01 julho 2007

Estem dias que passam 68


Meu caro António
Conhecemo-nos desde 1962, Ou seja há 45 anos! Uma vida! Durante alguns anos partilhámos com grande frequência uma mesa no Mandarim. Lembras-te?
O Mandarim a que, por desafio, mas também por brincadeira, chamávamos o “Kremlin”. Esse café na Praça da República, que também por brincadeira, e por desafio, chamávamos a “Praça Vermelha”. Deves lembrar-te...Estou certo que te lembras...
Anos e anos a fio, depois de te formares ia sabendo de ti pela tua irmã. Lembro-me que mandávamos um ao outro abraços por interposta Amélia. Travámos, mesmo longe um do outro, alguns combates comuns. O mais óbvio: contra Salazar e Marcelo. Marcello com dois “l” , convém esclarecer. Julgo que depois terás estado com o MDP/CDE enquanto eu alinhava com o MES. Alguma vez nos telefonámos, tu não te lembrarás mas, com esta memória infalível, e juro-te que é mais uma maldição do que uma qualidade, não me esqueço. Depois tu, graças às tuas capacidades, à tua inteligência, à tua preparação, foste desempenhando altos cargos, coisa que alegrava os teus amigos, ou, pelo menos, me alegrava. Até que chegaste a esse lugar. Pensei para os meus botões que, num governo eleito com o meu voto, tu eras the right man in the right place. Tinhas atrás de ti um forte currículo e conhecias como poucos os problemas do sector. Concordei com muitas medidas que anunciaste, muito embora me fizesse espécie o modo brusco com que ias impondo soluções que requeriam mais dialogo, mais paciência da tua parte, mais tempo para convencer os que não as percebiam ou simplesmente as temiam. Não gostei de algumas afirmações mais ou menos em off mas largadas perante o número exacto de jornalistas que de certeza as repercutiriam, como finalmente, julgo, era teu secreto desejo. Havia porém no teu discurso uma certa brutalidade eslava que me confrangia mas enfim, a amizade é cega, e ao fim e ao cabo, não tinha efeitos práticos. Ri-me até com a tua blague sobre os SAP. Coisa que agora, já não faço.
Amigos comuns que colaboraram contigo foram-me, entretanto, dando conta, de algumas derivas, de várias divergências, de um rumo em ziguezague que não satisfazia gregos mas irritava troianos. Não me importei demasiadamente embora lamentasse, in imo pectore, com essa tua dificuldade de comunicar, de convencer, de dialogar.
Agora porém, as coisas passaram o limite: esse desastrado gesto teu, essa maneira de mostrares que és tu quem manda, que não podes nem deves ser criticado, mesmo se isso é feito aproveitando descaradamente uma ou várias frases infelizes da tua lavra. Porque eram frases tuas. Com graça possivelmente, com verdade não o discuto, mas a destempo, como, ao fim e ao cabo, se vê agora. Eu desconheço por completo a orientação política da senhora que demitiste. Aposto, contudo, que é da outra cor, da cor dos outros que todavia, quando mandavam, não se atreveram a tanto. E desconheço igualmente a veracidade da alegada pertença política do recém-nomeado dirigente que os jornais dizem ser do PS. Mas acredito que o seja. Resta saber se percebe alguma coisa do que vai fazer, se tem alguma qualidade de chefia, se, numa palavra, vai claramente fazer mais e melhor do que a demitida.
Meu caro António: mesmo que a senhora tivesse sido descuidada, conviria saber se isso chega para uma demissão. Mas pior do que isso é isto: o teu gesto não resguarda a legítima autoridade do Estado mas antes aparece como uma incapacidade clara de receber uma critica, jocosa, ao que dizem, assinada pelo autor. Ao tomares essa decisão penosa para qualquer democrata, deixas transparecer para o exterior uma fragilidade terrível, uma incapacidade dramática de perceber o humor.
Estiveste, se bem recordo, algum tempo em França e nos Estados Unidos. Nesses países há criticas tremendas ao poder, revistas como o Mad ou Charlie hebdo tornaram-se conhecidas justamente por isso. Cá, pelos vistos, acabava tudo no tribunal, na cadeia, ou sei lá onde...
Em tempos não muito longínquos, dez, quinze anos, enfim durante o consulado cavaquista, muito boa gente, eu até, deram em artigos nos jornais, várias bicadas na elite governante. Nada nos aconteceu. Nada. E também, nessa altura, o partido no poder tinha o completo controle da situação. Agora, ao olhar para trás, com os olhos do presente, é legítimo perguntarmos: eram “eles” tontos ou simplesmente democratas?
Escrevo-te estas linhas com um imenso desgosto. E votante que fui sendo, ao longo de todos estes anos, dando a cara e defendendo um par de coisas que para mim eram verdades como punhos (a tolerância, por exemplo), devo acrescentar que começo a sentir vergonha.
E isso, podes crer, é intolerável e imperdoável.
Sexta-feira, 29 de Junho.

as gravuras: 1. campanha de amnistia para os estudanres expulsos, António incluído.
2. campanha pela constituição de 36: um Estado com autoridade...

1 comentário:

josé disse...

Caro M.C.R.:

O Mandarim é, hoje, um McDonalds reduzido. Ainda por cima, nem sequer é a "real thing".

Se precisava de uma metáfora, para descrever o ambiente corrente, aí a tem.