturdidos, comovidos, entusiasmados e mais sete adjectivos que alguma leitora caridosa queira emprestar. Éramos, dizia o Zeca, os primeiros leitores, vejam só! Isto é uma medalha que trago guardada há quarenta e tal anos.
O Zeca não me era inteiramente desconhecido, claro, que Coimbra era uma aldeia, mas, de facto, nos primeiros sessentas aparecia de fugida, porque já dava umas aulas não sei bem onde. Todavia conheciam-se-lhe uns fados, a Balada do Outono, que o meu Pai, coimbrinha dos quatro costados, todo associação dos antigos estudantes lá pelas áfricas, muito faduncheiro, achava de grande qualidade. Ou seja, o Zeca fazia a ponte entre a tradição pura e dura e os novos tempos de que ele seria o grande cantor.
A partir desse momento tive mais uma amigo e o Zeca mais um admirador.
A partir daí fomo-nos encontrando sempre assim, quase de surpresa, num recital, numa vinda a Coimbra, num disco novo.

2 E nisto de discos novos, muito haveria que contar. Por exemplo: anunciava-se sigilosamente um disco do Zeca. O segredo, claro, era manteiga em focinho de cão: meia hora depois cinquenta indivíduos ensimesmados encontravam-se por acaso na Casa Neves, na Baixa, encomendando em voz baixa o disco. A menina do balcão puxava de um caderninho e dizia, igualmente conspiratória: "fica com o nº 96." Porra, pensávamos já há quase cem à minha frente, como é que isto foi possível? E saíamos recatadamente, sob o olhar invejoso dos que estavam na bicha, para ir beber um café à Brasileira. Aí, sempre do lado esquerdo de quem entrava, em mesas carregadas de oposicráticos, bichanávamos: vai sair mais um disco do Zeca! "Já encomendei”, respondia invariavelmente o António da Cunha Pinto, autor (sob o nome de Lionel Brim) excelente de livros que ninguém lê por serem difíceis!!!

3 Uma noite no Avenida, eu e o Anto, nem acreditávamos no que ouvíamos: O Zeca cantava coisas completamente diferentes do que lhe conhecíamos (a formiga no carreiro etc... e o António Lopes Dias, arrepiado, murmurava: "este gajo! Este gajo!" E ia nesta ladainha um respeito, uma admiração, um saber do ofício de poetar que nem vos conto!
E o resto da malta? Pois o resto da malta, passada a primeira e abissal estupefacção, habituava-se, aplaudia e no dia seguinte já cantavam num café, numa república ou em qualquer outro sítio as novas coisas do Zeca. Com naturalidade! Como se sempre as tivessem ouvido. E nisto, de ouvir, decorar, cantar, havia duas criaturas espantosas: o António Mendes de Abreu e o João Nazaré (um morto e saudoso e outro vivo e igual ao que era!). Foram estas duas fadas madrinhas que, num recital fabuloso nos jardins da AAC que recordaram ao Zeca uma cantiga de que ele se esquecera: “...ouvem-se já os rumores , ouvem-se já os clamores...” etc. O Zeca, muito sério só dizia: "Ó pá isso até nem é nada mau!" Previdentemente, eu já tinha o texto escrito, “Toma lá, vê se o não perdes”.

4 Numa manhã ensolarada subia eu a rua de Santo António –desculpem-me lá mas eu prefiro o doutor da igreja mesmo franciscano e santo, à homenagem à revolta do 31 de Janeiro, erro estúpido e trágico provocado pelo voluntarismo carbonário de uns quantos republicanos de cabeça quente. - e dou de caras com o César Oliveira que vinha triunfante: Ele e o Mário Brochado Coelho tinham negociado um excelente contrato para o Zeca com uma editora do Porto (seria a Orfeu?). Se bem me lembro aquilo dava por mês uns tostões interessantes. Pela primeira vez, asseverava-me o César, o Zeca é decentemente pago.

