Efeméride
Foi no longínquo mês de Junho de 61. Um punhado de leitores, poucos de facto, esperavam ansiosos, ou pelo menos impacientes, pelo nº 19 da revista “almanaque”. Esperavam porque pouco tempo antes, mais propriamente no 17º número datado de Março/Abril desmentia-se categoricamente que a revista estivesse a dar as últimas. É verdade que, por razões mais que evidentes, a critica almanaquiana começava não só a ser mal-vista pelas excelentíssimas autoridades, coisa corrente em Portugal, mas ia ganhando anti-corpos no establishment nacional. Em Fevereiro iniciara-se o fogo de barragem ao reino de Pacheco e ao lugar comum coisa que deixou marca nas criaturas da política, da banca, da academia e da universidade que se viam (e nisso tinham razão) retratadas. Em Março a campanha prosseguia na “guerra aos monumentos”. Com o mote “Para onde apontam estes monumentos. –Para a sua própria monumentalidade!” passavam-se em revista as pequenas vaidades lisboetas e provincianas. Leitores mais avisados que tinham começado a frequentar tardiamente aquele clube mais que suspeito puseram-se á cata dos primeiros números. O Rui Amador, ao ver-me com um exemplar, perguntou-me se eu os tinha todos e, perante a minha negativa, disparou, vai já por eles que isto não dura. Eu, ir ia, disse-lhe, mas não tenho guita que chegue. Magnânimo, o Rui emprestou-me os cacaus necessários e inclusivamente ofereceu-me uma imperial na Brasileira logo que consegui apanhar os atrasados num distribuidor da Baixa que, espantado, nos confiou que já vendera uma boa dúzia de colecções mais ou menos completas. Isto não tem ar de durar, confidenciou-nos. Curiosamente, foi esse mesmo distribuidor que em 63 nos preveniria que o Diário Ilustrado estava por um fio! E estava, que logo acabou.
Vem tudo isto, esta nostálgica memória, de uma revista fabulosa, que hoje atinge preços bem bonitos nos alfarrabistas, porque dei comigo a olhar o espectáculo do mundo e a murmurar, eclesiásticamente (de Eclesiastes) Vanitas vanitatis... a propósito de uma criatura com quem vagamente me cruzei e que, milagre milagrão da noite de S João, consegue ser cega de tanta presunção e vaidade com que se mira num espelho menos sincero do que o da bruxa má. Razões de vária ordem fizeram-me ter acesso a uma carta dirigida a um amigo meu onde ela se reclamava de altos cargos desempenhados ou não. Este “ou não” merece explicação. Para atordoar o correspondente aquela pachecal figura esgrimia de dedo em riste uma longa série de prebendas que tinha, assegurava com empáfia, recusado. Era, juro-o, um rosário que faria o último Senhor ex-Primeiro Ministro roer-se de inveja. Ali, preto no branco, perpassavam as maiores honrarias do Estado, recusadas com olímpico gesto mas propagandeadas com suspeito frenesi. O correspondente da criatura mostrou-me a carta, com ar atordoado (e não era para menos!): tu já viste isto, mcr. Um patriota! Um grande homem! O luzeiro da Ciência Pura e da Dedicação Infinita!
Concordei, claro. Nestes casos, concorda-se primeiro e depois, do vento acalmar vai-se ver se há estragos.
Mas há mais, dizia-me o meu amigo, embevecido e exaltado: Olha só a lista das suas actuais actividades.
Ó pá, não vale a pena, vamos mas é para as sardinhas que estão à nossa espera na Casa Teresa (casa frequentada pelas melhores famílias deste blog, a começar pelo duo “o meu olhar”/JSC).
Não, dizia-me o Empolgado. Tens de ler.
A fome que é boa conselheira, aconselhou-me a atender o pedido do meu amigo. Confesso que fiquei sem fala. E cansado. Muito cansado. O Pacheco em questão disparava com quanta arma tinha e ocupava meia folha de papel almaço com a lista não exaustiva das suas actuais funções. E alguns dos itens eram genéricos (p. ex. escrevera vários livros, muitos artigos, enfim esgotara a tinta Parker Quink de gerações).
