Passa-se qualquer coisa com o tempo. O quê não sei, mas que se passa, ai isso passa. Como diria o meu Pai: é como ginjas! Ou seja, vai de qualquer maneira, está no papo, enfim todas essas expressões que se vão perdendo e que queriam dizer que uma coisa era certa, certíssima.
Estamos na semana da Páscoa, o mesmo é dizer, numa semana que dantes nos convidava a uma longa e atribulada viajem até ao Algarve.
Atribulada é um modo de dizer que este que em baixo se assina, sempre (ou quase sempre) dividiu a viajem em duas partes. Na primeira tratava-se de chegar a Évora e ao Fialho (desculpem lá mas para mim, que até tenho costela alentejana, Évora é o Fialho e o resto paisagem, de todo em todo incomestível.) Aí “enchia-se a mula” ou mais educadamente dava-se desesperadamente ao dente. O Fialho e o Tavares, o antigo, que este novo ainda não experimentei, são dois templos da grande gastronomia, pague-se o que se pagar.
A propósito não resisto a contar uma história em que actua o caríssimo Fernando Pereira Marques. Nos idos de 70, alguma rapaziada da melhor que por aí havia criou uma pequena organização política chamada GIS (Grupo de Intervenção Socialista). O dito GIS, filho bastardo do MES, “pensava”, elucubrava, fazia política de influência. Como grupo era pequeno: cabiam todos numa mesa comprida no desaparecido restaurante do hotel Florida que ficava perto do escritório do Jorge Sampaio, alma daquilo. Aliás, comiam mal. Eu durante anos frequentei-lhes a mesa amável e convivial e confesso que isso era já uma grande prova de amizade pelo Joaquim Mestre, o Luís Nunes de Almeida, o Zé Manuel Galvão Teles, o Nuno Brederode e restante comandita à volta do Jorge. O Nuno, de resto, desconfiava duns profiterolles a que ele atribuía a consistência do cimento fresquinho acabado de sair da misturadora. De todo o modo era uma mesa divertida, inteligente e politicamente incorrecta. Isso me bastou para a frequentar ao almoço sempre que ia a Lisboa e naquela altura não se passava semana sem lá estar.
Continuando, o GIS resolveu fazer um grande encontro cheio de gente para discutir as políticas de transição e não sei que mais. Apareceu tudo, desde comunistas à beira de uma crise de nervos e de ruptura, militares políticos e político-militares, força de malta órfã do MES, esquerdas várias, enfim um belo carnaval. Do que se discutiu, e eu próprio fartei-me de dar à língua, já não me recordo, mas havemos de ter salvo o mundo, Portugal, a esquerda e o socialismo de imensas tragédias. E de tal modo teremos ficado imbuídos desse alto feito que, a instâncias minhas, um numeroso grupo de coloquiantes resolveram ir jantar ao Tavares que nesse tempo mantinha uma sala no primeiro andar, não tão cara como a do rés do chão mas de excelente cozinha. E foi aí, naquele momento angustioso em que as pessoas começam a subir as escadas que o Pereira Marques (na altura da UEDS ou algo semelhante) parou e perguntou aterrado: E se algum operário me vê aqui a subir para um antro da mais refinada burguesia? Tranquilizei-o garantindo que os operários gastrónomos preferiam a Solmar, na rua das Portas de Santo Antão, e o Fernando ganhou a coragem suficiente para subir os últimos degraus. E comeu-se muito bem, como aliás merecíamos.
Todavia, tudo isto era a propósito da longa peregrinação até às areias algarvias. Portanto, este vosso criado afrontava os perigos e as canseiras do caminho reabastecendo em Évora mesmo que isso significasse mais cento e tal quilómetros. Digamos que era a minha penitência pascal.
Depois o Algarve era, nesse tempo e nessa quadra, um sítio excelente para dar uns mergulhos, comer muito peixe e não poucos mariscos, frequentar até ao encerramento um par de discotecas, namorar se possível, enfim, era um merecido intervalo na labuta do dia a dia que ainda só conhecia uma única época de férias: o verão.
