Em 12 dias
Deus, vem na Bíblia, Génesis, 2.2, criou o mundo em seis dias, descansando no sétimo que aquilo há-de ter sido forte trabalheira. Sarkozy presidente da República Francesa, tomou posse, nomeou o seu governo e fez a primeira reunião de gabinete em doze.
Convenhamos que para um português, isto é obra!
12 dias, por cá, nem dão para sequer alguém preparar decentemente o discurso da posse. E seguramente não chegam para que uma tal comissão nacional de eleições publique os resultados no Diário da República. Claro que os franceses mais práticos põem o presidente a ter uma qualquer função que ultrapasse o mirar carpetes e cortar fitas: o presidente nomeia o governo, preside ao conselho de ministros e manda. Por cá, pais rico, damo-nos ao luxo de ter um cavalheiro que anda por aí aos caídos e pouco ou nada faz.
Todavia, hoje não vou discutir as bizarrias do nosso sistema político. Falta-me pachorra e vontade. Vou apenas relembrar os passos desta eleição, como poderia aliás, lembrar o que se passa nesse outro país atrasado, a Alemanha. Aquela gente, a que seguramente falta o humor, a verve, o picante, o it português, tem a mania de fazer as coisas com rapidez. Parece que lhe chamam eficiência. Quando anunciam uma reforma, meia hora depois ela está “on the road”. Por cá, ficamo-nos pelos anúncios. Ainda há bem pouco uma amiga alemã e quadrada dizia-me que nós deveríamos estar no primeiro lugar da União europeia tal o ritmo de reformas anunciadas (e segundo ela, activadas) pelo governo. Quando lhe disse que não, que estava enganada, chamou-me bolchevista! Bolchevista, notem bem! Um bolchevista é um comunista dos de antigamente, um cavalheiro a cavalo de sabre desembainhado a matar russos brancos, a fazer reformas agrárias, a chacinar marinheiros em Cronstadt, a recitar versos de Maiakowsky e a participar como extra num filme de Eisenstein. Esse tipo de indivíduos, calejados por anos de clandestinidade e Sibéria, passavam o tempo a caçar o burguês, o contra-revolucionário, o cisionista, o minoritário, os vencidos que não eram convencidos pelos livros, pelas teses, pelos artigos (meu Deus o que esta gente escrevia!). Claro que, como a minha amiga alemã dizia, só gente desta laia é que poria em causa a realidade da actuação de um governo democrático como o que temos. É que ela associa democracia a verdade e não acredita que seja mera propaganda os anúncios sucessivos de intervenções, de subvenções, de negociações, enfim de tergiversações.
Mas também não é para falar deste desastre que aqui venho. É que não me saem da cabeça os doze dias. Em Portugal nem um presidente de Câmara toma posse doze dias depois de eleito. Mesmo que seja uma Câmara pequena, dessas que se arrastam penosamente sem sequer terem direito a uma corrupçãozita passiva, nada, uma miséria, uma miséria portuguesa.
O senhor Sarkozy (lá é assim que chamam aos políticos: senhor. E basta. Mesmo quando eles estão carregados de diplomas, tirados em escolas que o são, e a sério, na política são senhor Fulano de Tal.) nos tais doze dias, o dobro do tempo que Deus teve, escolheu uma equipa ministerial que baralhou o pagode. Primeiro nomeou um número impressionante de mulheres, tantas quanto os homens. Depois, escolheu uma “beur”, uma senhora filha de um pedreiro marroquino e de uma mulher a dias argelina. Claro que não escolheu uma “beur” qualquer mas uma magistrada de alto gabarito que vai ser a nova Garde des Sceaux. Direi, mas posso estar enganado, que é a primeira vez que uma mulher é ministra da Justiça. Chapeau, Madame! E chapeau também ao Presidente.
O caso mais controverso é, claro, a entrada para o governo de três membros do PS. Convenhamos que uma pessoa fica estomagada com a rapidez do processo e sobretudo da aceitação. Em menos de duas semanas, o diabo Sarkozy aparece travestido em arcanjo Gabriel! Quand même!
Uma segunda questão é a da desculpa dada: o serviço da pátria exige esta dolorosa passagem do Rubicão! A pátria, coitadinha, não conhece partidos mas tão somente boas vontades. Isto é quase o wright or wrong is my country! Bonito! Lindo de morrer! Ah se não fosse o patriotismo desinteressado onde é que estaríamos?