5 Em Junho de 77, estava em Madrid com um par de amigos e militantes de uma coisa passageira que se chamou MSU (Movimento Socialista Unificado) e que mais não era do que a última tentativa de ex-militantes do MES, da LUAR e da FSP de organizarem um grupo político entre o PC e as extremas esquerdas maoístas, trotskistas e similares. Amigos espanhóis falaram-nos de um concerto onde o Zeca seria a grande estrela. Tenho ideia de que terá sido em Vallecas grande zona de concentração operária e emigrante. O Zeca entusiasmou-se com a multidão que era quase toda constituída por activistas políticos de duas boas dezenas de partidos minoritários e autonomistas. Vai daí largou, entre duas cantigas, um par de insultos ao establishment local e português onde um filho da puta rimaria com dois merda. Quando lhe fui falar, o Zé, sempre pundonoroso, perguntou-me se não teria sido excessivo. “Ó Zé deixa-te disso, pá, estes gajos não dizem duas sem um caray e um coño só para fazer de virgulas, pá!”. – “Ai, fico mais descansado!

6 Em Maio de 1983, a Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura, atreve-se, no meio de um escândalo murmurado pelos corredores lisboetas, a programar José Afonso no Auditório Nacional Carlos Alberto. Foi a primeira vez que um cantor de intervenção pisou um palco nacional. Só a história do contrato com o Zé daria uma novela. Por ele, estava tudo bem, desde que lhe pagassem um cachet de 30 contos! Mas nós queríamos pagar mais, ou melhor, queríamos pagar-lhe como pagávamos a qualquer artista que vinha ao ANCA. Em resumidas contas, achávamos que deveriam ser pagas as despesas de transporte no foguete e em primeira classe, o alojamento num hotel e as refeições. Espantado, o Zé perguntava se aquilo não era um abuso. Que não dizíamos, é o que se paga a qualquer concertista que cá vem. Obtido com algum esforço o acordo com o Zeca (Olhem que eu não vos quero causar chatices! Isto assim fica caro!) fizemos as contas ao total da despesa, dividimo-la pelo número de lugares do ANCA e fixamos à justa o preço dos bilhetes. Naquele tempo, achávamos que não era preciso ganhar dinheiro. Convinha apenas não o perder. Os dois concertos foram um êxito absoluto. Salas cheias, gente sem bilhete nas coxias, enfim um delírio. O Zeca entusiasmado. Nós já cheios de projectos para os outros cantores. E um balde de água fria: um ardiloso jornalista de um jornaleco miserável conseguiu convencer o Zeca de que o tínhamos explorado. Ou pelo menos de que viera cantar “por meia dúzia de cascas de amendoins” (sic).
Imaginem-me, desvairado, a correr para Lisboa, para dizer duas fortes ao Zeca. Cartas para os jornais, enfim, o habitual. O Zeca já nem se lembrava dos amendoins. “- Ó pá eu disse isso? Não acredito! Mas desminto, queres?”
Que é que se pode fazer a um tipo destes? Convidá-lo para jantar na “Trave” com o Sérgio, o Vitorino, e o Zé Mário que só diziam: nós queremos ser tratados como o Zeca!
E foram.
Nos corredores da SEC os murmúrios indignados subiam de tom. “Aquela gente lá de cima...”

7 Os anos foram passando, o Zeca voltou ao ANCA, nunca mais ninguém falou de amendoins, lá jantávamos, falando disto e daquilo mas a doença ia minando aquele corpo frágil e gasto. Até que um dia, de Fevereiro de há vinte anos a notícia correu. Ou melhor: nesse dia cumpriu-se um antiga ameaça, vivida irremediavelmente por quem ia sabendo daquele mal tenaz que o desfazia pouco a pouco, que o matava lentamente.

8 Vinte anos depois que resta disto tudo? Muita música da melhor que se fez em Portugal. Um par de poemas dignos de figurar em qualquer antologia. A sombra vacilante de um homem generoso que se expôs a tudo. E isto bastaria para justificar o Zeca. Porque é muito, é do melhor que por aqueles anos cinquenta, sessenta, setenta e oitenta se fez.
Não é preciso dizer que o Zeca é maior do que os Beatles porque não é, nem nunca quis ser. Não é preciso dizer que o Zeca é o Bach ou o Mozart português, porque não o é nem o poderia ser. E se ouvisse alguém dizer isso, primeiro rir-se-ia, depois ficaria sufocado e finalmente talvez dissesse, a tempo e com razão, o palavrão de Vallecas em 77.

