A morte é uma assidua visitante da minha casa, de todas as casas, aliás. Mas não é de admirar que com a idade que já levo ela me bata à porta mais vezes. Hoje foi a Judite Mendes de Abreu. 92 anos de uma vida cheia, rica, dolorosa, uma vida de uma mulher sempre em pé, sempre combativa, sempre presente.
Não quero falar da morte da Judite, terei tempo mais tarde, tempo para chorar, tempo para dar um abraço ao Pedro, às filhas e mais família onde incluo uma enorme roda de amigos.
Trago aqui uma última homenagem: uma carta que escrevi há doze anos e que, como de costume, ignoro se a mandei ou não. Acho que ela reflecte um pouco a mulher e diz muito, e se calhar mal, da minha amizade por ela e do quanto ela representou para várias gerações de jovens que partilharam Coimbra, esperanças, combates, a vida, ao fim e ao cabo. Atrevo-me a dedicar a todos eles (com quem acabo de estar) o texto que se segue
Há quantos anos conheceremos aquela que, na intimidade, chamamos Maria Judite? Sem querer, de qualquer modo, adiantar-me a qualquer um dos outros, acho que a conheço desde sempre, ou, pelo menos, desde um longínquo tempo onde que a ternura se confunde com a surpresa ingénua de estar vivo.
Conhecê-la-ei desde que ela, rija figueirense, usava fitas largas de duas faculdades e namorava numa Coimbra que já não vi mas que seria toda de "puros e lavados ares" ?
Terá antes sido quando passeava dois pequenos mariolas que hão-de ter jogado futebol na praia entre Santa Catarina e os palheiros de Buarcos, alí onde as areias se alargavam e as famílias nos soltavam para ir cumprimentar o Catitinha ? Nesses dias o mar não era frio e só se vinha à barraca da família esmolar cinco tostões para uma bolacha americana...
Terá isso alguma importância, para quem ao simples evocar de um par de nomes (Judite, Luísa, Pedro, João, Teresa...) sente que há pessoas que conheceu desde sempre, de que sempre gostou, para quem sempre se virou nos bons e nos maus momentos, compartilhando uma acesa esperança ou sufocadas lágrimas?
É que há palavras (laranja, mar, verão, amigo/a...) que não carecem de explicação entre nós, que se dizem apenas para alvoroçar a madrugada e viajar por um manso território onde somos esperados com um sorriso e o pão e o sal das boas vindas.
Dizem-me agora que um de nós faz oitenta anos. E dizem-no com ar seriíssimo quer o Pedro desde Coimbra até à Luisa, aquí ao lado. E ao dizê--lo o sorriso que se pressente na notícia, na espectativa da festa e do encontro, desmente-os. Não são oitenta os anos que a Maria Judite fará sexta feira, que oitenta anos é idade de documento oficial com carimbo de repartição pública e fotografia irreconhecível a sépia mascavado.
A Maria Judite, ó amigos meus, faz, fez e fará um sem número de coisas que àquela o bicho carpinteiro ferrou-lhe forte e feio (houve tempos em que me cansava tanta energia que irradiava dalí...) mas anos, e na quantidade que imprudentemente anunciam, não!
Punhamos que, desde sempre, teve uma "excessiva" dose de sorte na canasta, na sueca, no sete e meio, na lerpa batidinha e no poker aberto mas também é sabido que, sendo nada e criada na Figueira da Foz, terra de casino e espanholas de arribação, tal sorte é natural, já vem nos cromossomas ao nascer, juntamente com o gosto pela raia de pitau e pelo bacalhau assado. Efeitos de uma longa exposição dos indígenas aos raios emitidos pelo casino peninsular sobretudo se as permanências no pátio das galinhas demoravam mais tempo do que o necessário ao Márinho para estoirar uma reputação.
Acrescente-se que não há memória de alguém lhe ter levado a melhor numa discussão que ela no que toca a perder, a dar o braço a torcer, nem a feijão macaco...
Digamos que, por vezes, raras aliás, cheguei a ter pena dos polícias que entendiam -impudentes!- poder importuná-la por miudezas políticas fossem elas a prisão de um filho ou a proibição de um comício no "Avenida". Estarei a recordá-la (ou a adivinhar?...) sentada impávida no cadeirão preto do escritório, o olhinho faíscante a debitar rajadas de maldade concentrada sobre os tunantes de sachetti & co ?
Lembremos, por mero desfastio, um par de reuniões da oposicrática em que, de uma penada, esta Judite, de que tratamos, lembrada daqueloutra bíblica homónima, com dois toques de dedo na mesa ( murros para quem fosse capaz de lhe ouvir o secreto pensamento) punha um bom par de cavalheiros a recitar a tabuada dos sete de trás para a frente e na voz passiva se preciso fosse...
Queriam Vocês, amigos e irmãos, que esta companheira do vento e da luz fizesse uns ridículos oitenta anos, sequer um século, como se isso fosse, para ela, algo de transcendente. Recordo-vos, ó atrevidos, o verso magnífico de Manuel Bandeira sobre Mozart: "E desde esse momento Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anos".
A idade da Maria Judite? Vinte anos, quatro vezes vinte vivos anos!!!
E que hoje, desde hoje, a Judite seja a mais nova de nós. E que essa benção que ela é se derrame sobre nós que a amamos. E sobre mim que aí estou só numa saudade.
a ilustração é de Ota, um japonês magnífico, a Judite havia de dizer: este Marcelo não tem cura...Um japonês?...