-Tás a ver, mcr? Este homem mais do que um génio, do que um santo, é um Monumento perene da Raça Lusíada por mil mundos espalhada. Este homem é um quarteirão. E tão simples, tão terra a terra, tão nós cá todos bem!
- Alto aí e para o baile. Quarteirão só de sardinhas e é porque somos quatro e se calhar sobra. Tu estás é com uma fome canina e ancestral, vês a dobrar e admiras a decuplicar. Ninguém em seu perfeito senso faria propaganda de coisas que recusou. Por mim o gajo até pode dizer que deu uma tampa à Brigitte Bardot nos tempos heróicos. Heróicos dela, entenda-se que ele por essas alturas era discreto como uma ostra perlífera. Vamos para o S João enquanto não aparecem as rusgas marteleiras e os festivos já borrachos. Olha lá, alguma vez leste o “almanaque”? não? Pois vou-to emprestar que andas precisado.
E foi o que fizemos. Ai que sardinhas!
Leitoras gentis: vocês que provavelmente não são do Porto nem de nenhuma das terras que festejam o Baptista (Braga, Vila do Conde, Figueira da Foz...) não acharão qualquer substancia nesta vaga crónica que de facto, em vez dum pobre diabo envelhecido antes do tempo, só vinha lembrar uma fabulosa revista feita por um punhado de tipos que merecem não uma vénia mas um rijo abraço: José Cardoso Pires, João Abel Manta, Luís de Stau Monteiro, Eduardo Gajeiro, Baptista Bastos, Câmara Leme, João Rodrigues, Vasco Pulido Valente, Victor Pala e Carmo, Sebastião Rodrigues, Alexandre O Neil e Alexandre Pinheiro Torres, entre outros. Ou seja, gente que nos reconcilia com o país, com o S João mesmo de martelinhos de plástico, com o preço das sardinhas.
E com o dr. R.R.?
Não, isso também seria de mais!... É outro que tal...
Ó meu rico São João
Padroeiro dos poetas
Dá-me força no coração
P’r’ aturar os patetas.
(com menos sorte do que "o meu olhar" foi esta a quadra que me saiu)
Na gravura Karl Marx e Bogart. Os dois fazem alguma falta. Alguma! antes eles que Maurras e Cruise!
Foi no longínquo mês de Junho de 61. Um punhado de leitores, poucos de facto, esperavam ansiosos, ou pelo menos impacientes, pelo nº 19 da revista “almanaque”. Esperavam porque pouco tempo antes, mais propriamente no 17º número datado de Março/Abril desmentia-se categoricamente que a revista estivesse a dar as últimas. É verdade que, por razões mais que evidentes, a critica almanaquiana começava não só a ser mal-vista pelas excelentíssimas autoridades, coisa corrente em Portugal, mas ia ganhando anti-corpos no establishment nacional. Em Fevereiro iniciara-se o fogo de barragem ao reino de Pacheco e ao lugar comum coisa que deixou marca nas criaturas da política, da banca, da academia e da universidade que se viam (e nisso tinham razão) retratadas. Em Março a campanha prosseguia na “guerra aos monumentos”. Com o mote “Para onde apontam estes monumentos. –Para a sua própria monumentalidade!” passavam-se em revista as pequenas vaidades lisboetas e provincianas. Leitores mais avisados que tinham começado a frequentar tardiamente aquele clube mais que suspeito puseram-se á cata dos primeiros números. O Rui Amador, ao ver-me com um exemplar, perguntou-me se eu os tinha todos e, perante a minha negativa, disparou, vai já por eles que isto não dura. Eu, ir ia, disse-lhe, mas não tenho guita que chegue. Magnânimo, o Rui emprestou-me os cacaus necessários e inclusivamente ofereceu-me uma imperial na Brasileira logo que consegui apanhar os atrasados num distribuidor da Baixa que, espantado, nos confiou que já vendera uma boa dúzia de colecções mais ou menos completas. Isto não tem ar de durar, confidenciou-nos. Curiosamente, foi esse mesmo distribuidor que em 63 nos preveniria que o Diário Ilustrado estava por um fio! E estava, que logo acabou.