O José Afonso foi um cometa. Seminal, no sentido em que abriu portas a muitos outros com o seu exemplo, a sua determinação o seu amor pela música a sua imensa bonomia e a sua generosidade ainda maior. Fez-se musical, politica e culturalmente em Coimbra desde os bancos do D João III até à Faculdade de Letras. Bebeu da tradição popular, da Beira aos Açores, da cantiga coimbrã e de alguns ecos do Lourenço Marques onde viveu. Há naquele ouvido privilegiado muita “marrebenta”, muito, ou algum, kwela da África do Sul tudo temperado por uma solidariedade nunca desmentida com a população negra. Há também, queiram ou não, bastante surrealismo, boas leituras, as melhores diria eu, e essas foram sem dúvida adquiridas, pensadas, mastigadas numa Coimbra que, como a tantos, o atraía e repelia.
Para a minha geração, o Zeca foi um porta voz, uma voz de esperança e um apoio absoluto. Não foi beattle nem Mozart. Não sabia, não poderia, não queria sê-lo.
Não o diminuam com essas comparações.

Vai esta em memória de três justos, de três amigos do Zé Afonso e meus: César Oliveira, António Mendes de Abreu e João Amaral.
E com um abraço para alguns vivos: Mário Brochado Coelho, José Quitério, João Nazaré e Rui Pato , grande acompanhante do Zé.

5 comentários:

M.C.R. disse...

A velhice não perdoa. Esqueci-me de escrever este pequeno apontamento: as canções "canta o coolie" (eu vou ser como a toupeira) "coro dos tribunais", "canta o comerciante","canta o juiz" (coro dos tribunais) e "ali está o rio" (enquanto há força)foram feitas para um espectáculo do CITAC "A excepção e a Regra" de Brecht, com encenação de Ricardo Salvat. Tal espectáculo foi proibido pela censura em 1969, ano da crise académica mas nós, os do Citac apresentamo-lo em sessões clandestinas e não inteiramente montado.
Antes que mais alguém se esqueça!

António P. disse...

Caro MCR,
Belissimo o seu "post" sobre esse cometa que foi o Zeca.
Marcou a sua geração e muitas outras. Incluida a minha. Vi-o pela 1ª vez em Luanda ( 1962 ??) como também filho de um coimbrinha das AAEC que havia nas colónias, neste caso a de Luanda.
Cumprimentos

josé disse...

M.C.R.:

O José Afonso é um dos nossos maiores músicos, de música popular de todos os tempos, no meu entender.

Maior do que...a Amália! O que eu fui dizer...

E no entanto, defendia um modelo de sociedade completamente errado, do meu ponto de vista. Não obstante, por causa disso, compôs músicas de antologia e usou letras que soam bem mesmo com a mensagem errada.

Conhece uma das primeiras entrevistas que o José Afonso deu, logo depois do 25 de Abril? Foi á Flama e guardo-a para aí. O tom, nada tem a ver com a denúncia do "fascismo", ou queixas pelas perseguições ou coisas assim. Merecia ser relida. Acho que já transcrevi partes, numa das minhas incursões pelo passado para repôr a verdade que eu conhecia e que tem sido revista.

É claro que estas suas crónicas são interessantíssimas. Venham mais!

M.C.R. disse...

Eu tenho sempre algum receio quando me pronuncio sobre as opções políticas do Zeca. Acho que a sua enorme generosidade, a sua poética ingenuidade o fizeram por vezes dizer mais do que queria, ou até o que não queria. Por isso o título: o Zeca a saque. Poderia juntar aqui os tesmunhos de amigos de sempre do Zeca, desde o liceu, até. Mas isso também anda piublicado aqui e ali- acho que cada testemunha mostra um Zeca diferente. De certeza que também eu não falto a essa regra. O tempo aclarará muito do que hoje se diz. E reduzirá o Zeca a sua enorme e verdadeira dimensão. Sem hagiografos desnecessários e, por vezes, insensatos...
compreende, meu caro José?

M.C.R. disse...

Obrigado aos meus caros comentaristas que são mais generosos do que deviam mas enfim... um tipo gosta sempre de ouvir elogios. .. desde que não me subam á cabecinha...
Um abraço