Eu, frente a estes acrisolados gestos de sacrifício perante o bem comum, estou apto a compreender tudo.
Ainda há meses, aqui mesmo, me espantava com o facto de sampaístas convictos se juntarem a Sócrates sem dizerem ai. Agora começo a percebê-los melhor: o partido não pode reconhecer tendências, todos somos poucos para o engrandecer, a política exige sacrifícios a todos e o menor deles é abandonar uma posição para nos juntarmos à maioria do momento, sobretudo se nisso houver uma tença política e não só.
Alguém dirá que, no caso francês, o mérito é todo de Sarkozy. E não deixa de ter razão: o aroma do poder é como a comida na terra dos lotófagos: faz-nos esquecer a pátria ou as convicções. Sarkozy, bom leitor de Homero, compreendeu-o bem e toca de fornecer lótus a um par de cavalheiros dotados de um forte apetite.
O problema, se problema há, é outro: há muito boa gente disposta a acreditar na boa vontade de Kouchner, e portanto naquela outra velha máxima de Maquiavel, os fins justificam os meios. Já li algures que Kouchner vai poder auxiliar os condenados da terra agora que está nos comandos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E o delírio prossegue: a sua putativa e futura acção dinamitará a conhecida e proclamada xenofobia do actual presidente francês, as ONG mais generosas terão em Kouchner um interlocutor à altura e o futuro dos candidatos à imigração será mais risonho mesmo se não conseguirem atingir as praias da douce France.
Não gostaria que os meus leitores, se é que os tenho, pensassem que estou zangado com Kouchner, tanto mais que somos da mesma geração e que, cada um em seu sítio, gastou parte da oisive jeunesse, em protestos contra a injustiça do velho mundo. Eu já não me zango com ninguém, muito menos com um ministro francês, a mil e quinhentos quilómetros da minha casa. Também de pouco me serviria. Todavia..., todavia pensando melhor, fico contente por não ter filhos que decerto me perguntariam o que é que pensaria disto tudo. Em não havendo perguntas, não há respostas sobretudo das que um caso destes dramaticamente suscitaria.
19-20 Maio (ou, muito melhor no calendário patafísico perpétuo: Merdre, 2 e 3, dias do Mostardeiro do Pape e de Santa Sé, sub-papa)
d’Oliveira fecit
Deus, vem na Bíblia, Génesis, 2.2, criou o mundo em seis dias, descansando no sétimo que aquilo há-de ter sido forte trabalheira. Sarkozy presidente da República Francesa, tomou posse, nomeou o seu governo e fez a primeira reunião de gabinete em doze.
Convenhamos que para um português, isto é obra!
12 dias, por cá, nem dão para sequer alguém preparar decentemente o discurso da posse. E seguramente não chegam para que uma tal comissão nacional de eleições publique os resultados no Diário da República. Claro que os franceses mais práticos põem o presidente a ter uma qualquer função que ultrapasse o mirar carpetes e cortar fitas: o presidente nomeia o governo, preside ao conselho de ministros e manda. Por cá, pais rico, damo-nos ao luxo de ter um cavalheiro que anda por aí aos caídos e pouco ou nada faz.
Todavia, hoje não vou discutir as bizarrias do nosso sistema político. Falta-me pachorra e vontade. Vou apenas relembrar os passos desta eleição, como poderia aliás, lembrar o que se passa nesse outro país atrasado, a Alemanha. Aquela gente, a que seguramente falta o humor, a verve, o picante, o it português, tem a mania de fazer as coisas com rapidez. Parece que lhe chamam eficiência. Quando anunciam uma reforma, meia hora depois ela está “on the road”. Por cá, ficamo-nos pelos anúncios. Ainda há bem pouco uma amiga alemã e quadrada dizia-me que nós deveríamos estar no primeiro lugar da União europeia tal o ritmo de reformas anunciadas (e segundo ela, activadas) pelo governo. Quando lhe disse que não, que estava enganada, chamou-me bolchevista! Bolchevista, notem bem! Um bolchevista é um comunista dos de antigamente, um cavalheiro a cavalo de sabre desembainhado a matar russos brancos, a fazer reformas agrárias, a chacinar marinheiros em Cronstadt, a recitar versos de Maiakowsky e a participar como extra num filme de Eisenstein. Esse tipo de indivíduos, calejados por anos de clandestinidade e Sibéria, passavam o tempo a caçar o burguês, o contra-revolucionário, o cisionista, o minoritário, os vencidos que não eram convencidos pelos livros, pelas teses, pelos artigos (meu Deus o que esta gente escrevia!). Claro que, como a minha amiga alemã dizia, só gente desta laia é que poria em causa a realidade da actuação de um governo democrático como o que temos. É que ela associa democracia a verdade e não acredita que seja mera propaganda os anúncios sucessivos de intervenções, de subvenções, de negociações, enfim de tergiversações.
