27 abril 2007

Au Bonheur des Dames 64

Socorro, que eu já nem sei se publiquei isto! apareceu-me, de supetão, vindo de não sei que catacumbas, este texto provavelmente feito para me lembrar que entrei na velocidade de cruzeiro para nenhures. Algum(a) leitor(a) será tão generoso e de tão boa memória que me possa dizer se "isto" já deu à costa nestas paragens incursionistas?

sixty five!

Então querem lá ver que este que estas pobres linhas vai, dificultosamente, alinhavando no iBook G4 (outra das muitas bizarrias do abaixo assinado) está a entrar na 3ª Idade! In The golden age diria algum cínico mais espevitado se entendesse atrever-se com um ancião ou, melhor, se achasse que valia a pena dar uma canelada no escriba. Qual golden qual quê? Golden só as maçãs, e Deus sabe que não têm graça nenhuma, sabem a serrim açucarado, todas iguais, redondas e brilhantes, todas com ar de quem nunca viu um bicho da fruta, coitadas, nem sabem o que perderam (isto é uma metáfora da canção do bandido que um gajo com 65 pazadas nos lombos vergados, poderia tentar cantar a uma raparigota boa de ver e melhor de apalpar, como dizia o mestre C.J.Cela).
Já me perdi. Voltando ao caso sub-judice: sessenta e cinco calendários já se gastaram em tão fraca criatura. Não é o começo do sexagésimo quinto é o fim dele. Isto é o mesmo que dizer que, quando se fazem 65, perfazem-se! Ou, por outras palavras mais amáveis: já cá cantam sessenta e cinco perfeitos!
Perfeitos, o tanas e o badanas! Ou, em alemão que é mais fino: o Tanhäuser e o Badanhäuser! É que o artista que está a fazer este perigoso número de equilibrista no circo da vida, perante a apatia desconsolada de uma plateia que veio para ver a domadora de tigres e o palhaço rico, de perfeito, pouco ou nada! Em compensação, é uma antologia de imperfeições: canhoto, livre pensador, anarqueirão, leitor omnívoro, péssimo jogador de futebol na praia de Buarcos (ai há quantos anos...), tristonho segundo as marés, olho pingão e chorão, jogador de bridge sem parceiros (vivos) e mais um und so weiter (ah, ah! É et cœtera em alemão, outra vez! Que Kulturra! ) de defeitos maiores e menores de descrição difícil e acentuada indiscrição.
Parece que, entre outros benefícios, a Carris, o SMTPP, a CP e mais uns quantos organismos transportadores, oferecem descontos no transporte deste cadáver adiado. É uma coisa também “golden” que funciona nas horas mortas, como convém. E a TAP?, pergunta-se. Também dará uma abébia nos voos para Paris, Roma, Berlim e Amesterdão? Nem que seja sem direito a estar sentado, ou sentado junto dos camafeus que eles agora arranjam como hospedeiras, livra, que falta de gosto. E logo eu, que me lembro de uns borrachos de primeira que, se calhar, eram notoriamente incompetentes mas que tinham cá um palminho de cara para já não falar no corpinho. Também é verdade que naquele tempo de super-constelations lentos, pesados, barulhentos era mister entreter o pagode com a visão de umas pequenas geitosonas... Ah que vôos esses: dois inteiros dias para chegar à Beira (Moçambique) com escalas admiráveis: Kano, Nyamey, Luanda, Salisburia etc... E o avião a voar a dois. três mil metros e a gente a ver tudo lá em baixo, floresta, savana, deserto, caminhos, rios, manadas, aldeias, sei lá que mais! Melhor!, sei, sim senhor: a entrada do rio Zaire (ou Congo, tanto me faz) no mar! Uma imensa azagaia de águas escuras no azul do mar. Quilómetros e quilómetros de água negra vinda das grandes florestas, do coração das trevas, onde um Kurz invisível tecia o inesgotável novelo do colonialismo selvagem, do neo-colonialismo de óculos escuros, enfim deste post-colonialismo que, por aquelas bandas, se ceva continuamente em morte, guerra, sida e horror, modernos cavaleiros de um inextinguível apocalipse que também não nos poupará.
E perdi-me de novo! Arre que isto é demais! Ou, se calhar não. Apenas outro sinal desses já longos anos que se perfazem, perfeitos só por ironia, imperfeitos por vocação, por caturrice (e ele a dar-lhe) e porque sim!
Já me estou a ver, à beira de um passeio perdido a pensar nem eu sei bem em quê e, Zás!, chega um matulão ou uma matulinha, é igual, vestido de escoteiro e pega-me pelo braço e ala que se faz tarde, depressa para o outro lado da rua se não for para o outro lado da vida. Ai, eu odeio escuteiros, aliás odeio fardas, sejam elas civis ou militares ou desse outro indefinido género como os aventais e demais parafernália maçónica, cuja utilidade nunca vislumbrei, nem a da fardeta aventalóide nem a organização em si mesma, que parece tão ridícula e extemporânea quanto a de uns novos e redivivos templários que agora deram em aparecer, aureolados pelo código davinci ou por outra impostura do mesmo teor, arre, que esta gente não dá tréguas a quem por cá passa amavelmente, com alguma angústia é certo, mas também com um sorriso, ou o esboço dele, uma comoção, várias até, um braço fraterno, o pão e o queijo e o vinho em cima da mesa aberta a quem chegar, quando chegar, a quem entrar e que entre por bem.
Ai amigos meus, escassas leitoras gentis, a quem sempre me encomendei, que fraca viajem fiz. E, no entanto, que de sonhos, de cantigas, de promessas, com que enchi a minha pobre bateirinha (barco mais figueirense não há, proa alta e curva, muito pintada, corpo longo e esguio, leme a condizer) para navegar perto da costa se possível, entregue aos ventos e às correntes em caso de temporal, pouca fé e muita esperança, tanto mar, tanto mar, pouca terra pouca terra, que isto é o destino de quem nasce em terras de Espanha, areias de Portugal, com anunciou o gajeiro lá do mastro real. Que alvíssaras pedirei por tão pouca fazenda trazida de umas índias que já não o eram, para um Restelo que nunca quis? Velho sim, mas de qualquer outra banda que essa!
E, agora, aqui estou metaforicamente tão nu como nasci, mas com muita cicatriz, muitos amigos ausentes e. pela frente, apenas o primeiro dia do resto da minha vida.

A ilustração: "combate de tigres" pelo extraordinário "Douanier" Rousseau. Isto para lembrar um verso de Borges:
...con los años fueron dejandome
los otros hermosos colores
ahora sólo me quedan
la vaga luz, la inextricable sombra
y el oro del principio
....

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