10 outubro 2007

Au Bonheur des Dames 92


Deambulando inocentemente pela Covilhã, numa fresca manhã de Outono

Dois cavalheiros de ar respeitável, vestidos normalmente, excepção feita às gravatas, um pouco berrantes, qualidade inferior e nó demasiado grosso (mas isso não tem nada de mal, são os tempos que se vivem e as gravatas querem-se assim para não se parecer demasiado burguês) passeiam-se preguiçosamente pela bela cidade da Beira Baixa, como quem todo o tempo do mundo e está disposto a gozar o sol outonal, o cheiro das castanhas assadas, o bulício das folhas caídas. - É o Outono, diz o primeiro. - Ah les sanglots longs des violons d’automne blessent mon coeur d’une langueur monotone...” responde o segundo. - Ah... gosto de Verlaine, reponta o primeiro. - Prefiro Rimbaud, diz, um tanto ou quanto incoerentemente o segundo.
E nesta troca lenta e suave, polida e intranscendente, continuam a sua plácida caminhada.
-A leitura... diz um. - Isso, responde o outro, não há nada como a leitura. E este tempo, pede-a. - Sem dúvida, mas algo mais de acordo com a estação, sei lá: Bossuet (de que a sr.ª ministra da educação tanto gosta) Racine, autor favorito do senhor primeiro ministro...
- Wittgenstein, corta o interlocutor. No Outono é dar-lhe no Wittgenstein. Além do mais previne o catarro, a obstipação e o hemorroidal.
-E há disso por cá?
-Tem de se perguntar. Olhe está ali o sindicato dos professores. Essa gentinha lê que se farta, lê demais, treslê, às vezes. Mas à cautela não há como perguntar-lhes.
E entram numa casa de mau aspecto, pejada de cartazes, nódoas de barricas de petróleo (para confecção de artefactos explosivos?) duas cadeiras diferentes, exemplares do Gramma, do Pravda (encadernados) e do Avante, (com falta de páginas centrais, as que trazem a tradicional sindicalista nua).
-Ora bolas, pensa o mais novo, já sacaram as fotografias...
-Wittgenstein?, o mais velho interpela uma criatura, sentada a uma secretária ou melhor com os pés em cima da secretária e o dito cujo refastelado num maple que já conheceu melhores dias.
- Quem?, diz a criatura, escondendo o vol IIº das “grandes opções do plano”.
- Wittgenstein, seu ignaro. O velho Ludvig, não me diga que não sabe... Filisteu! O do Tratactus-logico-philosophicus, seu caramelo com duas bossas.
- Porra, é a bófia, pensa o sinistro personagem ainda sentado mas a tentar retirar os pés da mesa. Não, não me soa.
- Ai ele é isso? Polícia! E é melhor lembrar-se do Wittgenstein senão...
- Ó senhor comissário, juro-lhe pela alma da minha mãezinha que não conheço, sou novo cá na casa, só vim para fazer um cordãozinho humano à volta do nosso primeiro para o acarinhar, como manda e muito o senhor deputado Magalhães, grande homem, nem parece que foi do partidão..
- Oiça lá ó seu biscateiro grevista, pensa que somos lorpas, que não cheiramos a merda no meio do estrume ó seu cabeça de martelo veja bem, pense melhor que sem o Wittgenstein não saímos daqui. E não me esfregue nas fuças com o Magalhães que esse não assusta sequer uma criança autista.
- Ai senhor comandante, eu desse vit qualquer coisa, népia mas em troca tome lá uns papelinhos e não me faça mal que eu só estou aqui por estar desempregado, a ganhar o meu...
- Cambada de ignorantes, e diz-se esta gente sindicalista, boa razão tinha o nosso primeiro quando disse que com os sindicatos nem um copo de água da chuva beberia. Bem leva-se a papelada. Se valer a pena lê-se, se for fraca, retrete com ela, que cortaram o orçamento do papel higiénico e a malta tem de se aviar com jornais.

Senhoras leitoras: foi isto, e só isto o que se passou na Covilhã. Dois esforçados agentes da ordem, a caminho da repartição onde trabalham, como assevera a senhora governadora civil (que os anjos a tenham em seu regaço!) em prol de todos os portugueses e portuguesas dignos desse nome, e até dos outros, apesar de não merecerem, foram por uma informação bibliográfica vital para o natural e harmonioso desenvolvimento das óbvias aptidões de inteligência, cultura e convivialidade que sempre se reconheceu às forças de segurança, ao seu ministro, à senhora Serrasqueiro mui digna governadora civil, e às autoridades políticas, civis, militares e religiosas em geral (que Deus as guarde, ou o Arquitecto supremo para as que pertencerem a essa portuguesíssima instituição que é a Maçonaria) e viram-lhes ser recusadas informações meramente culturais sem pretexto válido. Todavia, e sem que o rogassem, pedissem, mandassem, cominassem ou exigissem foram-lhes oferecidos diversos documentos produzidos por essa central da desinformação pública que se chama sindicato dos professores da região centro, da Covilhã, com o claro intuito de os arregimentar para o conluio anti nacional, anti-democrático e anti europeu que pretende transformar Portugal, o torrãozinho de açúcar, numa espécie de ditadura do proletariado ao serviço de obscuros interesses que não recuam diante de nada no seu afã de tudo destruir. E disse.

mcr, enviado especial à Covilhã

na gravura: Racine, Wisconsin. Achou-se que o Jean Racine por ser em francês, não valeria a pena. Ao contrário a garbosa povoação Racine (ler reissaine) está indicada para quem fez a cadeira de inglês (técnico).

1 comentário:

josé disse...

Achei graça, mas comente lá a historieta do Che...

Então , o celebrado herói é ou não um rematado assassino?

E dizer que tive o poster ( e ainda tenho, cof cof cof), na garagem. Velhinho e corrompido como convém, mas lá está.
Foi a minha única concessão à esquerda e valeu-me alguns dissabores. Mas valeu a pena. Não estou arrependido.