A Câmara, o Rivoli e os espaços culturais do Porto
O que se lê em seguida é um comentário ao excelente texto da “o meu olhar” a propósito do espectáculo “Jesus Cristo Superstar”. Não vale a pena falar do espectáculo em si que não vi, mas de que gostei na sua (felizmente vista) versão Broadway. Aliás, será difícil fazer deste JSS ou do Cats um mau espectáculo: estejam as vozes afinadas e aquilo segue em velocidade de cruzeiro.
Interessa-me, sim, a discussão sobre o destino do Rivoli. Gazolina e Primo de Amarante dizem, e bem –muito bem, mesmo – de sua justiça. Dado que sempre me interessou o tema aqui venho à estacada. E reproduzo o que escrevi em comentário que um massacrante browser não me permitiu publicar enquanto tal:
“Pessoalmente não faria parte do numeroso grupo que se manifestou em silêncio e com um R (reprovação?) contra o uso do Rivoli. Também não faria parte dos que entraram. Entendo que neste momento, a mim, antigo responsável da Delegação Regional de Cultura do Norte, não ficaria bem comparecer e com isso, dar um sinal de concordância com a política cultural (???!!!) do senhor Rui Rio.
Já aqui escrevi sobre os recentes acontecimentos no Rivoli e já aqui condenei por inútil e desmobilizadora, a ocupação do Rivoli por meia dúzia de criaturas. O espectáculo deprimente dessa ocupação foi salvo pelo mesmo senhor Rio que impaciente mandou a polícia evacuar os ocupantes quando já era patente que nem eles tinham apoios cá fora, nem a população se apercebera minimamente da justeza dessa acção “rivolucionária”. Rio conseguiu fazer deles o que eles mesmos não conseguiriam: uma espécie de mártires.
A questão Rivoli é a seguinte: deve ou não uma Câmara gerir um espaço dedicado às artes de palco ou não? Se sim, em que termos e com que limites?
Pessoalmente, com a experiência adquirida de anos e anos de vacas magras, recordo a gestão do Auditório Nacional Carlos Alberto a cuja administração estive sempre obrigatoriamente ligado. Para quem não se recorde (ou não queira recordar-se...) o ANCA foi durante anos o único espaço cultural aberto de actividades de palco (teatro, bailado, música, marionetas) e de cinema. Ali se realizaram as sessões do cineclube, os fantasporto, as dezenas de ciclos especiais de cinema. Ali passaram em v/o Murnau, Griffith ou Ford. O que de melhor veio a Portugal no capítulo dança passou lá. Todos os grandes cantautores portugueses do Zeca ao Sérgio cantaram ali. O Orfeão Portuense, a Juventude musical. O círculo de Cultura Musical e o círculo Portuense de Ópera tiveram ali, naquela sal casas cheias. O mesmo se diga do jazz, e de algum teatro estrangeiro. E com orçamentos limitados. Limitadíssimos. Angustiosamente limitados. Sempre se soube dosear o espectáculo de massas e o pequeno de vanguarda. Porque do primeiro há excelentes coisas e nem sempre o segundo é oiro de lei.
Bastaria copiar este modelo de gestão que teve os favores do público, os louvores da critica e a desatenta bênção dos poderes constituídos que louvavam mas não desapertavam os cordões à bolsa. As contas foram publicadas, o ratio de espectadores idem. E era algo com que hoje nenhuma sala do Porto sonha.
Se a Câmara Municipal do Porto não está para culturices nem despesas que venda a casa. Ou transforme-a num local de “eventos” que é o que parece vão fazer aquela coisa em forma de assim que se chama edifício transparente. Parece que a vão dar de mão beijada a alguém que por pouco dinheiro tem esperanças de ganhar muito.
Não me venham é com os custos. Esta triste câmara municipal vai pela segunda e desastrada vez realizar um coisa pindérica chamada “grande circuito da Boavista”. Duvido que aquilo dê sequer para pagar a propaganda. Seguramente não leva o enlameado nome da cidade a parte alguma, excepto a Matosinhos que se ri à gargalhada e tem um sólido programa cultural. Mas Matosinhos é gerida por gente inteligente. Como Gaia, agora sede de uma série de organismos culturais que já foram do Porto. Até a Maia. E ainda há-de chegar a vez de Gondomar passar as palhetas ao Porto, com o sem major Loureiro. Por cá reina esta vil e apagada tristura a que nem o La Féria consegue dar brilho.