Vem tudo isto, esta nostálgica memória, de uma revista fabulosa, que hoje atinge preços bem bonitos nos alfarrabistas, porque dei comigo a olhar o espectáculo do mundo e a murmurar, eclesiásticamente (de Eclesiastes) Vanitas vanitatis... a propósito de uma criatura com quem vagamente me cruzei e que, milagre milagrão da noite de S João, consegue ser cega de tanta presunção e vaidade com que se mira num espelho menos sincero do que o da bruxa má. Razões de vária ordem fizeram-me ter acesso a uma carta dirigida a um amigo meu onde ela se reclamava de altos cargos desempenhados ou não. Este “ou não” merece explicação. Para atordoar o correspondente aquela pachecal figura esgrimia de dedo em riste uma longa série de prebendas que tinha, assegurava com empáfia, recusado. Era, juro-o, um rosário que faria o último Senhor ex-Primeiro Ministro roer-se de inveja. Ali, preto no branco, perpassavam as maiores honrarias do Estado, recusadas com olímpico gesto mas propagandeadas com suspeito frenesi. O correspondente da criatura mostrou-me a carta, com ar atordoado (e não era para menos!): tu já viste isto, mcr. Um patriota! Um grande homem! O luzeiro da Ciência Pura e da Dedicação Infinita!
Concordei, claro. Nestes casos, concorda-se primeiro e depois, do vento acalmar vai-se ver se há estragos.
Mas há mais, dizia-me o meu amigo, embevecido e exaltado: Olha só a lista das suas actuais actividades.
Ó pá, não vale a pena, vamos mas é para as sardinhas que estão à nossa espera na Casa Teresa (casa frequentada pelas melhores famílias deste blog, a começar pelo duo “o meu olhar”/JSC).
Não, dizia-me o Empolgado. Tens de ler.
A fome que é boa conselheira, aconselhou-me a atender o pedido do meu amigo. Confesso que fiquei sem fala. E cansado. Muito cansado. O Pacheco em questão disparava com quanta arma tinha e ocupava meia folha de papel almaço com a lista não exaustiva das suas actuais funções. E alguns dos itens eram genéricos (p. ex. escrevera vários livros, muitos artigos, enfim esgotara a tinta Parker Quink de gerações).
-Tás a ver, mcr? Este homem mais do que um génio, do que um santo, é um Monumento perene da Raça Lusíada por mil mundos espalhada. Este homem é um quarteirão. E tão simples, tão terra a terra, tão nós cá todos bem!
- Alto aí e para o baile. Quarteirão só de sardinhas e é porque somos quatro e se calhar sobra. Tu estás é com uma fome canina e ancestral, vês a dobrar e admiras a decuplicar. Ninguém em seu perfeito senso faria propaganda de coisas que recusou. Por mim o gajo até pode dizer que deu uma tampa à Brigitte Bardot nos tempos heróicos. Heróicos dela, entenda-se que ele por essas alturas era discreto como uma ostra perlífera. Vamos para o S João enquanto não aparecem as rusgas marteleiras e os festivos já borrachos. Olha lá, alguma vez leste o “almanaque”? não? Pois vou-to emprestar que andas precisado.
E foi o que fizemos. Ai que sardinhas!
Leitoras gentis: vocês que provavelmente não são do Porto nem de nenhuma das terras que festejam o Baptista (Braga, Vila do Conde, Figueira da Foz...) não acharão qualquer substancia nesta vaga crónica que de facto, em vez dum pobre diabo envelhecido antes do tempo, só vinha lembrar uma fabulosa revista feita por um punhado de tipos que merecem não uma vénia mas um rijo abraço: José Cardoso Pires, João Abel Manta, Luís de Stau Monteiro, Eduardo Gajeiro, Baptista Bastos, Câmara Leme, João Rodrigues, Vasco Pulido Valente, Victor Pala e Carmo, Sebastião Rodrigues, Alexandre O Neil e Alexandre Pinheiro Torres, entre outros. Ou seja, gente que nos reconcilia com o país, com o S João mesmo de martelinhos de plástico, com o preço das sardinhas.
E com o dr. R.R.?
Não, isso também seria de mais!... É outro que tal...
Ó meu rico São João
Padroeiro dos poetas
Dá-me força no coração
P’r’ aturar os patetas.
(com menos sorte do que "o meu olhar" foi esta a quadra que me saiu)
Na gravura Karl Marx e Bogart. Os dois fazem alguma falta. Alguma! antes eles que Maurras e Cruise!