Um japonês, Judite, que eu estou quase sem carga no computador e já passa da meia noite. Durma bem e lembre-se de nós...
Não quero falar da morte da Judite, terei tempo mais tarde, tempo para chorar, tempo para dar um abraço ao Pedro, às filhas e mais família onde incluo uma enorme roda de amigos.
Trago aqui uma última homenagem: uma carta que escrevi há doze anos e que, como de costume, ignoro se a mandei ou não. Acho que ela reflecte um pouco a mulher e diz muito, e se calhar mal, da minha amizade por ela e do quanto ela representou para várias gerações de jovens que partilharam Coimbra, esperanças, combates, a vida, ao fim e ao cabo. Atrevo-me a dedicar a todos eles (com quem acabo de estar) o texto que se segue
QUATRO VEZES VINTE ANOS
Há quantos anos conheceremos aquela que, na intimidade, chamamos Maria Judite? Sem querer, de qualquer modo, adiantar-me a qualquer um dos outros, acho que a conheço desde sempre, ou, pelo menos, desde um longínquo tempo onde que a ternura se confunde com a surpresa ingénua de estar vivo.
Conhecê-la-ei desde que ela, rija figueirense, usava fitas largas de duas faculdades e namorava numa Coimbra que já não vi mas que seria toda de "puros e lavados ares" ?
Terá antes sido quando passeava dois pequenos mariolas que hão-de ter jogado futebol na praia entre Santa Catarina e os palheiros de Buarcos, alí onde as areias se alargavam e as famílias nos soltavam para ir cumprimentar o Catitinha ? Nesses dias o mar não era frio e só se vinha à barraca da família esmolar cinco tostões para uma bolacha americana...
Terá isso alguma importância, para quem ao simples evocar de um par de nomes (Judite, Luísa, Pedro, João, Teresa...) sente que há pessoas que conheceu desde sempre, de que sempre gostou, para quem sempre se virou nos bons e nos maus momentos, compartilhando uma acesa esperança ou sufocadas lágrimas?
É que há palavras (laranja, mar, verão, amigo/a...) que não carecem de explicação entre nós, que se dizem apenas para alvoroçar a madrugada e viajar por um manso território onde somos esperados com um sorriso e o pão e o sal das boas vindas.
Dizem-me agora que um de nós faz oitenta anos. E dizem-no com ar seriíssimo quer o Pedro desde Coimbra até à Luisa, aquí ao lado. E ao dizê--lo o sorriso que se pressente na notícia, na espectativa da festa e do encontro, desmente-os. Não são oitenta os anos que a Maria Judite fará sexta feira, que oitenta anos é idade de documento oficial com carimbo de repartição pública e fotografia irreconhecível a sépia mascavado.
A Maria Judite, ó amigos meus, faz, fez e fará um sem número de coisas que àquela o bicho carpinteiro ferrou-lhe forte e feio (houve tempos em que me cansava tanta energia que irradiava dalí...) mas anos, e na quantidade que imprudentemente anunciam, não!
Punhamos que, desde sempre, teve uma "excessiva" dose de sorte na canasta, na sueca, no sete e meio, na lerpa batidinha e no poker aberto mas também é sabido que, sendo nada e criada na Figueira da Foz, terra de casino e espanholas de arribação, tal sorte é natural, já vem nos cromossomas ao nascer, juntamente com o gosto pela raia de pitau e pelo bacalhau assado. Efeitos de uma longa exposição dos indígenas aos raios emitidos pelo casino peninsular sobretudo se as permanências no pátio das galinhas demoravam mais tempo do que o necessário ao Márinho para estoirar uma reputação.
Acrescente-se que não há memória de alguém lhe ter levado a melhor numa discussão que ela no que toca a perder, a dar o braço a torcer, nem a feijão macaco...
Digamos que, por vezes, raras aliás, cheguei a ter pena dos polícias que entendiam -impudentes!- poder importuná-la por miudezas políticas fossem elas a prisão de um filho ou a proibição de um comício no "Avenida". Estarei a recordá-la (ou a adivinhar?...) sentada impávida no cadeirão preto do escritório, o olhinho faíscante a debitar rajadas de maldade concentrada sobre os tunantes de sachetti & co ?
Lembremos, por mero desfastio, um par de reuniões da oposicrática em que, de uma penada, esta Judite, de que tratamos, lembrada daqueloutra bíblica homónima, com dois toques de dedo na mesa ( murros para quem fosse capaz de lhe ouvir o secreto pensamento) punha um bom par de cavalheiros a recitar a tabuada dos sete de trás para a frente e na voz passiva se preciso fosse...
Queriam Vocês, amigos e irmãos, que esta companheira do vento e da luz fizesse uns ridículos oitenta anos, sequer um século, como se isso fosse, para ela, algo de transcendente. Recordo-vos, ó atrevidos, o verso magnífico de Manuel Bandeira sobre Mozart: "E desde esse momento Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anos".
A idade da Maria Judite? Vinte anos, quatro vezes vinte vivos anos!!!
E que hoje, desde hoje, a Judite seja a mais nova de nós. E que essa benção que ela é se derrame sobre nós que a amamos. E sobre mim que aí estou só numa saudade.
a ilustração é de Ota, um japonês magnífico, a Judite havia de dizer: este Marcelo não tem cura...Um japonês?...
Um japonês, Judite, que eu estou quase sem carga no computador e já passa da meia noite. Durma bem e lembre-se de nós...
1 comentário:
Obrigada Marcelo.
Que bom que é ler coisas assim.
Um grande beijinho,
Marta
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