Pois bem, de acordo com os boletins meteorológicos e a experiência pessoal, basta pôr o nariz fora de casa para se ver que está frio, que de quando em quando chove, enfim, não dá de todo em todo para avançar – se para tal houvesse a mesma vontade e paixão – para o Algarve.
Pensei, primeiro, que era a idade. A minha, claro. Depois, recorri à melancolia de que já aqui falei, mas hoje ela faltou ao encontro. Em desespero de causa, relembrei a imortal Arletty e murmurei in imo pectore “atmosphère, atmosphère”, mesmo que visto queira dizer pouco ou sequer nada. Fica bem, uma piscadela de olhos a um cinema bem menos inocente e sevandija do que o de hoje, um cinema a preto e branco que porém permitia ao espectador gozar uma paleta incomensuravelmente maior do que a maioria do cinema que agora se faz. (Esta, sim, traz a marca da idade... E do gosto... e de uma outra coisa bem mais grave...agora deixou de haver cinemas, para haver, pelo menos entre nós, um único cinema, o americano. E mesmo para quem ,como eu, entende que o cinema americano é imprescindível, a verdade é que as outras cinematografias são essenciais para a gente perceber e poder distinguir o bom do mau, o inteligente do fútil, poder apreciar como se deve Ford, Capra, Scorcese ou Griffith para não referir mais uma boa centena de grandes realizadores americanos).
E, como de costume, mau costume, eis que comecei arrenegando da primavera que não entra e acabei a falar de cinema. Acabei não, porque cada vez mais me faltam aquelas grandes salas, cheias de gente, que seguia ansiosa, o fio da meada, respirava a compasso e se, o herói no último minuto, descobria a marosca que lhe estavam a preparar, era um grito em uníssono, um ah soltado por mil gargantas e por vezes mesmo uma salva de palmas. Agora só se ouve o ruminar do popcorn ele mesmo industrializado e desenxabido. Razão tinha a imortal Arlety: o que falta, o que falta mesmo para animar a malta é a atmosphère.
na ilustração: fotogramas de Arletty. O título parafraseia uma canção de Leo Ferré: o seu a seu dono, por muito que me custe.
Estamos na semana da Páscoa, o mesmo é dizer, numa semana que dantes nos convidava a uma longa e atribulada viajem até ao Algarve.
Atribulada é um modo de dizer que este que em baixo se assina, sempre (ou quase sempre) dividiu a viajem em duas partes. Na primeira tratava-se de chegar a Évora e ao Fialho (desculpem lá mas para mim, que até tenho costela alentejana, Évora é o Fialho e o resto paisagem, de todo em todo incomestível.) Aí “enchia-se a mula” ou mais educadamente dava-se desesperadamente ao dente. O Fialho e o Tavares, o antigo, que este novo ainda não experimentei, são dois templos da grande gastronomia, pague-se o que se pagar.
A propósito não resisto a contar uma história em que actua o caríssimo Fernando Pereira Marques. Nos idos de 70, alguma rapaziada da melhor que por aí havia criou uma pequena organização política chamada GIS (Grupo de Intervenção Socialista). O dito GIS, filho bastardo do MES, “pensava”, elucubrava, fazia política de influência. Como grupo era pequeno: cabiam todos numa mesa comprida no desaparecido restaurante do hotel Florida que ficava perto do escritório do Jorge Sampaio, alma daquilo. Aliás, comiam mal. Eu durante anos frequentei-lhes a mesa amável e convivial e confesso que isso era já uma grande prova de amizade pelo Joaquim Mestre, o Luís Nunes de Almeida, o Zé Manuel Galvão Teles, o Nuno Brederode e restante comandita à volta do Jorge. O Nuno, de resto, desconfiava duns profiterolles a que ele atribuía a consistência do cimento fresquinho acabado de sair da misturadora. De todo o modo era uma mesa divertida, inteligente e politicamente incorrecta. Isso me bastou para a frequentar ao almoço sempre que ia a Lisboa e naquela altura não se passava semana sem lá estar.
