31 maio 2007

Ainda o "Acórdão do dia"

O nosso carteiro já deixou, no postal abaixo, link para o "Acórdão do dia" (texto integral). O mesmo foi feito em vários blogs. Desconfio, contudo, que poucos o lerão antes de opinar com base nas "gordas" dos jornais ou mesmo com base apenas nos comentários emotivos que aquelas inevitavelmente provocam (*). Por isso, aqui vai um contributo: excertos do acórdão que, para não juristas, me parecem o mínimo indispensável para perceber melhor o que está em causa.

(*) Aliás, a capa do 24 Horas (não acessível on line ), também abaixo colocada pelo carteiro, é bom exemplo desta técnica incendiária dos media, na qual mesmo os leitores mais diferenciados se deixam envolver, uma vez ou outra (quando não muitas)...
Deixo por isso aqui, também, a seguir aos excertos do acórdão, link para o artigo do Correio da Manhã, com declarações do Conselheiro Artur Costa e não só, artigo que me parece acrecentar alguma informação e opinião útil para a compreensão do que está em causa; bem como o texto do José, que acompanha a foto já referida do jornal, ambos constantes do seu post publicado
aqui, por salientar aspectos interessantes na relação justiça/comunicação social.

excerto do Acórdão (negritos meus)

22. (...) em todas elas, sucedia o mesmo, depois de se despirem o arguido estimulava o pénis do menor, com as mãos, depois deste ficar erecto, metia-o na boca chupando-o, de seguida; como ele próprio tivesse já o seu pénis erecto, ordenava ao menor que lhe fizesse o mesmo;
23. De todas essas vezes o FF não queria fazê-lo uma vez que era uma coisa que lhe metia nojo, por outro lado era grande e fazia-o sentir-se sufocado; (...)
28. Depois de cada um dos referidos encontros, em que se deram os factos descritos, o arguido ordenava ao FF que não os contasse a ninguém ao que este obedeceu, não só pelo receio que aquele lhe incutia mas também por ter vergonha.;

(...) «As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP, actuando no âmbito da moldura penal abstracta sem quaisquer pontos ou limites predefinidos, constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena, que há-de situar-se dentro da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral do caso, cujo limite máximo não pode ultrapassar a medida da culpa e cujo limite mínimo constitui a exigência irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.

Ora, no tipo legal de crime em referência visa-se “a protecção da autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento”, como, na linha do Comentário Conimbricense, se diz na decisão da 1.ª instância, confirmada pela Relação.

Todavia, como também se escreveu na mesma decisão, em sede de fixação da pena, há que levar em conta as circunstâncias concretas que modelaram a actuação do arguido. E, dentro dessas circunstâncias, a idade da vítima não é indiferente, muito embora a sua idade – 13 anos – esteja situada dentro dos limites de protecção do bem jurídico especifico aqui em causa, considerando-se a agressão a esse bem jurídico pelas formas indicadas na lei como abuso sexual de criança, desde que o menor tenha menos de 14 anos.

Por outro lado, não sendo necessária a coacção para a relevância da agressão ao referido bem jurídico, nos termos sobreditos, a verdade é que é diferente, em termos de ilicitude, ter ou não existido coacção, assim como é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento do menor, não sendo certamente a mesma coisa praticar algum dos actos inscritos no âmbito de protecção da norma com uma criança de 5, 6 ou 7 anos, ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade, como é o caso dos autos, em que a vítima era capaz de erecção e de actos ligados à sexualidade que dependiam da sua vontade, ainda que se possa dizer que essa vontade é irrelevante para efeitos de caracterização do tipo.
(...) O tribunal da 1.ª instância, com o aval da Relação, sobrevalorizou a componente da prevenção geral positiva, filtrada através da sua relevância mediática, com as distorções que uma tal abordagem do problema ocasiona, sabido que a culpa se impõe como limite intransponível das exigências de prevenção geral. Essa sobrevalorização está bem patente em certos passos da decisão da 1.ª instância, que a Relação acolheu, ao menos confirmando essa decisão. A título de exemplo, mencione-se esta passagem: “Por outro lado, no que concerne às necessidades de prevenção geral positiva, há que ponderar o facto de que a natureza deste tipo de crime é susceptível de causar alarme social, sobretudo numa época em que os processos de pedofilia têm relevância mediática e a sociedade está mais desperta para esse flagelo. Por conseguinte, as necessidades de prevenção geral positiva são relevantes, pois que (…) a reposição da confiança dos cidadãos nas normas violadas e a efectiva tutela dos bens jurídicos cuja protecção se visa assegurar pela incriminação deste tipo de condutas assim o impõe”. »


Artigo do Correio da Manhã

excerto das declarações do Conselheiro Artur Costa citadas pelo jornal:

«O magistrado assegura que o acórdão teve em conta o facto de o jovem ter “colaborado” nos abusos sexuais. “Aceitou sete vezes ir ter com o arguido. O tribunal deu como provado que foi por medo. Mas ele não podia ter dito que não?”, interroga-se o juiz, que assegura não compreender a polémica em torno da decisão.”

OBS: no acórdão dá-se como provado que outro menor (em circunstâncias objectivas e subjectivas semelhantes ?), se recusou a acompanhar o arguido.

Post do José


«Esta primeira página é uma novidade absoluta. Um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, relator de um acórdão polémico, aceita explicar a um jornal popular, uma decisão colectiva que o mesmo relatou ainda há poucos dias. Provavelmente haverá uma chuva de críticas, algumas veladas outras nem tanto, a propósito desta explicação. Uma coisa é certa, porém: o STJ já não é o reduto fechado em si mesmo que em tempos já foi. Essa mudança, ajuda a aproximar a Justiça ao povo em nome do qual é administrada, mas tem armadilhas evidentes. Uma delas, é a redução de questões complexas a frases escolhidas, como a da capa do 24 Horas de hoje. O Conselheiro Artur Costa, hoje de manhã, provavelmente, lembrou-se dessa circunstância...»

E ainda uma interessante troca de opiniões sobre outro post do José, aqui.

2 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Sobre relaçõen entre justiça e comunicação social:

discurso directo do Conselheiro artur Costa, no Sine Die

opinião de Rogério Alves, em entrevista ao DN on line

Kamikaze (L.P.) disse...

Um juiz desembargador, de resto já com um processo disciplinar em curso por alegada violação estatutária - comentários na "praça pública" sobre decisões de colegas - escreve hoje no Correio da Manhã, num contexto de onde se retira que parte do princípio que o que leu em certos jornais corresponde a declarações do relator do Acórdão comentado:

"É arrepiante ouvir dizer, nos media, que o menor abusado teve prazer e que ninguém tem ejaculações à força."

Não obstante, objectividade oblige, o mesmo juiz diz também algo que me parece merecedor de atenção:

"Estas afirmações vão ao arrepio do que nos ensinam as ciências médicas. É preciso distinguir as funções mecânicas das funções psicológicas. Prazer com violência psicológica gera angústia e depressão na vítima. O prazer não afasta a brutalidade do abuso sexual. Não se deve confundir manifestação fisiológica de prazer com a emoção do sentimento do prazer. Trata-se de uma tentativa de homicídio psicológico que mata uma parte muito íntima da criança, seja ela um menor de cinco, seis ou 13 anos."

link:

http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?id=244989&idselect=93&idCanal=93&p=200