24 março 2007

estes dias que passam 51



Eu estava lá!

Passam hoje quarenta e cinco anos. Quarenta e cinco anos, já! Nem acredito mas tenho de me render à evidência: há quarenta e cinco anos este que estas escreve metia-se, muito cedo e sorrateiro, com mais umas dúzias de colegas e amigos, num comboio em direcção a Lisboa. Já perto, alguém sugeriu que nos apeássemos e tomássemos um desses comboios de cercanias que paravam em sítios inverosimeis. E graças a esse pequeno expediente chegámos sãos e salvos à estação de Entrecampos onde rapidamente saímos e em grupo cerrado, “capas negras, rosas negras”, chegámos à Cidade Universitária.
Quem nos viu chegar –e seríamos poucos mais de cem, se tantos éramos... – passou a palavra: “São os de Coimbra que vêm!” e entrámos num espaço cheio de raparigas e rapazes da nossa idade entre aplausos entusiásticos, abraços, gritos, muito vivório a que correspondíamos com o velho e coimbrão “efe-erre-á”.
Em poucos minutos já dispersos soubemos que a polícia estava por perto, que já houvera uns tantos ou quantos choques entre ela e a malta estudantil e que começavam a surgir notícias de que vários autocarros vindos de Coimbra, estavam a ter dificuldades para chegar a Lisboa. De facto, patrulhas mistas da GNR e da PIDE já teriam mandado retroceder alguns desses autocarros. E à Estação de Santa Apolónia acabava de chegar um outro contingente policial que, supunha-se, iria parar os colegas do Porto e de Coimbra que viriam em comboios depois do nosso.
A quarenta e cinco anos de distância compreender-se-á que as memorias exactas desse Dia do Estudante, se confundam um pouco. Recordo-me todavia que, aqui e ali, na zona da Cidade Universitária se realizavam pequenos comícios ao mesmo tempo que nos contavam o que até ao momento se passara e que, como de costume, se reduzia a cargas da polícia, pancadaria e fugas precipitadas para todo o lado. Porém, o que era novo e diferente, é que cessadas as cargas voltavam a juntar-se os perseguidos e reocupavam os lugares de onde tinham sido anteriormente expulsos. Uma segunda lembrança vivíssima é da presença de inúmeras raparigas que não desarmavam, não fugiam antes nos encorajavam com a sua enorme serenidade.
A história do dia do estudante é por demais conhecida e já hoje o Público a recordou: a ocupação policial da zona universitária, a mediação do reitor da Universidade de Lisboa, Professor Doutor Marcello Caetano. A breve acalmia nas hostilidades. O convite a todos os estudantes presentes para se dirigirem a um “restaurante Castanheira” (que nunca conheci e onde nunca cheguei...) para jantar dado que a cantina fora encerrada pela polícia. A carga policial em pleno Campo Grande quando, sem aviso, a polícia de choque interveio contra as centenas ou milhares (que sei eu) de estudantes que pacificamente se dirigiam para o restaurante. As correrias sem fim a que isto deu lugar. A especial ferocidade dos polícias em relação às capas e batinas que denunciavam não só o estudante a espancar mas, mais ainda, o estudante vicioso e coimbrão que conseguira passar as apertadas barreiras estabelecidas à volta de Lisboa.
A enorme solidariedade dos nossos colegas lisboetas que nos deram casa e cama e comida... E por vezes nos emprestavam roupa para passarmos mais despercebidos. O milagre de nos encontrarmos em pequenos grupos noite fora em sítios para a maioria de nós desconhecidos. Pela minha parte alguém me levou ao CUJ (clube universitário de jazz) e depois por aí fora até às tantas da manhã, numa ânsia de falar, de contar, de prometer solidariedade e de preparar o dia seguinte, enfim as horas seguintes, numa tentativa de vencer a polícia voltando a reunirmo-nos. Se a memória não me falha, no dia seguinte pela manhã encontramo-nos uns tantos ou quantos na sede da pró-associação de Medicina, em pleno Hospital de Santa Maria. E, se continuo a recordar-me bem, também esse local foi invadido pela polícia comandada por um certo capitão Maltês que, espantosamente, garantiu aos de capa e batina saída segura sem bastonadas. Saímos sim, mas todos, de Coimbra e Lisboa mais alguns do Porto que terão conseguido passar a malha policial sem serem mandados para trás.