A segunda questão que se põe é esta: a “cultura” promovida municipalmente é para dar lucro? Se sim, porque é que andam a gastar dinheiro com o apoio ao S João festa retintamente popular que não precisa de nada da Câmara? Aliás precisaria de uma postura municipal a proibir os martelos de plástico, mas isso é areia de mais para a camioneta municipalizada...
E continuando: acaso a “Casa da Música” dá lucro? E se não der, o que é que se faz? Vende-se para lupanar moderno apropriado a jogadores de futebol e da bolsa?, Faz-se um salão de bingo? Alguém dirá que a CM tem uns mecenas. Mas será que alguém acredita que o mecenato cobre tudo? Aqui e hoje? E nesse mecenato há só privados generosos (!?) ou também entidades públicas e institucionais? E se houver, donde vem a sua contribuição senão dos bolsos dos contribuintes? Alguém acredita (há gente para tudo mas para tanto...) que o Museu de Serralves ou o Coliseu do Porto se fizeram com mecenas? Desconhecer-se-á que o Estado e as autarquias entraram com a parte de leão na compra, no arranjo, no pagamento de actividades durante anos. E que se calhar ainda entram forte e feio na contribuição para a manutenção desses organismos?
Portugal é um país de brandos costumes e de brandíssima desatenção. Só assim se percebe que os arautos do privado a todo o custo são as mesmíssimas pessoas que ao menor arrepio, uivam, gritam, imploram a intervenção do Estado. É vê-los a bramir porque a China nos enche de camisas, porque a Espanha vende cá a melhor preço a fruta, porque há que travar a emigração e, já agora, a imigração.
A questão de um Rivoli municipal ou privado é pois uma falsa e estúpida questão: é possível ter um bom programa cultural, diferenciado, agradando a gregos e a troianos, com um orçamento claro. Isso passa-se com o Coliseu que consegue navegar neste encapelado mar sem especial sobressalto.
À Câmara cumpriria apenas ter algum bom senso. E algum bom gosto se isto não fosse (mas é) pedir muito.
gravura: Matisse, claro: la joie de vivre
Interessa-me, sim, a discussão sobre o destino do Rivoli. Gazolina e Primo de Amarante dizem, e bem –muito bem, mesmo – de sua justiça. Dado que sempre me interessou o tema aqui venho à estacada. E reproduzo o que escrevi em comentário que um massacrante browser não me permitiu publicar enquanto tal:
“Pessoalmente não faria parte do numeroso grupo que se manifestou em silêncio e com um R (reprovação?) contra o uso do Rivoli. Também não faria parte dos que entraram. Entendo que neste momento, a mim, antigo responsável da Delegação Regional de Cultura do Norte, não ficaria bem comparecer e com isso, dar um sinal de concordância com a política cultural (???!!!) do senhor Rui Rio.
Já aqui escrevi sobre os recentes acontecimentos no Rivoli e já aqui condenei por inútil e desmobilizadora, a ocupação do Rivoli por meia dúzia de criaturas. O espectáculo deprimente dessa ocupação foi salvo pelo mesmo senhor Rio que impaciente mandou a polícia evacuar os ocupantes quando já era patente que nem eles tinham apoios cá fora, nem a população se apercebera minimamente da justeza dessa acção “rivolucionária”. Rio conseguiu fazer deles o que eles mesmos não conseguiriam: uma espécie de mártires.
A questão Rivoli é a seguinte: deve ou não uma Câmara gerir um espaço dedicado às artes de palco ou não? Se sim, em que termos e com que limites?
Pessoalmente, com a experiência adquirida de anos e anos de vacas magras, recordo a gestão do Auditório Nacional Carlos Alberto a cuja administração estive sempre obrigatoriamente ligado. Para quem não se recorde (ou não queira recordar-se...) o ANCA foi durante anos o único espaço cultural aberto de actividades de palco (teatro, bailado, música, marionetas) e de cinema. Ali se realizaram as sessões do cineclube, os fantasporto, as dezenas de ciclos especiais de cinema. Ali passaram em v/o Murnau, Griffith ou Ford. O que de melhor veio a Portugal no capítulo dança passou lá. Todos os grandes cantautores portugueses do Zeca ao Sérgio cantaram ali. O Orfeão Portuense, a Juventude musical. O círculo de Cultura Musical e o círculo Portuense de Ópera tiveram ali, naquela sal casas cheias. O mesmo se diga do jazz, e de algum teatro estrangeiro. E com orçamentos limitados. Limitadíssimos. Angustiosamente limitados. Sempre se soube dosear o espectáculo de massas e o pequeno de vanguarda. Porque do primeiro há excelentes coisas e nem sempre o segundo é oiro de lei.
