15 junho 2007

Estes dias que passam 64



O escriba põe mas o quotidiano dispõe.


Era para escrever mais um pouco sobre a Traulitânia, esse risonho e perdido país, farol da civilização e orgulho dos seus íncolas (toma MSP: vai ao dicionário!) mas a realidade impõe-se.
Comecemos então por esse outro farol de outros tempos e outros combates, a China. A República Popular da China país socialista! Enfim súcia lista e vá lá: escravos. Aqui está uma extraordinária consequência da vitória do pensamento de Mao Zedong ou do dos seus sucessores. A China vai entrando com estrondo no clube dos grandes e do grande capital. Com essa pequena miudeza, o recurso ao trabalho de escravos. Vamos lá ver se os escravizadores apanham daqui a pouco o habitual e merecido tiro na nuca. E se pagam a bala, como acontece com os restantes criminosos.

Deixemos esse odorífero pais levemente oriental e aproximemo-nos das costas do Mediterrâneo tão subitamente caras ao meu amigo e contemporâneo José Miguel Júdice. Gaza: um pedaço de ruínas entre um Egipto indiferente e um Israel agressivo. Milhão e meio de criaturas entre Sila e Caribdis (sempre para contentar JMJ que seguramente terá lido os seus clássicos). Todavia não é de uma tragédia grega que venho falar mas apenas de enésimo combate entre um Fatah laico e corrupto e um Hamas religioso a outrance. As más línguas bem informadas juram que foram os israelitas que praticamente criaram o Hamas. É possível, provável, mesmo se agora o Hamas se apresente como o inimigo número um dos judeus. Israel, volta e meia, imita os americanos e para combater uma gripe suscita uma pneumonia. Bom, o Hamas liquidou todos os postos militares do Fatah, duzentos e tal mortos, casas destruídas (o exemplo de Israel com uma diferença: aqui destrói-se mas rouba-se tudo, telhas incluídas, estamos numa zona pobre, que diabo!). O presidente palestiniano, dissolve o parlamento, demite o governo e deixa os seus homens de mão responder ao Hamas na Cisjordânia. O resultado pode ser mau para o Hamas, tanto mais que controla uma região (Gaza) fechada a cadeado e onde não chega sequer um centésimo da ajuda europeia. A religião militante nem sempre é boa conselheira.

Na secção de cartas dos leitores do Público hoje, um grupo de médicos toxicologistas rende uma homenagem ao meu amigo e vizinho Eduino Lopes, o criador do 1º centro de tratamento com programas de substituição em Portugal. O Eduíno é um “coimbrinha” dos quatro costados apesar dos seus trinta anos de trabalho de psiquiatra nos Estados Unidos. Uma vez a revolução feita, largou tudo por amor ao seu país e à Académica, claro. E com a humildade dos que realmente sabem, com o entusiasmo que o faz falar três oitavas acima do normal, com a sua extraordinária capacidade de trabalho, o seu patriotismo (essa palavra tão mal usada noutros) ei-lo que cria do nada o CAT da Boavista. Foi há 30 anos! O primeiro! Iduino Lopes (com I) luso-americano, adepto e doente da “Briosa”, da associação dos antigos estudantes para onde tenta – sem êxito – arrastar-me, dos fados e baladas, da boa comida e de todas as batalhas políticas e sociais. Por uma vez, fala-se de um homem de bem, de um grande profissional, de um antigo estudante de Coimbra que honra a sua alma mater. Mas ele não estava melhor na Nova Inglaterra, na sua Bóston, a gozar o Indian Summer e outras especialidades? É provável, mas ver jogar (e perder) a Académica tem um outro valor para gente como o Iduíno Lopes.