Mas também não é para falar deste desastre que aqui venho. É que não me saem da cabeça os doze dias. Em Portugal nem um presidente de Câmara toma posse doze dias depois de eleito. Mesmo que seja uma Câmara pequena, dessas que se arrastam penosamente sem sequer terem direito a uma corrupçãozita passiva, nada, uma miséria, uma miséria portuguesa.
O senhor Sarkozy (lá é assim que chamam aos políticos: senhor. E basta. Mesmo quando eles estão carregados de diplomas, tirados em escolas que o são, e a sério, na política são senhor Fulano de Tal.) nos tais doze dias, o dobro do tempo que Deus teve, escolheu uma equipa ministerial que baralhou o pagode. Primeiro nomeou um número impressionante de mulheres, tantas quanto os homens. Depois, escolheu uma “beur”, uma senhora filha de um pedreiro marroquino e de uma mulher a dias argelina. Claro que não escolheu uma “beur” qualquer mas uma magistrada de alto gabarito que vai ser a nova Garde des Sceaux. Direi, mas posso estar enganado, que é a primeira vez que uma mulher é ministra da Justiça. Chapeau, Madame! E chapeau também ao Presidente.
O caso mais controverso é, claro, a entrada para o governo de três membros do PS. Convenhamos que uma pessoa fica estomagada com a rapidez do processo e sobretudo da aceitação. Em menos de duas semanas, o diabo Sarkozy aparece travestido em arcanjo Gabriel! Quand même!
Uma segunda questão é a da desculpa dada: o serviço da pátria exige esta dolorosa passagem do Rubicão! A pátria, coitadinha, não conhece partidos mas tão somente boas vontades. Isto é quase o wright or wrong is my country! Bonito! Lindo de morrer! Ah se não fosse o patriotismo desinteressado onde é que estaríamos?
Eu, frente a estes acrisolados gestos de sacrifício perante o bem comum, estou apto a compreender tudo.
Ainda há meses, aqui mesmo, me espantava com o facto de sampaístas convictos se juntarem a Sócrates sem dizerem ai. Agora começo a percebê-los melhor: o partido não pode reconhecer tendências, todos somos poucos para o engrandecer, a política exige sacrifícios a todos e o menor deles é abandonar uma posição para nos juntarmos à maioria do momento, sobretudo se nisso houver uma tença política e não só.
Alguém dirá que, no caso francês, o mérito é todo de Sarkozy. E não deixa de ter razão: o aroma do poder é como a comida na terra dos lotófagos: faz-nos esquecer a pátria ou as convicções. Sarkozy, bom leitor de Homero, compreendeu-o bem e toca de fornecer lótus a um par de cavalheiros dotados de um forte apetite.
O problema, se problema há, é outro: há muito boa gente disposta a acreditar na boa vontade de Kouchner, e portanto naquela outra velha máxima de Maquiavel, os fins justificam os meios. Já li algures que Kouchner vai poder auxiliar os condenados da terra agora que está nos comandos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E o delírio prossegue: a sua putativa e futura acção dinamitará a conhecida e proclamada xenofobia do actual presidente francês, as ONG mais generosas terão em Kouchner um interlocutor à altura e o futuro dos candidatos à imigração será mais risonho mesmo se não conseguirem atingir as praias da douce France.
Não gostaria que os meus leitores, se é que os tenho, pensassem que estou zangado com Kouchner, tanto mais que somos da mesma geração e que, cada um em seu sítio, gastou parte da oisive jeunesse, em protestos contra a injustiça do velho mundo. Eu já não me zango com ninguém, muito menos com um ministro francês, a mil e quinhentos quilómetros da minha casa. Também de pouco me serviria. Todavia..., todavia pensando melhor, fico contente por não ter filhos que decerto me perguntariam o que é que pensaria disto tudo. Em não havendo perguntas, não há respostas sobretudo das que um caso destes dramaticamente suscitaria.
19-20 Maio (ou, muito melhor no calendário patafísico perpétuo: Merdre, 2 e 3, dias do Mostardeiro do Pape e de Santa Sé, sub-papa)
d’Oliveira fecit
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