15 maio 2007

Estes dias que passam 61


Elogio da desfaçatez

Isto não era para se chamar assim, claro, mas que querem? Eu ia aqui carpir este acesso de preguiça que me tem dado forte e feio desde sexta feira passada, quinta até, para ser mais preciso, desde o dia em que cheguei a Coimbra para velar a minha amiga Judite Mendes de Abreu, uma mulher e pêras, uma grande mulher, uma senhora, uma lutadora e mais umas quantas coisas. É engraçado: devia estar triste (e por um lado estou-o, podem crer) mas só me recordo de coisas alegres, fortes, da Judite a rir, a dar cabo do juízo a um par de cretinos, a gozá-los “fininho” com olhinho pequeno e faiscante como quem diz, mas por quem se tomam estas bestas ajaezadas à andaluza pobre?
Portanto a Judite: estará à mão direita do Deus em que acreditava, disso não tenho dúvidas, mas já a protestar: à direita eu? Uma figueirense e uma navalista? Ora faça lá o favor de me deixar ir para a esquerda... ai não deixa? Finge que não ouve? Olhe que eu sou muito do bando da Senhora da Encarnação, santa milagreira e figueirense dos quatro costados (“buarquense” Judite, buarquense e quase da Serra da Boa Viagem...). Confesso que por muito incréu e livre pensador que seja (e sou!) às vezes tenho pena de Deus. Já não bastavam as ralações que vai tendo com isto da extinção do limbo, parece também que do inferno, para onde é que vai aquela gente toda, assim de supetão, pode-se ser omnipotente mas que a coisa é uma trabalheira ai isso é. E para cúmulo a Maria Judite a reclamar por causa do lugar. Chego a suspeitar que Deus, que nunca se irrita, está um pouco farto desta nova companhia, recém-chegada e já a mandar vir. Eu, pobre mortal, incréu e canhoto, atrever-me-ia a fazer uma sugestão, caso lá por cima se oiça a voz dos de cá: metam-na numa mesa de canasta, com três parceiras aferroadas e galispas, uns baralhos de cartas e pronto. De vez em quando sirvam-lhes chá e bolinhos e deixem-nas ir sabendo das humanas e mundanais misérias. Talvez assim deixem em sossego quem dele precisa.
Mas, como ia dizendo, este texto iria chamar-se “elogio da preguiça”. Bem, elogio da preguiça, assim a secas, não que o título já tem dono, raios partam o Lafargue que sobre ser genro do velho Karl ainda me roubou um título de primeira. Enfim, o texto iria chamar-se qualquer coisa do mesmo género, um encapotado plágio desses que passam por ser outra coisa qualquer, do estilo “inter-textualidade”, que porra de palavra!, basta escrevê-la e logo o Macbook Pro, zás!, sublinha a vermelho, os computadores são de uma incultura atroz, está um gajo a escrever uma pérola e eles nada, risco vermelho, parecem da censura, embora essa fosse a azul, deviam ser monárquicos os tipos da censura, aquilo era tudo tenentes, capitães e por aí fora, onde é que já se viu a militaragem a coscuvilhar na literatura, claro que o resultado era espantoso de ridículo. De todo o modo os regimes policiais nunca caem pelo ridículo e, quando caem, os ridículos somos nós que tratamos bem aquela cambada que, logo que se apanha à solta e com estatuto de democrata, é um fartote! Aí vai disto!
A Judite e eu bem que os vimos, travestidos de gente decente, a continuar a sua lôbrega existência com o descaramento que a impunidade concede. Cala-te boca!
Afinal o título que arranjei em desespero de causa serve lindamente o texto. A desfaçatez campeia. “O deserto cresce. Ai de quem acoita desertos” (Nietzsche, “ditirambos dionisíacos”). Vale tudo inclusive tirar olhos.
Descansem. Não vou falar de política ou de políticos. Bem que tinha vontade mas hoje fico-me pelo caso da desgraçada criança desaparecida no Algarve. Li o quantum satis para ficar estomagado. Não percebo como é que se deixam três crianças pequeníssimas num quarto a cinquenta metros de uma sala de jantar. Não percebo como é que há ingleses que jantam pelas dez da noite. Não percebo porque é que deixam a porta da casa onde estão os meninos aberta ou entreaberta. Não percebo o que vem cá fazer uns polícias ingleses que de certeza não pescam uma de português. Não percebo porque é que o Beckham & similares vem para os media fazer apelos. Será que pensam que um raptor se iria incomodar com eles, isto no caso de ser um raptor desses que querem ganhar dinheiro e não um vicioso qualquer. Não percebo, ou percebo demasiadamente bem, a gritaria dos jornais. Afinal eles têm uma história para vender e uma criança raptada vale o seu peso em ouro.
E finalmente percebo mal, ou muito bem, as declarações dos cavalheiros ligados ao turismo algarvio. Por eles basta que a história vá morrendo, depressa aliás que o Verão está à porta. Às vezes apetecia-me viver num outro lugar mas é escusado. Lá como cá uma história destas é um presente antes da silly season.

Na gravura: Paul Lafargue


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