23 comentários:
A insustentável presunção de relevo social, parece-me que será o denominador mais comum à raça de pessoas que vou conhecendo.
A vaidade é um pecado muito discreto, por vezes. Tão discreto que ninguém sabe onde se esconde em alguns casos fatais.
Sempre que ouço a referência, leve que seja, a conexões de conhecimentos pessoais, arrebito a orelha ou arregalo os olhos, porque a prestação é quase sempre de tributo à vaidade pessoal de sociedade em comandita, nas glórias de outros, mesmo aligeiradas.
"Fulano de tal?" Conheço bem...é primo de um cunhado de um amigo meu que não vejo há mais de dez anos.
"Sicrano"? Ah! Ainda estivemos a falar nele, ontem. Costumava almoçar ao meu lado, no balcão e damo-nos muito bem.
A importância social, em alguns casos, adquire-se por osmótica adjacência ao pensamento generalista alheio, como no caso dos correligionários. "Ah! Somos do mesmo partido, já estivemos juntos em comité". "É engraçado, o tipo foi controleiro de fulano e agora está onde está!"
A importância de um cargo, de uma fortuna, de uma glória artística ou de uma efemeridade circunstancial, gera amizades insuspeitas.
Nunca por nunca, vi ou ouvi, a geração espontânea de conhecimentos alardeados, em relação aos anódinos, pobres, desvalidos ou desgraçados pela sorte.
Nestes casos, costumo antes ver e ouvir proclamações grandiosas de solidariedade genérica.
Sinal de novos tempos!
Tempos de sempre, caro Primo.
"muito tens, muito vales; nada tens, nada vales". O ter, aqui, é um mero verbo antonomásico que substitui todo um ser.
Ter esperteza, inteligência, poder de facto e influência de direito
também é uma combinação com o ser, embora o verbo se equivoque na designação.
Ter bens em abundância, meios de viver bem e prosperidade a rodos, sempre foi o caminho mais curto para uma grande roda de amigalhaços e o natural e humano é que seja assim que aconteça.
Onde é que se separam as águas que corrompem os sentimentos?
Na ambição, voilà.
Mas o tema do postal de MCR é bem mais subtil do que estas ideias simplistas.
Se há coisa que me incomoda de modo supino, são certas atitudes que observo em certas pessoas.
Junto de quem tem poder de facto, principalmente se o podem exercer directamente sobre eles, são umas, todas sorrisos de circunstância e atitudes de simpatia que até se confunde já com a natural de quem assim já nasceu ou se educou.
Junto de quem é anódino aos interesses particulares, o comportamento é o da frieza e distância do despreso subtil: não interessa.
A prova dos nove costuma tirar-se numa circunstância particular e deliciosa: logo que o anódimo conhecido se torna importante de alguma forma, o número de sorrisos aumenta exponencialmente, entre os que até aí nem o conheciam...
Mesmo sem conhecer a tal pachecal figura, nem aliás querendo conhecer, afigura-se-me que será o paradigma do que tenho estado para aqui a comentar e glosar:
Junto de chefes e superiores hierárquicos com poder de classificação e alteração do estatuto pessoal( tipo inspectores), este tipo inesquecível ( alusão a uma rubrica outrora existenta na revista Selecções do Reader´s Digest, versão brasileira dos sessenta e setenta), mostra-se do mais atento e obrigado que pode existir e com marcas no sorriso permanente e na atenção sem desvios.
Os melhores exemplares desta fauna, costumam apanhar-se nas fotos e filmes de acontecimentos públicos. Sempre que posam em circunstância ao lado de chefes, assumem o sorriso mimético da simpatia em pessoa.
O que me custa mesmo observar, por vezes, é a dificuldade em distinguir a naturalidade da hipocrisia, porque as duas já se fundem de tal modo que a confusão é total.
O exemplo mais flagrante e sincero, reside no sorriso chinês: é um sorriso de levar água ao moinho.
MCR. A sua quadra não é má de todo, mas ainda assim podia ter tido melhor sorte.
Caro José, dá a ideia que não anda bem muito bem rodeado. Há gente para tudo. Gente boa, gente má, gente assim assim. Uma das coisas boas da vida é que podemos escolher com quer queremos conviver. Os outros… aturam-se pontualmente.
