04 abril 2007

Expediente 4


Um gajo alto, esgargalado, ingénuo e de bela voz

Anda por aí uma colecção de música portuguesa que, desculpem lá, me parece um tanto ou quanto mescambilha. É que aquilo mistura no mesmo cd alhos com bugalhos, ou seja Zeca com Tonicha, Adriano com o Marceneiro (aliás respeitabilíssimo) e por aí fora. A ideia parece ser aviar as coisas por data e por estilo o que tem menos cabeça ainda do que os inexistentes pés. Claro que se vai vender em quantidade, tanto mais que dão um de cada três cds e o pagode é como se sabe: acredita em milagres das rosas e em ofertas de jornal.
Nós portugas somos mesmo assim: acreditámos no mito da pimenta, depois no outro do Brasil, no café de Angola, no volfrâmio (ah o volfrâmio! Quantas histórias se poderiam contar!) no dinheiro fácil da união europeia e agora parece que anda tudo entusiasmado com a “reforma” da função pública...
Foi, aliás, e também, contra isto que nos anos sessenta se começaram a ouvir vozes desafinadas dentro do “amorável concerto nacional”. Havia uns rapazolas que não acreditavam no fado do embuçado bondoso que só queria ouvir música e dar a régia pata a beijar. Havia uns rapazolas que, fartos da balada plangente de Coimbra menina e moça, rouxinol do Bernardim (coitado do Bernardim: ninguém lhe leu seriamente “a menina e moça” mas todos se espojaram num melífluo e dolicodoce responso a que o Bernardim Ribeiro é inteiramente alheio.) queriam outra música. Havia uns rapazolas, por aqui e por ali, que trouxeram para a cantilena nacional, duas notas vibrantes, sem angústias de mercearia barata, nem requebros enfermiços. Começou pelo Zeca, já aqui evocado, continuou imediata e contemporaneamente com o Adriano e depois aquilo pareceu um rio. E foi um rio, não tão grande e tão cheio como alguns gostariam que fosse, que naquelas águas revoltas mas limpas também se transportaram outras de mais duvidosa origem. Foi um rio, é um rio, agora mais calmo, menos cheio mas ainda autêntico.
O fenómeno não foi português mas geral e geracional. O já celebrado milagre das rosas não teve por berço este “torrâozinho de açúcar” à beira mar plantado mas nasceu em tantos sítios quantas as cabeças da hidra. E de facto foi considerado uma hidra e como tal tratado e perseguido. Felizmente, os governos mesmo todos juntos não têm o vigor e a astúcia de Hércules e a hidra sobreviveu, para consolo meu e vosso.
Vamos hoje praticar sobre um dos participantes da renovação da canção portuguesa. Adriano Correia de Oliveira. O Adriano, sem mais, para a malta coimbrã em geral e muito especialmente para os estúrdios repúblicos da “Rás-te-parta”, ali à rua da Matemática. Casa do Adriano e de quantos a qualquer hora e sobretudo a desoras a demandavam.
O Adriano foi caloiro no mesmo ano do que eu. Nesse ano para ferro de quantos se armam em coimbrinhas, nós reivindicamos essa qualidade: fomos caloiros, sim senhor. Ano sem caloiros é pura fantasia, e cheira a praxe que tresanda. Caloiros e amigos. Cábulas também. E metidos na Associação Académica e em tudo o que cheirava a política, a restolho, a desafio, a viagem, a sonho e a porrada (esta claro nos nossos lombos juvenis).
O Adriano cedo se manifestou cantador e por isso mesmo foi fartamente protegido porque estava sempre disponível para emprestar a voz a uma serenata ou apenas a uma modesta ceia de amigos. E isto, não o esqueçam, é a primeira e primacial qualidade do Adriano: mais generoso do que ele, vou ali e já volto. Aquela torre de metro e oitenta, passante, tinha coração de passarinho, de melro, de pardal de rua. Cantava para espantar males próprios e sobretudo alheios. A voz era um dom natural e o Adriano achava que não devia cobrar pelo seu uso. E mesmo, mais tarde, cobrou pouco, muito pouco. E recebeu menos, muito menos.
Andámos juntos pelo CITAC, antro de malas artes teatrais (e a fotografia aí em cima bem o regista) e aí o Adriano deu voz a muita música teatral, alguma – e boa - do Zé Niza (saravah irmãos Niza, um abração), ensinou gerações de candidatos a actor a colocar a voz, a não desafinar e só uma vez foi derrotado: tentou pôr-me a cantar o do re mi mas nem isso, à segunda nota eu metia água e o Adriano fartou-se. Se hoje não canto é por culpa dele!