Depois... regressamos a Coimbra, sem mais problemas, mas decididos a fazer pagar caro as bastonadas e as mentiras que rapidamente o poder pôs a circular desqualificando as Associações de Estudantes e reduzindo a batalha campal a uma suave admoestação policial a meia dúzia de estúrdios mal intencionados.
A greve foi proclamada em Coimbra e Lisboa e há que dizê-lo foi fortemente seguida mesmo se, em Coimbra, as franjas mais conservadoras argumentassem que a questão era meramente lisboeta e que “a Academia não fora ofendida nem atacada”. Pela primeira vez, provavelmente, o princípio puro e simples da solidariedade venceu (e convenceu...) o argumento especioso e isolacionista proclamado pela direita coimbrã. Acho que, tantos anos passados, podemos, os de Coimbra, dizer que honrámos os nosso compromissos. Claro que a crise estudantil de 62 foi mais sentida e vivida em Lisboa, tanto mais que, só tardiamente a polícia começou a reprimir as movimentações coimbrãs. Mas os números de estudantes posteriormente presos, processados e expulsos da universidade provam que Coimbra esteve sempre envolvida e solidária. De resto também ali a Associação foi encerrada, a Queima das Fitas foi suspensa e não chegou a realizar-se para já não falar nos jogos de futebol que envolviam a Associação Académica em que se registaram violentas manifestações.
Velhos amigos meus, entrevistados, dizem em substância que 62 foi para eles um ano decisivo e de viragem. Também para mim e para muitos, uma multidão, que em Coimbra estudavam. E curiosamente, sete anos depois, em 69, sob condicionalismos diferentes é verdade, foi ainda a recordação de 62 um dos motores da greve. Com uma diferença: em 69, foi Coimbra em peso que se levantou. E tão forte e unida se mostrou a massa estudantil que essa greve total conseguiu o impossível: a demissão do reitor e do ministro, a nomeação de um reitor da confiança dos estudantes, o levantamento dos castigos aplicados aos dirigentes estudantis, a criação de épocas especiais de exame e, surpresa das surpresas, o regresso a Coimbra de todos os estudantes incorporados por castigo na tropa.
Agora, hoje, umas centenas de “sexagenários” vão juntar-se e celebrar esse já longínquo combate. Por várias razões (ou por uma só: esquecimento e desatenção!) não estarei lá fisicamente. Gostava porém de dizer que é como se estivesse. Há coisas que não esquecem. E 62, esses dias febris de Março, Abril e Maio, como os dos anos que se seguiram, podem confundir-se na memória, podem trazer lembranças penosas de prisão e de medo, de conspiração e de fúria, de desânimo (que também houve), de vinho e rosas, mas têm o cheiro fortíssimo da solidariedade e da vida que mereceu ser vivida.
Vai esta em memória do Vítor Wengorovius, do Jorge Aguiar e dos dois Abílios (um de Lisboa e outro de Coimbra) e do Francisco Cordeiro (Porto). E de tantos outros que não se nomeiam mas de quem seguramente daqui a pouco em Lisboa haverá quem se lembre. Com uma lágrima e um sorriso.
Isto não é o dia de S. Crispim de Henrique V e de Shakespeare, mas também nós poderemos dizer como os sobreviventes vitoriosos de Azincourt: “Amanhã é o dia do Estudante”. E cada um “beberá à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos” porque aquela “jornada enobrece(rá) a sua condição”.
E dirá, comigo, “eu estava lá”. E comigo estavam também alguns felizmente vivos, frequentadores deste blog, João Vasconcelos Costa, Rui Namorado e António Lopes Dias. Um abraço, malta!

roubei ao João Tunes e ao seu excelente blog Agua Lisa 6 esta reprodução do emblema do dia do Estudante de 62. Pecado confessado está meio perdoado. E o JT é penso desta geração.
Osmeus leitores perdoarão o tom de "velho combatente" mas que querem? eu não resisto a certas evocações e certas efemérides: é o meu passado e mais do que isso, retrata a minha "construção" como homem e como cidadão.

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