"Aqui estou, aqui fico"*
Mesmo sabendo o que sei, e sei tão pouco, finalmente;mesmo irritando-me a cada dia que passa, e não me faltam os motivos que esta terra é madrasta, sáfara, mais areia do que outra coisa, e a outra coisa é pedra, penhasco, seixo rolado, ervas bravias onde o milagre dum fruto representa anos de trabalho sol a sol, de esforço, de suor e de má paga.
Um polícia perguntou-me, oh há quantos e quantos anos, porque é que eu não emigrava, tinha curso acabado, não tinha deveres militares a cumprir nem filhos, enfim, nada ou quase. A minha resposta foi essa: aqui estou, aqui fico, que eu sou do mar bravo, da areia da praia, do fumo da mina de carvão, do prato de sardinhas partilhado, mais o pão e o azeite.
Sou como as tamargueiras se é que ainda as há. Agora a moda é plantar palmeiras à beira mar como se a palmeira fosse nativa destas terras, raio de gente que despreza o que é seu e eucalipta os montes e empalmeira as esplanadas das praias.
Sou, disse, como as tamargueiras que aguentam a nortada e o ar salpicado do mar, o mar que foi um destino e já o não é, o mar que sustentava parcamente os meus amigos de infância, como se o peixe só se deixasse apanhar à custa de muito esforço e ocasionais naufrágios.
Sou duma terra de pescadores que não sabiam nadar. E de pouco lhes serviria nadar. Nos mares gelados da Terra Nova quem caía do dóris bem se podia encomendar à Senhora da Encarnação porque, no meio do nevoeiro e do frio, que só o sino do barco e alguma ronca atravessavam, não havia salvação.
Sou duma terra que via partir os lugres bacalhoeiros, com um nó na garganta. Cada partida era uma aposta contra o tempo, contra o mar, contra a morte mais presente mil vezes que a vida.
Sou de uma terra, melhor dizendo de um areal mordido pelo vento norte, onde os santos eram acarinhados e ameaçados ao mesmo tempo. Vem daí esta perpétua zanga comigo, com o meu país, com o único país que tenho e que, raios me partam!, quero ter.
País adiado, embiocado em virtudes públicas e parcos e privados vícios, país do soalheiro, da pequena inveja, do piolho na costura, da fossa na praia a céu aberto.
Vai-se por ele, lá fora, nas estranjas, e a cara é outra: a humildade é a mesma mas a determinação é mais forte; a raiva de vencer quando, vencido, se deixou o terrunho amargo, transforma o portuga emigrante num trabalhador qualificado primeiro, num cidadão logo de seguida.
A alegria será mais seca, menos contagiosa, mas já não há na gargalhada breve a resignação ancestral, a tristeza amável, a dorida pergunta sobre a miséria desta vida.
Ah se pudéssemos trazer como imigrantes todos os nossos imigrantes... Se pudéssemos aprender cá o que eles aprendem lá, na lonjura, na dificuldade, na saudade (na saudade, porque não?) que país não seríamos...
Se pudéssemos reaprender o uso da liberdade, o verdadeiro uso da liberdade, que de caciques pequenos e grandes, de excelentíssimos e ilustríssimos, grandes e pequenos, que de vocemecês não estaríamos livres...
Se soubéssemos escolher dentre as modas importadas, um pouco mais de Proust e um pouco menos de “hola”, um pouco mais de rigor e um pouco menos de “eduquês”, um pouco mais de história e um pouco menos de lenda, que Holanda nos bateria nos confins de Colombo, se é que isto diz alguma coisa a alguém?
Isto, como o título eventualmente indica era para ser um texto amável e impertinente sobre este pequeno espaço chamado incursões, esta casinha de pasto de porta aberta e franca a quem passa e entra por um copo de vinho, umas azeitonas ou um pão adubado duma fatia fininha de salpicão. Mas a mão, esta mão esquerda e pecadora, enganou-se, trocou-me as voltas, e trouxe-me três sílabas salgadas para o ecrã. Que fazer? Rasgar metaforicamente este ilusório papel, ou dobrá-lo meia dúzia de vezes para fazer um barquinho infantil, encomendá-lo ao vento, às ondas do mar de Buarcos e deixá-lo ir, cumprir o seu des(a)tino?
As leitoras (e hoje esta vai, especialmente, para a Eliana Gersão, amiga de há quarenta e sete anos!...) e os leitores que fazem o favor de me ler, desculparão este desabafo mas, se não for convosco que falo, com quem então? É que às vezes dá-me esta apagada e vil tristeza e nem o exemplo do Fernão Mendes Pinto me salva da melancolia.
*Nb: tenho a vaga suspeita que o título hoje usado corresponde ao de uma canção (Reggiani?) ou a um verso de uma canção. Haja uma alma caridosa que me ilumine.
Na gravura: forte de Stª Catarina, Figueira da Foz: daqui partiram mais barcos, muitos mais!, do que regressaram...
5 comentários:
Mon cher:
Yl y a une chanson de Regianni avec ces mots: c´est Le zouave du Pont de L´Alma.
Je ne la connais pas. Mais j´ai cherché dans Google. voilà!
Bientôt j´y serais, encore une fois, j´espère...sur le Pont Mirabeau, où coule la Seine.
"Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu'il m'en souvienne
La joie venait toujours après la peine
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure."
Um abraço.
Obrigado por essa mão esquerda e pecadora.
E por me trazer à memória as bicicletas alugadas da Figueira, leitão assado a despencar na Boa Viagem...
Receba um abraço pelo que acaba de me dar, na verdade, devolver.
Há bocado dizia que não conhecia o Le zouave. Pois bem, passados estes minutinhos, já não é verdade.
Estou agora mesmo a ouvir os metais e ritmo sincopado do Zouave do Reggiani.
Apanhei-o aqui neste sítio pirata
Já cá canta,literalmente. Tenho a colecção quase toda, mas faltava-me esse volume 6. Já não falta.
Aliás, nesse sítio, pode tirar-se ainda muita bd e ainda...livros!
Bendita net.
Ao abrir o tal sítio, dá de caras com uma imagem de France Gall. O desenho, parece-me ter o traço do pincel de Aslan.
Vous connaissez Aslan?
Ahahahah.
1. obrigado pela dica do zouave. ça y est!
2. de facto parece Aslan. que conheço e de que gosto.
3. Gasolina: fico encantado em lhe ter recupeado memórias felizes. O seu comentário também me fez recordar as bicicletas de aluguer que começaram por ser da família Alves Barbosa.
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