Continuando, o GIS resolveu fazer um grande encontro cheio de gente para discutir as políticas de transição e não sei que mais. Apareceu tudo, desde comunistas à beira de uma crise de nervos e de ruptura, militares políticos e político-militares, força de malta órfã do MES, esquerdas várias, enfim um belo carnaval. Do que se discutiu, e eu próprio fartei-me de dar à língua, já não me recordo, mas havemos de ter salvo o mundo, Portugal, a esquerda e o socialismo de imensas tragédias. E de tal modo teremos ficado imbuídos desse alto feito que, a instâncias minhas, um numeroso grupo de coloquiantes resolveram ir jantar ao Tavares que nesse tempo mantinha uma sala no primeiro andar, não tão cara como a do rés do chão mas de excelente cozinha. E foi aí, naquele momento angustioso em que as pessoas começam a subir as escadas que o Pereira Marques (na altura da UEDS ou algo semelhante) parou e perguntou aterrado: E se algum operário me vê aqui a subir para um antro da mais refinada burguesia? Tranquilizei-o garantindo que os operários gastrónomos preferiam a Solmar, na rua das Portas de Santo Antão, e o Fernando ganhou a coragem suficiente para subir os últimos degraus. E comeu-se muito bem, como aliás merecíamos.
Todavia, tudo isto era a propósito da longa peregrinação até às areias algarvias. Portanto, este vosso criado afrontava os perigos e as canseiras do caminho reabastecendo em Évora mesmo que isso significasse mais cento e tal quilómetros. Digamos que era a minha penitência pascal.
Depois o Algarve era, nesse tempo e nessa quadra, um sítio excelente para dar uns mergulhos, comer muito peixe e não poucos mariscos, frequentar até ao encerramento um par de discotecas, namorar se possível, enfim, era um merecido intervalo na labuta do dia a dia que ainda só conhecia uma única época de férias: o verão.
Pois bem, de acordo com os boletins meteorológicos e a experiência pessoal, basta pôr o nariz fora de casa para se ver que está frio, que de quando em quando chove, enfim, não dá de todo em todo para avançar – se para tal houvesse a mesma vontade e paixão – para o Algarve.
Pensei, primeiro, que era a idade. A minha, claro. Depois, recorri à melancolia de que já aqui falei, mas hoje ela faltou ao encontro. Em desespero de causa, relembrei a imortal Arletty e murmurei in imo pectore “atmosphère, atmosphère”, mesmo que visto queira dizer pouco ou sequer nada. Fica bem, uma piscadela de olhos a um cinema bem menos inocente e sevandija do que o de hoje, um cinema a preto e branco que porém permitia ao espectador gozar uma paleta incomensuravelmente maior do que a maioria do cinema que agora se faz. (Esta, sim, traz a marca da idade... E do gosto... e de uma outra coisa bem mais grave...agora deixou de haver cinemas, para haver, pelo menos entre nós, um único cinema, o americano. E mesmo para quem ,como eu, entende que o cinema americano é imprescindível, a verdade é que as outras cinematografias são essenciais para a gente perceber e poder distinguir o bom do mau, o inteligente do fútil, poder apreciar como se deve Ford, Capra, Scorcese ou Griffith para não referir mais uma boa centena de grandes realizadores americanos).
E, como de costume, mau costume, eis que comecei arrenegando da primavera que não entra e acabei a falar de cinema. Acabei não, porque cada vez mais me faltam aquelas grandes salas, cheias de gente, que seguia ansiosa, o fio da meada, respirava a compasso e se, o herói no último minuto, descobria a marosca que lhe estavam a preparar, era um grito em uníssono, um ah soltado por mil gargantas e por vezes mesmo uma salva de palmas. Agora só se ouve o ruminar do popcorn ele mesmo industrializado e desenxabido. Razão tinha a imortal Arlety: o que falta, o que falta mesmo para animar a malta é a atmosphère.
na ilustração: fotogramas de Arletty. O título parafraseia uma canção de Leo Ferré: o seu a seu dono, por muito que me custe.
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