Bastaria copiar este modelo de gestão que teve os favores do público, os louvores da critica e a desatenta bênção dos poderes constituídos que louvavam mas não desapertavam os cordões à bolsa. As contas foram publicadas, o ratio de espectadores idem. E era algo com que hoje nenhuma sala do Porto sonha.
Se a Câmara Municipal do Porto não está para culturices nem despesas que venda a casa. Ou transforme-a num local de “eventos” que é o que parece vão fazer aquela coisa em forma de assim que se chama edifício transparente. Parece que a vão dar de mão beijada a alguém que por pouco dinheiro tem esperanças de ganhar muito.
Não me venham é com os custos. Esta triste câmara municipal vai pela segunda e desastrada vez realizar um coisa pindérica chamada “grande circuito da Boavista”. Duvido que aquilo dê sequer para pagar a propaganda. Seguramente não leva o enlameado nome da cidade a parte alguma, excepto a Matosinhos que se ri à gargalhada e tem um sólido programa cultural. Mas Matosinhos é gerida por gente inteligente. Como Gaia, agora sede de uma série de organismos culturais que já foram do Porto. Até a Maia. E ainda há-de chegar a vez de Gondomar passar as palhetas ao Porto, com o sem major Loureiro. Por cá reina esta vil e apagada tristura a que nem o La Féria consegue dar brilho.
A segunda questão que se põe é esta: a “cultura” promovida municipalmente é para dar lucro? Se sim, porque é que andam a gastar dinheiro com o apoio ao S João festa retintamente popular que não precisa de nada da Câmara? Aliás precisaria de uma postura municipal a proibir os martelos de plástico, mas isso é areia de mais para a camioneta municipalizada...
E continuando: acaso a “Casa da Música” dá lucro? E se não der, o que é que se faz? Vende-se para lupanar moderno apropriado a jogadores de futebol e da bolsa?, Faz-se um salão de bingo? Alguém dirá que a CM tem uns mecenas. Mas será que alguém acredita que o mecenato cobre tudo? Aqui e hoje? E nesse mecenato há só privados generosos (!?) ou também entidades públicas e institucionais? E se houver, donde vem a sua contribuição senão dos bolsos dos contribuintes? Alguém acredita (há gente para tudo mas para tanto...) que o Museu de Serralves ou o Coliseu do Porto se fizeram com mecenas? Desconhecer-se-á que o Estado e as autarquias entraram com a parte de leão na compra, no arranjo, no pagamento de actividades durante anos. E que se calhar ainda entram forte e feio na contribuição para a manutenção desses organismos?
Portugal é um país de brandos costumes e de brandíssima desatenção. Só assim se percebe que os arautos do privado a todo o custo são as mesmíssimas pessoas que ao menor arrepio, uivam, gritam, imploram a intervenção do Estado. É vê-los a bramir porque a China nos enche de camisas, porque a Espanha vende cá a melhor preço a fruta, porque há que travar a emigração e, já agora, a imigração.
A questão de um Rivoli municipal ou privado é pois uma falsa e estúpida questão: é possível ter um bom programa cultural, diferenciado, agradando a gregos e a troianos, com um orçamento claro. Isso passa-se com o Coliseu que consegue navegar neste encapelado mar sem especial sobressalto.
À Câmara cumpriria apenas ter algum bom senso. E algum bom gosto se isto não fosse (mas é) pedir muito.
gravura: Matisse, claro: la joie de vivre
8 comentários:
A vanguarda nunca existiria se não existisse o mainstream. É preciso é saber doseá-las bem.
Eu gostava de acreditar que assim é...mas só consigo lembrar a extinta Companhia de Bailado da Gulbenkian.
E até hoje (fecharam as portas em 2005), não entendo a argumentação que foi publicada... fico sempre com a sensação de que um dia vão torcer a orelha e não deita sangue!
O que penso sobre o espectáculo já o referi no meu último post. Estou de acordo com o que diz o MCR no último parágrafo, ou seja que a “questão de um Rivoli municipal ou privado é uma falsa questão” porque o que importa é “ter um bom programa cultural, diferenciado, agradando a gregos e a troianos, com um orçamento”.
A oferta cultural da cidade não se reduz ao Rivoli nem creio que a actividade do Rivoli na última meia dúzia de anos tenha as virtualidades que muitos agora lhe atribuem. O Auditório Nacional Carlos Alberto tem uma actividade tão intensa e interessante como aquela que MCR refere ao tempo em que tinha responsabilidades na área cultural. Basta consultar o respectivo site.