E já que se fala de gente de Coimbra, que dizer da errância ideológico-jornalistica de Vital Moreira? Será da idade? Mas ele é mais novo do que eu! Está a desculpar-se de ter sido do pc, de ter entrado num partido que, mesmo com toda a aureola resistente, foi dos poucos a aplaudir Praga, a condenar sem ambiguidade a aventura do euro-comunismo. A mim, que nunca caiu nessa tentação auto-destrutiva, espanta-me o zelo dos neo-convertidos chamem-se eles Espada, Pacheco Pereira (que apesar de tudo é o mais sereno) ou Vital Moreira. Os leitores perceberão que não cito a ideóloga Seabra, também não tanto!...ou Eurico de Figueiredo que até se pronunciou contra o aborto. Mas Vital é um caso: o país ficou a saber dele por via da sua passagem na Assembleia da República como deputado do partido comunista. E depois tem sido o que se vê, o caminho de Damasco, a revelação, e agora isto. Até Jorge Miranda, um brando social democrata, o chama à pedra no que toca às novas propostas sobre a autonomia da universidade. Será que Vital quer ser outra vez juiz do constitucional, ministro, enfim ter um poderzinho que o retire da apagada cátedra coimbrã? Ou converteu-se à excelência deste centrão pantanoso que governa ou, pelo menos, faz por isso?

E já agora, para terminar com Coimbra, um nota de regozijo. Se é verdade que o Joaquim Sousa Ribeiro é a escolha do PS para o Tribunal Constitucional, então estamos perante uma magnífica escolha. E não porque o conheça, seja seu amigo e companheiro de curso. O Joaquim Sousa Ribeiro é um grande jurista, um homem de carácter que se dá ao luxo de também ser culto e discreto. Pena só aparecer depois daquele cavalheiro que nem sequer aqueceu o lugar. Ainda bem que apesar de tudo apareceu. Isto pode ser a prova de que por vezes há algum bom senso em certas cabecinhas...

Terminemos com um grande africano, um grande nigeriano e um grande escritor: Chinua Achebe. Quem nunca o leu espere uns meses pela realização daquela feira que vende tudo ao desbarato. Andam por lá a preço vil dezenas de livros de uma colecção de autores africanos que pode ser para quem os não conhece uma revelação.
Achebe é de facto genial e em português está traduzido “A Flecha de Deus” nas edições 70. Nessa editora publicaram-se cerca de trinta títulos a maioria dos quais de autores africanos de língua inglesa. Vale a pena ir por eles sobretudo se, como foi o caso há meses, eles andarem a ser vendidos a 1 ou 2 euros!!!
Convém porém saltar ao caminho de uma generosa jornalista que põe Achebe como um pai da literatura africana. Eu bem sei que agora não se lê francês mas que diabo, mesmo em inglês há o velho Peter Abrahams, sul africano da colheita de 1919 (O rapaz da mina, ed 70) para já não falar em alguns brancos de África, por todos Allan Patton, “chora terra bem amada”. E há ainda uma mão cheia de autores de língua francesa. Sembene Ousmane, Ferdinand Oyono, Câmara Laye, Bernard B Dadié, Ahmadou Khourouma, cheik Hamidou Kane (“L’aventure ambigue” grandioso livro dos anos 60) etc... etc...
Note-se que não quis citar alguns romancistas de língua portuguesa particularmente Pepetela que é bom até na voz passiva ou o Luandino. Hoje em dia, descobre-se a pólvora com grande facilidade. O problema é que ela estava descoberta há muito. Chinua Achebe não é de facto nenhum rapaz, há-de andar pelos setenta e muitos, oitenta anos e é da mesma geração de Wole Soyinka (prémio Nobel nos anos 80) dramaturgo e romancista (Os intérpretes, há tradução portuguesa). Resumindo e baralhando: romances de autores africanos e de qualidade há-os desde 60 e, por muito que admiremos (e admiro) Chinua Achebe, há mais, igualmente bons, igualmente seminais, igualmente fundadores. E não começaram agora com um prémio mesmo que prestigioso, nem nos oitenta com o Nobel de Soyinka.

a gravura de hoje: escultura Fang (sul dos Camarões norte do Gabão)

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