A primeira canção manifesto, “a trova do vento que passa” traz o selo dele, do Alegre e do Portugal. E foi de imediato um êxito de público, a começar pelos sisudos tradicionalistas que fiados no facto do Adriano cantar fado coimbrão adoptaram a cantiga que ia bem ao arrepio de tudo o que fazia a canção coimbrã anterior. O Adriano e o António (Portugal) e, pouco depois, o Rui Pato mereciam só por isto uma lápide bem visível no Penedo da Saudade.
Às tantas o Adriano foi para Lisboa prosseguir uns vaguíssimos estudos de Direito que suponho não terá sequer terminado. A crescente fama por um lado e a agitação política por outro tornaram-no um ícone (ora toma lá!) de um certo público que com ele cantava a raiva impotente e a revolta crescente. Com o 25 de Abril, a carreira dele estava ao mesmo tempo traçada e destraçada. Num primeiro momento, o Adriano e a sua voz alentavam as forças políticas que ele abnegada e graciosamente servira. Depois...depois o Adriano começou a duvidar. Não da esquerda onde sempre esteve, mas daquela especial esquerda dogmática e contumaz que à força de excluir se foi excluindo da vida política e cultural do país. O Adriano foi lentamente perdendo a aura de herói e grande cantor popular para cair no poceirão dos esquecidos ou dos expulsos.
Nessa época encontrei-o vezes sem conta na “Opinião”, na “Trindade” e bastas vezes o arrastei até à “Trave” mítico restaurante de dois irmãos, o Jaime e o Santos, que mais tarde iria criar o “Primeiro de Maio”. Foi aí numa memorável noite e numa mesa em permanente algazarra, onde comiam os irmãos Salomé, o Zeca e uma alegre trupe de músicos e noctívagos que formalmente e em nome da Delegação Regional do Norte da Secretaria de Estado da Cultura, o convidei para se apresentar no “Auditório Nacional Carlos Alberto”, onde já tínhamos apresentado o Zeca, o Zé Mário, o Vitorino e o Sérgio. O Adriano sempre tinha feito parte da lista mas os desencontros em que ele era especialista só terminaram nessa noite. Convém dizer que corria contra o Adriano uma torpe insinuação de origem claramente política mas que se reflectia no aspecto profissional: que ele estava alcoolizado em último grau, que perdera a voz, que não cumpria os compromissos, etc...etc...
O Adriano, por uma vez sério e muito sério, perguntou-me se eu sabia do que se dizia. Que sim, respondi, sabia. E mesmo assim convidas-me? Claro repontei irritado, eu sei bem quem tu és e o que vales. Não consigo contar mais nada pois aquilo acabou em choradeira primeiro a dois, depois a três enfim um vale de lágrimas geral a que nem terá escapado o Fernando Assis Pacheco entretanto aparecido sabe-se lá por que razão.
No dia seguinte, mais compostos e recompostos, acertámos pormenores e atirámos para um par de meses depois os recitais. Confiávamos um no outro e ainda mais no futuro e na saúde do Adriano. A morte não tem dia marcado e gosta de se intrometer nos projectos dos vivos.
Hoje, que o Adriano é tão só uma saudade, hoje quando tantos maus amigos se redescobrem amigos dele, hoje quando se anuncia a volta da trova do vento que passa, dá vontade de dizer que nem sequer o vento cala a desgraça com que se desfazem reputações neste país. Bom, mesmo bom, só morto. E o Adriano não merecia morrer tão cedo e tão mal.


Na fotografia: Adriano Correia de Oliveira, mcr e Luísa Feijó. Não consigo lembrar-me do nome do 4º comparsa. Se alguém souber apite. E desculpa lá pá, é a PDI. A tempo: trata-se de uma fotografia de um ensaio do CITAC . Julgo que da peça A nossa cidade" de Thornton Wilder. A fotografia é do sempre jovem Forjaz de Sampaio hoje empresário em Liége. um abraço ó barbaças.

Este texto tem como principal destinatária a Luisa Feijó minha amiga de sempre, minha companheira na aventura do Auditório Nacional Carlos Alberto e em tropelias de vária ordem que algum dia se contarão.

1 comentário:

Raimundo Narciso disse...

Fui amigo desse gigante bom. Nem sei se ele chegou a aperceber-se.Acontecia encontrarmo-nos de longe em longe.Talvez a sua relação para comigo fosse apenas a que tinha com mais um camarada. Não sabia que mais admirar se a sua voz se a sua generosidade infinita.
Lembro-me de uma última conversa( 81? 82?) em que ele estava muito amargurado. Mas não iria desabafar comigo como se eu já estivesse em 1988.