21 agosto 2007

Au Bonheur des Dames 81


Correio dos leitores

Volta e meia recebo cartas dos leitores. Não muitas, claro, também não é caso para tanto, mas algumas a que vou respondendo porque nisto de correspondência sigo a imortal máxima do ex-ministro Coelho ainda que menos ameaçadora: quem me escreve leva resposta como manda a boa educação. Se a correspondência continua depois ou não, isso já é outro caso.
Eu tenho por regra de vida este princípio: à polícia e aos costumes diz-se nada. E nem sempre foi fácil mas também não sofri horrores inomináveis por ter este feitio. E já agora um segundo vício (ou virtude, é sempre uma questão de perspectiva): dizer alto e bom som o que penso. A verdade é chata, às vezes magoa, mas a mentira, a omissão, magoam mais. E sobretudo magoam a vítima e o vitimador ou isso julgo eu.
Vem isto a propósito da última correspondência chegada.
Uma leitora (M***) acha que eu devia ser mais contundente com algumas situações e algumas pessoas da nossa praça. A leitora diz que “ficou com fome e sede de justiça...”. Convenhamos: um blog é apenas um blog, e para varrer feiras a varapau já por aí andam muitos Joãozinhos das Perdizes, se é que a amável leitora aprecia Júlio Dinis, autor bem menos valorizado do que devia. Já o Dr. Orlando de Carvalho (ai que falta faz!...) e o Joaquim Namorado (idem, aspas, aspas) entendiam que ele poderia ter sido o nosso Balzac, ou seja que ele foi o único escritor do século XIX que descreveu, contemporaneamente a revolução que o país vivia com o fontismo. Portanto, querida leitora, continuarei, nesta onda pacifica que para salvador do Povo nunca dei. E muito menos para Profeta.
A seguinte leitora promete biscoitos feitos por ela, não prometa, cara I***, mande os biscoitinhos e em quantidade que se veja e faça jus à minha barriga!, e conta-me a história do ex-marido, por quem ela “tem carinho e pena”. Parece que o traquinas passou a vida toda a recusar chorudos lugares e construiu assim uma “não carreira” empresarial e política. Claro que tinha uns cacauzinhos herdados, o preguiçoso... E lá está por Barcelona, feliz e contente, de livreiro de “viejo”. A leitora queixa-se que, por junto, ele escreve aos amigos e às filhas. Logo ele, com tanto jeito, tantas oportunidades e afinal alfarrabista. Nem sequer de livros caros, nada disso, uma espécie de bouquiniste na cidade condal, sem horário fixo, perdido e achado nos lugares de tapas. A leitora, coitada, foi lá e veio mais gorda três quilos!!! Será que o querido ex me convidaria para uma semaninha assim? Homem sábio, leitora, e já agora, a resposta: conheço-o sim senhor e gosto dele, mesmo que ache que o seu ódio à classe política portuguesa não justifica só falar catalão inclusive com as filhas. Est modus in rebus!
Outro leitor (olha um leitor!...,) “bebedor de amêndoa amarga” (ora toma!) quer folia. Mais histórias de Coimbra, diz-me, dos “bons velhos tempos”, em que “ninguém queria sentar-se à mesa do orçamento” nem “prestar-se ao espectáculo da política caseira ou não” (homessa, leitor amendoeiro, V. está com visões). Coimbra não é, não foi nunca, um jardim de delicias e virtudes. Muita mesquinharia por lá se fez e faz. Basta ler Eça! E os rapazes e raparigas com quem conversámos, sonhámos e partilhámos alguma experiência, mudaram como nós mesmos. Às vezes mais, muito mais! Ou nem isso, já eram assim, mas na fogueira de maravalhas da nossa “juventud divino tesoro” não reparávamos. Muitos conheci eu, calados publicamente, a fazer o banquinho onde haviam de trepar, que, em aparecendo o 25 A, gargantearam de galo galifão. A gente pasmava-se com aquela súbita coragem, já desnecessária, diga-se, mas tronituante. E depois, Coimbra, como o Porto, de resto, dá azo a que muito peru se tome por pavão. Também é verdade que o processo é tolerado mais do que o desejável. Ao fim e ao cabo, no “país da minha tia, trémulo de bondade e aletria” (O’Neil, à cautela...) os para-pavões estimam-se, cumprimentam-se, cantam de galo e finalmente condecoram-se com imensas penas de pavão, claro. E como ninguém tem a misericórdia de os avisar, eles continuam a cantar de galo na capoeira que escolheram. Basta que haja milho que chegue para todos. Estamos conversados, ó camarada da “ginginha com elas”?
E um terceiro e último, Deus o ilumine!, vem dizer-me várias coisas sobre si próprio. É sempre bom a gente saber coisas sobre nós próprios, já o sábio o recomendava, convém é que o que pensamos de nós seja compatível com essa trivialidade que se chama consciência, ou essoutra, coitada, que se atreve a intitular-se verdade, senão, mais cedo ou mais tarde, tropeçamos na nossa desmedida importância e afocinhamos no chão (esta roubei-a ao VPV) que felizmente está muito mais perto do que pensamos.
E para o fim, escreve-me irado, outro eventual leitor, que em resumo me diz, como se não se notasse, que aprecia Sócrates. (O José...).
Pessoalmente, prefiro a cicuta.

1 Como é sabido eu sou um contador frustrado de histórias. Portanto qualquer semelhança com personagens vivas ou mortas é obviamente pura coincidência.

2 Vinha esta croniqueta (escrita e esquecida há largo tempo) a propósito de uma discussão animada por duas pessoas que estimo e que respeito (o Primo de Amarante e o leitor José) e que sozinhas animariam uma bela tertúlia. A um conheço-o há anos, sempre no fio da navalha, na incomodidade. Ao outro apenas há três, mais dia menos dia e, como arguto conservador, obriga-me a pensar para lhe responder. Isto de se dialogar com a outra banda tem muito que se lhe diga e não é fácil. A democracia, aliás, também não é fácil mas, salvo melhor opinião, não há outro caminho. A ambos um abraço.

3 a ilustração (o próprio sentadinho à beira mar, sob sombra acolhedora e lendo um romance de Andrea Camilleri) é uma inocente resposta ao texto abaixo de JCP sobre leituras de Verão. E mostra um bocadinho da praia de Areas.

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