Às vezes uma pessoa tropeça na melancolia. Basta uma música que se ouve na televisão, uma palavra, um livro que cai da estante e, milagre, um papel que sai lá de dentro, eu já ouvi esta história nalguma parte, mas de facto, há um papel que cai. Mas comecemos pelo princípio como dizia um imortal professor catedrático de Direito da não menos imortal universidade de Coimbra. “La saga des chefs du val au lac” colecção petite bibliothéque payot, impresso a 3 de Setembro de o 1980, texto traduzido do islandês com tradução, introdução e notas de Régis Boyer. Na página 3, ao alto e junto do canto direito, uma etiqueta branca pequena com o nº 7390 e por baixo 8/1984 ou seja o número de entrada do livro na minha biblioteca o mês e o ano.
Antes que alguém se espante, devo dizer que tenho, entre mais um cento doutras, a mania das sagas islandesas. Foi vício que me ficou da leitura de Borges, melhor do livrinho “Antiguas literaturas germânicas”. E porventura dalguma leitura de Júlio Verne, “A viajem ao centro da terra” onde é citado Snorri Sturlusen.
Mas tudo isto não tem nada a ver com o papel. O papelucho esvoaçante, o passageiro clandestino de uma saga, melhor dizendo do livro onde estava registada. Esse papel impertinente que cai e que, oh quem dera!, pode conter um segredo, uma carta, alguma inutilidade que, porém o deixa de ser, nimbada que fica pela redescoberta anos depois.
E aqui há de facto uma pequeníssima história, uma dessas anedotas que nos tempos que correm perdem todo o sentido mas que acabam por ser uma vaga fotografia do passado.
De facto a carta –era uma carta – uma folha pequenina em papel quadriculado, arrancado de algum caderno mas escrita a tinta permanente numa letra antiga, cerrada, cuidadosamente contida entre as duas linhas, era da Maria. E a Maria quem é? Perguntará alguma leitora curiosa. Pois a Maria era a costureira que durante anos e anos acudiu lá a casa, quando vivíamos entre a Figueira e Buarcos. Depois de partirmos para África a Maria passou a ir a casa da tia Néné. Convém dizer que para mim e para todos os de lá de casa, a Maria era da família ou tratada como tal. Normalmente vinha muito cedo depois do almoço, lanchava connosco e saía já pela noitinha. Morava a duzentos, trezentos metros, num pequeno andar em cima da mercearia do senhor Falcão, onde a minha mãe tantas vezes nos mandava fazer um recado. A Maria conhecia a vida da casa, o meu pai era naturalmente o médico dela, da mãe, da irmã, médico gratuito já se vê que elas eram pobres. Obviamente a Maria não podia costurar de graça, porque, como já disse, vivia do seu trabalho e ainda ajudava as da casa dela. Em contrapartida era o que se chama uma amiga para todas as ocasiões. E esta carta é exemplo disso.
Anos depois de termos ido para África, voltei para continuar os estudos na Metrópole. E voltei à Figueira, claro. E à Maria, evidentemente, para quem eu continuava a ser um dos meninos. Em idos de 62, já na faculdade, as coisas começaram a aquecer e houve necessidade de pôr a salvo uns livros e alguma papelada. Para o efeito não sobravam os lugares. Não só alguns dos familiares não eram de confiança como sobretudo, as casas de outros eram sítios óbvios para alguma diligencia da polícia. Não cheguei a pedir nada à Maria, foi ela quem, num “casual” encontro comigo em Coimbra, me disse que se fosse preciso passar uns dias sossegado, e sublinhou o sossegado, na casa dela havia vago o quarto da mãe, entretanto morta. Agradeci-lhe mas lembrei-me logo da livralhada a que tinha estima e me custara várias mesadas inteiras. Ó Maria, posso mandar uns livros para lá? Claro que podia. Todavia, resolvi explicar que esses livros poderiam ser hospedes perigosos. Manda os livros, Marcelinho. Disso sei eu que o meu irmão é ferroviário...
E os livros lá viajaram. Anos depois voltaram, claro. Porém, e é aí que a carta intervém, a Maria entendeu guardar uns cadernos e uns papeis que tinham viajado dentro duma caixa de sapatos. Terá entendido que, apesar de tudo, os anos ainda eram os do Estado Novo e que aquela papelada ainda podia dar problemas. Veio o 25 de Abril, a Maria de quando em quando vinha ao Porto para casa dos meus pais, já só como visita, diga-se pois estava já com uns largos anos.
Até que sentindo a Parca perto, lembrou-se, subitamente dos papeis. E como um testamento, e de certo modo era-o, escreveu essa última carta onde me avisava de um par de papeis com quase vinte anos e que me pertenciam. A carta chegou no Verão, princípios de Agosto, metia-a no livro da saga dos chefes do vale do lago e parti para Itália. Em Setembro passo lá, pensei, vou a casa da Maria, vamos comer um robalo a Buarcos, com a tia Néné e com o Tio Marcos, e trago aquilo tudo.
Em Setembro, esqueci-me. O livro estava lido, o papel ficara lá dentro, provavelmente a marcar a penúltima etapa de leitura, e zás!, estante com ele. Até agora. No intervalo, mudei de casa, o livro teve diferentes estantes até chegar a esta, onde jaz com mais uns colegas do mesmo tema, outras sagas avulsas, o volume de sagas da Pleiade, as Eddas, o Kalevala e alguma obra de Sturlusen.
Entretanto a Maria morreu, estando eu longe, nem já sei onde. A casa já não existe e os papeis provavelmente jazem amortalhados numa velha caixa de sapatos, que lhes serve de túmulo. Lembro-me que, nessa misturada, iam também alguns textos cometidos por mim nesses verdes anos. Aí está um pedaço do meu passado, tão morto como a gentil Maria, fada do corte e costura, amiga ora convertida numa sombra amável que, quero acreditar, vai rezando por nós, sobreviventes.