Nã...isto são reflexões de sempre. Não são de agora. Mas temo que não me tenha explicado bem e tenha criado alguns equívocos.
Lamento, se assim for, porque a temática tem a ver com costumes e perfis sociais; mais do que com personalidades concretas.
Estas coisas costumam ser melhor explicadas em romances ou novelas, por quem sabe escrevê-los.
Falta-nos disso, nestes últimos anos.
Parece que o que nos sobra são Equadores, com a agravante de já termos a ameaça de vir por aí mais um outro, do mesmo calibre.
MCR, deixe-me precisar melhor o que diz. Não é o Marx que faz falta. Os ensinamentos, o seu modo de ver o mundo continuam por aí. Afinal de contas com a queda do muro ruiu apenas uma (má) aplicação do marxismo e não o próprio marxismo. O que faz falta é gente que continue a ler e a estudar os ensinamentos que Marx nos deixou. O que fazem falte é políticos que não se envergonhem de seguir (e aplicar) o pensamento marxista.
jsc:
Marx? Pensamento marxista?
V. acredita na luta de classes?
"Meu olhar" a quadra é rasca, rasquíssima mas para o fim em vista era até boa...
caros comentadores: eu de facto comecei por relembrar uma bela revista e uma extraordinaria aventura editorial num país e num tempo em que isso constituia um risco,
Vocês pegaram no exemplo do pacheco citado
(e eles andam todos por aí, drenfreados, muito dentro do seu papel, cegos que não vêem os risos dos transeuntes...)e de facto isso acaba por ser um bom tema de discussão.
eu, sou um marxista muito moderado (mais Grouxo que Karl, mas mesmo assim com amizade por este último, que foi mal lido e pior entendido pelos russos e adjacências. E pior seguido ainda por excrecências que medraram quando a coisa lhes parecia de bom tom, de moda, e o vento era a favor(que eu distingo os militantes clandestinos com todos os seus defeitos dos trepa-trepa posteriores...)
Penso que é melhor ler Marx que Maurras. como Bogart é infinitamente superior a Cruise.
Quanto á luta de classes, pura e dura, claro que o mundo mudou e com ele as classes. Se calhar para pior: agora há muito lumpen e muitos, muitos, chiens de garde (ai Nizan!...)Mas continuo a pensar que, apesar de todas as coisas que tendem a tornar igual e rasoirado o mundo e o mundo das ideias, no funcionamento do motor há, de facto e ainda,uma oposição de concepções de vida ligada à diferente prática social das pessoas. Isto há-de ser mais explicitado um dia destes, estamos só a conversar- e com pressa - mas não deito para o lixo a criança com a água do banho, como se costuma dizer. Para já, há que fazer a barba aos leninismos, stalinismos e cunhalismos que ainda por aí andam e depois, logo se vê.
De todo o modo e reatando: se apanharem algum exemplar do "almanaque" vão por ele. É boa literatura e boa crónica de um Portugal que ainda não morreu.
Voltamos à vaca fria…e antes de continuar, um ponto de ordem se impõe, para a discussão:
Há algum interesse em discutir o marxismo, sem citar os partidos comunistas?
E se não houver- como acho que não há- como é que se contextualiza o marxismo nos dias que correm?
Ou, dito de outro modo, como é que se conceptualiza a esquerda que acredita em Marx, nos dias de hoje?
Como é que se conceptualiza teoricamente, hoje em dia, a luta de classes como teoria para o avanço da História, aos solavancos da Revolução, como pretendia Marx?
É verdade que alguns teóricos, na sua maioria de proveniência gálica, tentaram a quadratura do círculo, mas a verdade, verdadinha é que a maior parte abandonou as ideias peregrinas e reconverteu-se à ideologia dominante do liberalismo e capitalismo, temperados quando muito por aquilo que ficou da influência e práticas de uma das alternativas ao marxismo: a social democracia de inspiração alargada até à doutrina social da Igreja Católica.
Sendo assim, quem é que ainda hoje precisa do marxismo para alguma coisa?
Já o teórico americano Fukuyama o escreveu: a História, nesta vertente de luta de classes com Revolução à vista, acabou. Enterrem-na, cum raio!
