23 maio 2007

Estes dias que passam 63



grão a grão...

Eu não conheço o senhor professor espirituoso nem a sua chefe ultra-sensível. Nem tenho qualquer vontade de os conhecer, acrescento. Primeiro, porque o cavalheiro em questão não me aquece nem arrefece, mesmo quando conta anedotas. Segundo, porque de polícias & similares fiquei cheio nos anos – e foram bastantes! - em que vivi sob a pata de gente “sensível” e muito atenta às ofensas contra os poderes públicos.
Portanto a tal criatura que vê numa brejeirice uma ultraje às instituições não faz parte do círculo onde costumo e quero continuar a circular.
Estas coisas são sempre assim: há um “inner circle” de poder, distante e majestoso quantum satis. À sua volta desenvolve-se uma espessa camada de pessoas que do círculo dependem e que tratam do que em França se costuma chamar “les basses besognes”. Eu não estou a ver o senhor primeiro ministro a incomodar-se com o senhor licenciado Charrua. Era o que faltava!
O senhor primeiro ministro sabe, ou devia saber, que para as charruas há sempre alguém que as puxa, empurra ou deita fora. No caso, uma senhora directora duma delegação regional de educação do norte. Provavelmente, essa senhora, está nesse lugar, por nomeação. Pode acontecer que antes nunca lá tivesse trabalhado. Mas mesmo que seja da casa, pode acontecer que não passe de uma técnica superior de segunda classe, ou até dessa novel sub-espécie de funcionários, os CIT. Um CIT é um contratado com “contrato individual de trabalho”, isto é uma criatura que não tem o famoso vinculo ao Estado e que pode ser posto porta fora com relativa facilidade.
Esse facto, essa vaga espada de Damocles, ajuda a perceber que, neste momento e dentro das repartições públicas, haja uma coisa a desenvolver-se: o medo. E uma outra: a competição pelo lugar, pelas boas graças do chefe, pela ascensão, pelas boas classificações que agora estão sujeitas a apertadas percentagens, enfim pelo emprego.
Compreende-se que neste ambiente carregado de suspeição, se instale não a política mas a baixa política, a chicana, a delação e o seu prémio, a defesa “a outrance” da ordem estabelecida. Isto não é novo em Portugal: ocorreu durante alguns dos piores momentos da Primeira República, da Ditadura Nacional para não falar de épocas mais recuadas onde uma palavrinha oportuna a um “familiar da Inquisição” podia significar uma fogueirinha simpática para o delatado e uma magra recompensa para o delator.
Já por aqui tive oportunidade de dizer que entendo a liberdade como o supremo bem do Homem. E a liberdade significa que toda a gente pode ter opiniões, expressá-las livremente sem receio de perseguição. Claro que a liberdade tem naturais fronteiras. Mas essas não são a de interpretação subjectiva que pode entender como insulto uma brejeirice pura e simples ou uma tontaria. No caso em apreço, algo que se diz a um ou dois colegas, no recato de um gabinete, durante o intervalo do almoço, parece pertencer absolutamente à esfera privada e não à denúncia pública. Dizer que Portugal é um país de bananas é dizer uma verdade de La Palisse, por muito que me custe, e custa, e que possa ser ofensivo, mas não é.
Dizer “se precisares de um doutoramento e de mais seis anos na carreira só tens de me mandar um fax” é uma mera piada, que pode ser considerada de mau gosto pela sensível senhora directora já citada mas não passa disso, se é que sequer lá pode chegar.
O finado doutor (por extenso) Oliveira Salazar era conhecido em todo o país pelo “Botas” (alusão ao seu hábito de usar uns botins), pelo “Esteves” porque nunca era anunciado antecipadamente onde ele ia mas apenas se informava onde ele tinha ido (Sª Exª o Senhor Presidente do Conselho esteve...). O ultimo presidente da República do Estado Novo era conhecido pelo “Mira Carpetes” pelo hábito de olhar sempre para o chão. Sobre ambos contavam-se centenas de anedotas que conseguiam furar a censura dos jornais e aparecer até em revistas do Parque Mayer.
Nunca que eu me lembre a PIDE se incomodou com tais graçolas antes parece que as considerava meras válvulas de escape idóneas para evitar outra possivelmente piores e com mais alcance.
Foi preciso chegar ao ano 33 da revolução de Abril para vermos uma zelosa funcionária a mostrar que ser mais papista que o papa é virtude e coragem cívica. E pelos vistos, os seus superiores, encantados com o facto de haver quem faça o trabalho sujo por eles, acham que não têm nada a ver com isto. Pelo menos é o que se depreende das declarações pomposas de um pomposo cavalheiro que apareceu nas televisões a assobiar para o lado. Segundo a criatura, o processo disciplinar e consequências anexas foi instaurado por quem tinha poder para o fazer pelo que o Ministério não tem nada com o assunto. A senhora ministra que, num primeiro tempo, terá dito – ao que julgo mas corrijam-me se estou enganado – que até um ministro de Cavaco tinha sido escovado por ter dito uma piada (uma piada sobre as pessoas que morriam num hospital público à conta de um poluente horrível!!, seja dito de passagem) pelo que não tinha nada a dizer. Eu também não conheço a senhora ministra, graças a Deus!, mas ,verdade se diga, se isto for verdade, não a quero conhecer de modo nenhum. Porque esta comparação é afrontosa da minha parca inteligência e da minha situação de cidadão. Porque um argumento destes dá a entender que, de comparação em comparação, tudo é permitido. E pior ainda: porque vem declarar alto e bom som que a partir de agora um qualquer gauleiter, um qualquer kapo tem poderes suficientes para erradicar o mal e a caramunha. Hoje processa-se disciplinarmente, amanhã logo se verá. As tiranias não começam com campos de concentração mas com empurrõezinhos, com “safanões dados a tempo” em gente que “pode até ser” do estofo de “perigosos bombistas” como dizia muito justamente o Botas ao António Ferro.
Se a senhora ministra tivesse o bom senso, por exemplo, duma sua antecessora na Saúde, durante um governo socialista, chamaria à puridade e sem escândalo a tal directora de não sei o quê, dava uma meiga palmadinha no rabinho da criaturinha e punha-a noutro serviço, quiçá mais bem pago mas longe desta porcaria que tresanda a burrice, que faz perder votos, que é sinal de desorientação política e ética.
Claro que eu sempre poderei esperar pelo resultado do tal processo disciplinar. Resta saber se o instrutor sabe duas linhas de direito e se tem espinha dorsal para as fazer valer. E mesmo que o dito Charrua saia ilibado, sempre quero saber se permanece e por quanto tempo na tal direcção de educação, se vai ter algo que fazer por lá, ou se –como acontece tantas vezes, irá absolvido e vencedor endoidecer suavemente num gabinete sem nada, ou numa simples secretaria colocada num desvão.
Vai uma apostinha?

Os leitores desculparão a ilustração de hoje. Refere-se a um tempo miserável e a um convite à delação, à vergonha: é o célebre affiche rouge colado em toda a França ocupada para demonstrar que os resistentes eram todos uma súcia de judeus, de pervertidos e de estrangeiros.

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