01 junho 2007

O leitor (im)penitente 16


As mulheres que lêem são perigosas?

Li algures que vai sair um livro com este título. E a propósito dele, algumas mulheres portuguesas resolveram tecer um comentário à frase sem o ponto de interrogação.
Desta vez, uma vez sem exemplo, venho discutir a bondade da afirmação. Melhor dizendo, venho pôr alguma água na fervura.
Eu que venho de uma família de mulheres leitoras, algumas perigosas (a minha Mãe, a tia Néné e a “Velha Senhora” que Deus guarde) tenho que a leitura em si mesma não é tão potencialmente perigosa. Já sei, já sei que por aqui disse, alguma vez, que a leitura era “um vício solitário”, coisa muito de espantar um cristão bem nascido e temente a Deus. Todavia, mesmo mantendo tão temerária afirmação, creio ter de chamar a atenção das entusiasmadas (e sinceras) senhoras que, no “Público” glosaram a frase que dá título a esta croniqueta para o facto de andar por aí muita literatura perigosa para muita mente bem disposta mas, digamos, preguiçosa. As livrarias estão cheias de coisas em forma de livro que podem ser lidas, digeridas e cagadas sem sequer se dar por isso. Hoje em dia, escrever um livro, pelo menos desses, é uma pequena corveia que se impõe a políticos em busca de eleitores (leiam o último mimo de Santana Lopes), de meninas e meninos da televisão, de actores de cinema, rádio e afins (por vezes com a ajuda de um jornalista), de cavalheiros ligados ao futebol ou de ex-amantes dos mesmos cavalheiros. À procura de algum cacau que cure o despeito. Só com isto já se enchiam três barraquinhas da feira do livro!
Depois há uma outra espécie de livros também “vocacionados” para o público feminino. Quem não conheceu Max du Veuzit, Delly, depois imitados e ultrapassados por Corin Tellado ou Barbara Cartland? E as colecções Madrepérola, Idílio, as Sabrinas e quejandos?
E a revista Maria que julgo, ainda circula?
Este abundantíssimo filão (milhares de títulos, dezenas de colecções) a preço módico educou gerações de mulheres. E de alguns homens. Quando estive tuberculoso (uma tuberculose que foi tomada por uma pneumonia e que como tal foi curada só se revelando trinta anos depois graças às cicatrizes...!!!) depois de ter esgotado a biblioteca do meu avô, li mais de cem romancinhos da Corin Tellado e da Trini Figueroa que eram, julgo, a leitura dominante da minha avó paterna (melhor: da segunda mulher do meu avô, minha avó apenas porque era uma excelente pessoa).
E quem não conhece igualmente as dúzias de revistas “do coração” que aí se espojam em qualquer quiosque, das Gente às Hola e por aí fora. Nestas nem sequer se usa o famoso álibi cultural da Playboy que disfarçava a gloriosa nudez das coelhinhas com peças literárias dos melhores autores. Nas revistas “rosa” a coisa vai a secas: A divorcia-se, B tem um amante, C apanhou na tromba do marido, D apanhou a mulher em flagrante delito, toma lá baile social e mais nada. Notem, leitorinhas, que estou a falar da imprensa “rosa” e não de um par de revistas femininas que me dizem ser de qualidade. Pergunta de uma leitora astuta: e V. como sabe o conteúdo das “rosas”? Resposta: rápida: basta ver as capas, juro que me fiquei por aí...
Aliás tenho uma vizinha que diariamente encontro enquanto tomo o café e leio o jornal, logo de manhã. Aquela santa alma está diariamente entregue à leitura da Hola ou similar que naquele dia saiu. Lê atenta, concentrada. E ao meio dia, de novo na mesma esplanada, lá está outra vez com outra (ou a mesma?) revista. Nunca a vi pegar num jornal, muito menos num livro. Ela lê diariamente as suas duas horitas e sempre do mesmo. Quantas vidas de princesa, actriz, atleta, famosa, ela não viverá?
Portanto, retomando, a perigosidade das mulheres que lêem, passando por alto que hoje em dia são mais as leitoras que os leitores, a leitura é, de facto, uma irremediável doença que atinge homens e mulheres do mesmo modo, com a mesma intensidade e com efeitos semelhantes. Claro que me virão dizer que só agora é que as mulheres globalmente consideradas lêem. É verdade mas também não me parece que os homens fossem grandes leitores alguma vez. Não creio que o século XIX, época em que se massificam os jornais e em que há, de facto, livros, e livreiros para os vender, tivesse assim tantos machos leitores. E, por outro lado, sabe-se pertinentemente que muitas mulheres (sempre uma minoria) liam. E discutiam. E mantinham “salões”. E havia mulheres que escreviam, chamassem-se Bronté, STael, Austen ou Sand. E algumas das mais admiráveis criações literárias desse século apesar de tudo luminoso, são mulheres, desde a Bovary até à Karenina.
Nem mais: tenho aqui em casa, restos da biblioteca da minha avó paterna, verdadeira, Dora Martins Heinzelmann. Pois lia Espronceda, Goethe, algum Balzac e as inglesas. E provavelmente outros que já não me chegaram à mão. E tinha, claro, o seu “salão” os seus amigos pintores e escultores, desde o Diogo de Macedo ao Soares dos Reis.
Perguntar-se-á, mas que tese vem este tipo vender? Nenhuma. Ou quase. Ou então esta: o perigo das mulheres leitoras não está na Marilyn a ler Joyce mas antes nas muitas mulheres que lêem as aventuras e as desditas da princesa Diana, coitadinha que merecia melhor sorte. É que neste último caso, esta leitura é apenas uma forma empobrecida de viver por procuração.

na gravura: la lectrice et son chaton de Amaro, surripiado num blog chamado "lalli"

No último "leitor..." dizia que não sabia se havia algum livro de Char traduzido. Há e está na "Relógio de Água" o "Furor e mistério". A ler impreterivelmente. Se não puder ser em francês que seja em português.

1 comentário:

Cleopatra disse...

As mulheres são seres perigosos.
Pensam muito
Pensam em demasia.
Se Lêem ainda mais perigosas se tornam.
É que para além de pensarem, analisam à exaustão.
É verdade. As mulheres que lêem e pensam e analisam e contestam e põe em causa, são MUITO perigosas!