De facto, mais que um Marx, falta-nos um Eça que escreva “farpas” e denuncie a retórica vazia dos “condes de Abranhos” que por aí se ufanam de importantes. Nisto estou com o José!
E no funeral do marxismo prático, com caixão leninista, dêem o viático ao partido comunista, para entrar no reino dos céus dos amanhãs a cantar.
Os herdeiros do de cujus, poderiam então aproveitar a parca herança, para refundar o património e associá-lo à social democracia, verdadeira vocação de todos os partidos que se reclamam da velha esquerda. Nem era preciso seguir pela terceira via. Bastaria que o caminho fosse claro e de rota certa.
Teríamos então uma verdadeira opção nos que se reclamam da esquerda e que permitiria sair deste pântano de interesses instalados.
A única dificuldade, como se pode ver pelas prestações vitais e mouras, serão, ainda assim, os herdeiros de Estaline. A mudança desse código genético vai levar gerações...
Caro José:
Já não posso concordar consigo. Volta a "chuver no molhado"!
Bem, parece que esta discussão foi chão que deu uvas. Ainda assim, mais uns baguitos não farão mal a ninguém e como se dizia quando era pequeno e no tempo das vindimas, os bagos que caíam ao chão davam sempre para encher várias pipas...ou pelo menos era essa a história antiquíssima que nos impingiam para fazer o trabalho. Hoje em dia, é incorrectíssimo vir para aqui com estas lendas, porque o ditado "trabalho de menino é pouco mas quem o despreza é louco", não existe no léxico da correcção política.
Assim, indo directo ao assunto:
O caro Primo acha que o PCP é uma arma política carregada de futuro?
Já teve ocasião de ler O Militante? Leia, meu caro. Leia e verá como não se muda um milímetro em décadas de ideologia.
Além disso, aquilo que o PCP doutrina, é aceitável nos dias que correm, em termos globais? Onde? Na China? Na Coreia do Norte? Em Cuba? No Iémen? Em Angola?
Ou seria antes, na Itália, na Holanda ou na Alemanha?
Haja realismo e senso comum, e acabe-se com este cadáver politicamente adiado.
Eu não posso falar pelo futuro, porque não estou lá.
Sei que a noção de trabalho já não é a mesma que apoiou a reflexão de Marx. Hoje o patrão é uma sociedade anónima e as mais valias jogam-se essencialmente na bolsa. Mas as preocupações de Marx contra a miséria e a exploração são as mesmas que caracterizam todo o homem solidário e fraterno.
O mesmo se poderá dizer de um partido que tem como lema a defesa dos explorados. Não olha para o mundo com os mesmos olhos que o viu Lenine, mas pensa o ser humano com os olhos de quem repudia o problema de fome, exploração e miséria.
Um partido comunista continua a ser necessário para dizer que o sol quando nasce é para todos. Não vejo no PCP um fantasma e penso que a sua luta é fundamental para o equilíbrio entre interesses. Já viu o que seria das relações entre capital e trabalho, se não houvesse um partido que colocasse peso no lado de quem trabalha?!..
O equívoco pode muito bem vir daí.
Já reparou que em todos os países de leste e sublinho TODOS, essas belas ideias altruistas e de bem fazer, em prol da Humanidade, dos pobres e dos trabalhadores em geral, foram simplesmente varridas para o caixote de lixo da História?
Porque terá sido? Por causa do monumental embuste que representaram. Nem sou eu que o digo, mas já foi dito publicamente por um dos compagnons de route que nunca ganhou a vida e o que tem na política e que assina M.S.
~Por outro lado, as tais encíclicas de que lhe falei há alguns dias, tinham a mesma preocupação com os pobres e a justiça social.
Então, em que ficamos?
De um lado, as boas intenções asseguradas por uma censura férrea muito mais grave e severa do que o salazarismo jamais o foi; asseguradas ainda por uma polícia política ao lado da qual a PIDE era um corpo de escuteiros e pela restrição séria durante oitenta anos, às liberdades mais básicas de circulação ( até dentro do próprio país), de reunião e de associação.
Mas será que é preciso repetir isto para se chegar a um consenso?
Caro José:
Na história das ideias verificamos que as mais generosas serviram, em diferentes períodos da história, embustes. Veja o que aconteceu com as cruzadas?!... Será por que existiram cruzadas que o meu amigo não leva a sério os ideais cristãos?!....