Matisse: paisagem de Collioure
Antes que alguém se espante, devo dizer que tenho, entre mais um cento doutras, a mania das sagas islandesas. Foi vício que me ficou da leitura de Borges, melhor do livrinho “Antiguas literaturas germânicas”. E porventura dalguma leitura de Júlio Verne, “A viajem ao centro da terra” onde é citado Snorri Sturlusen.
Mas tudo isto não tem nada a ver com o papel. O papelucho esvoaçante, o passageiro clandestino de uma saga, melhor dizendo do livro onde estava registada. Esse papel impertinente que cai e que, oh quem dera!, pode conter um segredo, uma carta, alguma inutilidade que, porém o deixa de ser, nimbada que fica pela redescoberta anos depois.
E aqui há de facto uma pequeníssima história, uma dessas anedotas que nos tempos que correm perdem todo o sentido mas que acabam por ser uma vaga fotografia do passado.
De facto a carta –era uma carta – uma folha pequenina em papel quadriculado, arrancado de algum caderno mas escrita a tinta permanente numa letra antiga, cerrada, cuidadosamente contida entre as duas linhas, era da Maria. E a Maria quem é? Perguntará alguma leitora curiosa. Pois a Maria era a costureira que durante anos e anos acudiu lá a casa, quando vivíamos entre a Figueira e Buarcos. Depois de partirmos para África a Maria passou a ir a casa da tia Néné. Convém dizer que para mim e para todos os de lá de casa, a Maria era da família ou tratada como tal. Normalmente vinha muito cedo depois do almoço, lanchava connosco e saía já pela noitinha. Morava a duzentos, trezentos metros, num pequeno andar em cima da mercearia do senhor Falcão, onde a minha mãe tantas vezes nos mandava fazer um recado. A Maria conhecia a vida da casa, o meu pai era naturalmente o médico dela, da mãe, da irmã, médico gratuito já se vê que elas eram pobres. Obviamente a Maria não podia costurar de graça, porque, como já disse, vivia do seu trabalho e ainda ajudava as da casa dela. Em contrapartida era o que se chama uma amiga para todas as ocasiões. E esta carta é exemplo disso.
Anos depois de termos ido para África, voltei para continuar os estudos na Metrópole. E voltei à Figueira, claro. E à Maria, evidentemente, para quem eu continuava a ser um dos meninos. Em idos de 62, já na faculdade, as coisas começaram a aquecer e houve necessidade de pôr a salvo uns livros e alguma papelada. Para o efeito não sobravam os lugares. Não só alguns dos familiares não eram de confiança como sobretudo, as casas de outros eram sítios óbvios para alguma diligencia da polícia. Não cheguei a pedir nada à Maria, foi ela quem, num “casual” encontro comigo em Coimbra, me disse que se fosse preciso passar uns dias sossegado, e sublinhou o sossegado, na casa dela havia vago o quarto da mãe, entretanto morta. Agradeci-lhe mas lembrei-me logo da livralhada a que tinha estima e me custara várias mesadas inteiras. Ó Maria, posso mandar uns livros para lá? Claro que podia. Todavia, resolvi explicar que esses livros poderiam ser hospedes perigosos. Manda os livros, Marcelinho. Disso sei eu que o meu irmão é ferroviário...
E os livros lá viajaram. Anos depois voltaram, claro. Porém, e é aí que a carta intervém, a Maria entendeu guardar uns cadernos e uns papeis que tinham viajado dentro duma caixa de sapatos. Terá entendido que, apesar de tudo, os anos ainda eram os do Estado Novo e que aquela papelada ainda podia dar problemas. Veio o 25 de Abril, a Maria de quando em quando vinha ao Porto para casa dos meus pais, já só como visita, diga-se pois estava já com uns largos anos.
Até que sentindo a Parca perto, lembrou-se, subitamente dos papeis. E como um testamento, e de certo modo era-o, escreveu essa última carta onde me avisava de um par de papeis com quase vinte anos e que me pertenciam. A carta chegou no Verão, princípios de Agosto, metia-a no livro da saga dos chefes do vale do lago e parti para Itália. Em Setembro passo lá, pensei, vou a casa da Maria, vamos comer um robalo a Buarcos, com a tia Néné e com o Tio Marcos, e trago aquilo tudo.
Em Setembro, esqueci-me. O livro estava lido, o papel ficara lá dentro, provavelmente a marcar a penúltima etapa de leitura, e zás!, estante com ele. Até agora. No intervalo, mudei de casa, o livro teve diferentes estantes até chegar a esta, onde jaz com mais uns colegas do mesmo tema, outras sagas avulsas, o volume de sagas da Pleiade, as Eddas, o Kalevala e alguma obra de Sturlusen.
Entretanto a Maria morreu, estando eu longe, nem já sei onde. A casa já não existe e os papeis provavelmente jazem amortalhados numa velha caixa de sapatos, que lhes serve de túmulo. Lembro-me que, nessa misturada, iam também alguns textos cometidos por mim nesses verdes anos. Aí está um pedaço do meu passado, tão morto como a gentil Maria, fada do corte e costura, amiga ora convertida numa sombra amável que, quero acreditar, vai rezando por nós, sobreviventes.
Matisse: paisagem de Collioure
1 comentário:
MCR, lendo as suas histórias, e não o conhecendo, poder-se-ia pensar que tem para cima de100 anos, tão numerosas são. Não é o caso e daí o espanto: teve de facto aquilo a que se chama uma vida preenchida. Um pequeno papel traz á lembrança um rol de acontecimentos. E já agora, contados de uma forma deliciosa.
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