O Teatro Nacional S. João e o Teatro do Campo Alegre (este também municipal) também apresentam programações contínuas, de grande qualidade e diversificadas. A estes teatros públicos podemos ainda juntar o Teatro Helena Sá Costa, para verificarmos que a cidade dispõe de um lote de equipamentos públicos de grande qualidade.
O que não existia na cidade era um equipamento para receber grandes musicais como os que refere e com uma permanência mais prolongada. Ora, em todas as grandes cidades europeias encontramos este tipo de espectáculos e não vejo qualquer problema em o Porto também passar a ter essa oferta.
Grave, em meu entender, era se para ter o Jesus Cristo Superstar o Porto ficasse sem oferta, mas como vê, se aos teatros públicos que referi lhe juntar os teatros independentes – Pé de Vento, Teatro da Vilarinha, e outros – não falta aos portuenses e a quem nos visita por onde escolher.
Pode-se não concordar com a entrada do La Feria no Rivoli por esta ou aquela razão. O que não me parece razoável é que se diga que não se concorda porque isso corresponde ao Porto perder um espaço cultural ou os artistas do Porto perderem um espaço para actuar (trabalhar).
O seu post merecia outros comentários, apenas registo mais este. Como sabe o tal edifício transparente está para ali abandonado desde que foi construído pela Porto 2001, sem que alguém tenha encontrado uma solução para o imóvel que terá custado uns milhões de euros. Pelos vistos nem o autor do projecto nem quem o encomendou indicaram qual o seu fim.
Agora, parece que encontraram uma solução (utilidade) e a um equipamento abandonado e em degradação alguém vai lá fazer alguma coisa (anoto que não sei o quê).
Perante este facto podemos avaliá-lo de duas maneiras. Uma, ficar satisfeitos porque finalmente alguém vai produzir alguma coisa naquele edifício e pensar que a cidade vai, finalmente, poder usufrui-lo, etc.; a outra, é pensar que finalmente alguém se está a governar com aquilo ou, como diz, que vão dar de mão beijada a alguém que por pouco dinheiro tem esperanças de ganhar muito.
Apesar de não fazer a mínima ideia de quanto poderão ganhar, confesso que me inclino para a primeira leitura, ou seja, ainda bem que aquilo vai passar a ter utilidade.
Já lhe respondi, onde coloquei os meus comentários e continuo a não estar de acordo consigo. Temos pontos de vista diferentes e não há mal nenhum nisso (pelo menos no plano do debate)
O La Féria diz que abandona o Rivoli, se não tiver público. E eu penso que então poderia continuar a levar os seus espectáculos a onde sempre os levou: ao Coliseu. Aí existe o tal equipamento para receber grandes musicais.
O que La Féria quer é ele próprio que o diz e demonstra bem onde está o seu interesse cultural pelo Porto. Quanto ao “Jesus Cristo Superstar ” há quem diga que o filme da ópera roque é muito mais interessante. Como vi o filme, sinto-me dispensado da peça de La Féria.
Caro Primo,
Acho que é na diversidade que há evolução. Se pensássemos todos na mesma ainda estaríamos na idade da pedra. Tenho consigo muitos pontos em comum ao nível de ideias, concordo com muita das coisas que escreve na Margem Esquerda, Não concordo com tudo e, este assunto do Rivoli é, em parte, uma delas. E digo em parte porque subscrevo algumas das coisas que refere. Sabe, eu sou realmente uma pessoa com muitas dúvidas. Sinceramente.
Aliás, o Primo já escreveu aqui no Incursões um excelente texto sobre a razão, que valeria a pena repescar. Já algum tempo que tenho vontade de o repescar porque essa é uma questão central. Talvez o faça um dia destes.
Um abraço
Sempre pensei, no fundamental, encontravamos denominadores comuns. Até mesmo em relação ao livro da Carolina. Quer dizer, na questão de o ler para o avaliar. E só !...
Concordo com o comentário de MCR. Rio, de vistas curtas, procurou livrar-se de um problema contabilístico, até porque as suas preocupações com a cidade, com a oferta cultural da cidade, não o levam tão longe. Se houver um La Féria qualquer que tome conta daquilo, é um favor que faz a Rio. Se ainda fossem umas corridinhas...
Já agora, por que razão La Féria teve de dizer que a maior parte dos actores de JSS era do Norte? Acaso alguma vez disse que a maior parte dos actores que trabalha nas suas peças em Lisboa é do Sul? Mais um provincianismo para portuense ouvir e (presumia ele) gostar.
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