O mesmo aconteceu com a aplicação dos ideais marxistas. Mas não é por isso que deixamos de considerar que as vítimas da exploração se deveriam unir e que o desemprego, a fome, todas as formas de exclusão social, são indignas.
Lembrei-me das cruzadas, mas poderia referir a inquisição. Como sabe, a inquisição foi criada para combater o erro e antes de ser uma forma de repressão aplicada por reis foi teorizada por teólogos.
Em nome do valor da verdade criou-se a barbárie. Não é terrível!?...
O desenvolvimento moral é dialéctico. Veja o que acontece, hoje, em muitas nações africanas ou árabes. E não são comunistas!...
O que eu escrevi anteriormente relativamente a MARX foi que “Os ensinamentos, o seu modo de ver o mundo continuam por aí. Afinal de contas com a queda do muro ruiu apenas uma (má) aplicação do marxismo e não o próprio marxismo. O que faz falta é gente que continue a ler e a estudar os ensinamentos que Marx nos deixou. O que fazem falte é políticos que não se envergonhem de seguir (e aplicar) o pensamento marxista.”
Os comentários que se seguiram não levaram em linha de conta “a má aplicação” da teoria marxista que o meu comentário valoriza. Aliás, por similitude com o que o José refere – doutrina cristã – será que também não andou muita gente a invocar o nome de Marx “em vão”, isto é, indevidamente?
Por outro lado, discutir Marx e o marxismo não obriga a ter que se discutir o PCP, do mesmo modo que para discutir a economia de mercado não precisamos de discutir o Partido Republicano dos EUA.
Servindo-me de um dicionário “Marxismo, s.m.. Sistema político, económico, social e filosófico proposto pelo alemão Karl Marx, que tenta sintetizar a filosofia hegliana, a economia política inglesa e o socialismo francês numa interpretação materialista da história, em que a vida social, intelectual, política, etc., de cada época é determinada pelas condições materiais da produção de riqueza e que termina numa visão de uma sociedade sem classes que nasceria do desenvolvimento do capitalismo até ao seu limite.”
A questão a saber é qual o filósofo que desde MARX desenvolveu um sistema de análise tão completo quanto profundo da sociedade capitalista?
Deixando de lado a “visão” de uma sociedade sem classes, em que é que a teoria marxista não é actual na abordagem das “condições materiais da produção” ou será que, na actualidade, as condições de vida social, intelectual e política deixaram de ser determinadas pela condições de produção?
Meu caro.
A distinção que fazes é correcta e procurei sublinhá-la.
Só gostaria de dizer uma coisa: Marx nunca foi marxista.
Marxistas foram os que (depois dele)interpretaram e adoptaram a sua teoria. E há mais do que um marxismo: tudo depende da adopção da interpretação que foi dada. O trotskismo foi diferente do estalinismo e há até um marxismo cristão!
O nosso amigo José (que me estará a ouvir!) não tem um problema ideológico com o marxismo. Tem, antes, um problema psicológico com os comunistas do Estado comunista.
Digamos que é um problema pessoal e não intelectual. É este problema que o faz meter no mesmo saco o marxismo e o comunismo e, ainda, o comunismo como concepção ideológica e o comunismo como teoria de Estado leninista ou estalinista.
Nunca, o nosso amigo José, convergirá intelectualmente no debate sobre o marxismo ou sobre o comunismo (como ideologia), sem resolver o seu problema pessoal.
O nosso debate não leva a nada. É só para não deixar o nosso amigo MCR ocupar todo o espaço do incursões.
Um abraço para o José, outro para ti e outro para o MCR.
Concordo que há vários marxismos, mas isso ainda torna mais insustentável a posição defendida pelo José.
Quanto este debate não levar a nada, bom, penso que ambos já perdemos a ideia de mudar o mundo.Contudo, ainda o podemos contemplar de um certo modo, o nosso.
Um abraço
Tá certo, porra!...
Estou desobrigado de comentar o teu último post. Ainda por cima com uma pombinha (metáfora pouco ortodoxa para um post!) e um comentário do MCR que já repete, no essencial, o que eu disse.
Agora vou ler.
Até ao meu regresso daqui a dois dias.
um abraço
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