Deambulando inocentemente pela Covilhã, numa fresca manhã de Outono
Dois cavalheiros de ar respeitável, vestidos normalmente, excepção feita às gravatas, um pouco berrantes, qualidade inferior e nó demasiado grosso (mas isso não tem nada de mal, são os tempos que se vivem e as gravatas querem-se assim para não se parecer demasiado burguês) passeiam-se preguiçosamente pela bela cidade da Beira Baixa, como quem todo o tempo do mundo e está disposto a gozar o sol outonal, o cheiro das castanhas assadas, o bulício das folhas caídas. - É o Outono, diz o primeiro. - Ah les sanglots longs des violons d’automne blessent mon coeur d’une langueur monotone...” responde o segundo. - Ah... gosto de Verlaine, reponta o primeiro. - Prefiro Rimbaud, diz, um tanto ou quanto incoerentemente o segundo.
E nesta troca lenta e suave, polida e intranscendente, continuam a sua plácida caminhada.
-A leitura... diz um. - Isso, responde o outro, não há nada como a leitura. E este tempo, pede-a. - Sem dúvida, mas algo mais de acordo com a estação, sei lá: Bossuet (de que a sr.ª ministra da educação tanto gosta) Racine, autor favorito do senhor primeiro ministro...
- Wittgenstein, corta o interlocutor. No Outono é dar-lhe no Wittgenstein. Além do mais previne o catarro, a obstipação e o hemorroidal.
-E há disso por cá?
-Tem de se perguntar. Olhe está ali o sindicato dos professores. Essa gentinha lê que se farta, lê demais, treslê, às vezes. Mas à cautela não há como perguntar-lhes.
E entram numa casa de mau aspecto, pejada de cartazes, nódoas de barricas de petróleo (para confecção de artefactos explosivos?) duas cadeiras diferentes, exemplares do Gramma, do Pravda (encadernados) e do Avante, (com falta de páginas centrais, as que trazem a tradicional sindicalista nua).
-Ora bolas, pensa o mais novo, já sacaram as fotografias...
-Wittgenstein?, o mais velho interpela uma criatura, sentada a uma secretária ou melhor com os pés em cima da secretária e o dito cujo refastelado num maple que já conheceu melhores dias.
- Quem?, diz a criatura, escondendo o vol IIº das “grandes opções do plano”.
- Wittgenstein, seu ignaro. O velho Ludvig, não me diga que não sabe... Filisteu! O do Tratactus-logico-philosophicus, seu caramelo com duas bossas.
- Porra, é a bófia, pensa o sinistro personagem ainda sentado mas a tentar retirar os pés da mesa. Não, não me soa.
- Ai ele é isso? Polícia! E é melhor lembrar-se do Wittgenstein senão...
- Ó senhor comissário, juro-lhe pela alma da minha mãezinha que não conheço, sou novo cá na casa, só vim para fazer um cordãozinho humano à volta do nosso primeiro para o acarinhar, como manda e muito o senhor deputado Magalhães, grande homem, nem parece que foi do partidão..
- Oiça lá ó seu biscateiro grevista, pensa que somos lorpas, que não cheiramos a merda no meio do estrume ó seu cabeça de martelo veja bem, pense melhor que sem o Wittgenstein não saímos daqui. E não me esfregue nas fuças com o Magalhães que esse não assusta sequer uma criança autista.
- Ai senhor comandante, eu desse vit qualquer coisa, népia mas em troca tome lá uns papelinhos e não me faça mal que eu só estou aqui por estar desempregado, a ganhar o meu...
- Cambada de ignorantes, e diz-se esta gente sindicalista, boa razão tinha o nosso primeiro quando disse que com os sindicatos nem um copo de água da chuva beberia. Bem leva-se a papelada. Se valer a pena lê-se, se for fraca, retrete com ela, que cortaram o orçamento do papel higiénico e a malta tem de se aviar com jornais.
Senhoras leitoras: foi isto, e só isto o que se passou na Covilhã. Dois esforçados agentes da ordem, a caminho da repartição onde trabalham, como assevera a senhora governadora civil (que os anjos a tenham em seu regaço!) em prol de todos os portugueses e portuguesas dignos desse nome, e até dos outros, apesar de não merecerem, foram por uma informação bibliográfica vital para o natural e harmonioso desenvolvimento das óbvias aptidões de inteligência, cultura e convivialidade que sempre se reconheceu às forças de segurança, ao seu ministro, à senhora Serrasqueiro mui digna governadora civil, e às autoridades políticas, civis, militares e religiosas em geral (que Deus as guarde, ou o Arquitecto supremo para as que pertencerem a essa portuguesíssima instituição que é a Maçonaria) e viram-lhes ser recusadas informações meramente culturais sem pretexto válido. Todavia, e sem que o rogassem, pedissem, mandassem, cominassem ou exigissem foram-lhes oferecidos diversos documentos produzidos por essa central da desinformação pública que se chama sindicato dos professores da região centro, da Covilhã, com o claro intuito de os arregimentar para o conluio anti nacional, anti-democrático e anti europeu que pretende transformar Portugal, o torrãozinho de açúcar, numa espécie de ditadura do proletariado ao serviço de obscuros interesses que não recuam diante de nada no seu afã de tudo destruir. E disse.
mcr, enviado especial à Covilhã
na gravura: Racine, Wisconsin. Achou-se que o Jean Racine por ser em francês, não valeria a pena. Ao contrário a garbosa povoação Racine (ler reissaine) está indicada para quem fez a cadeira de inglês (técnico).
Dois cavalheiros de ar respeitável, vestidos normalmente, excepção feita às gravatas, um pouco berrantes, qualidade inferior e nó demasiado grosso (mas isso não tem nada de mal, são os tempos que se vivem e as gravatas querem-se assim para não se parecer demasiado burguês) passeiam-se preguiçosamente pela bela cidade da Beira Baixa, como quem todo o tempo do mundo e está disposto a gozar o sol outonal, o cheiro das castanhas assadas, o bulício das folhas caídas. - É o Outono, diz o primeiro. - Ah les sanglots longs des violons d’automne blessent mon coeur d’une langueur monotone...” responde o segundo. - Ah... gosto de Verlaine, reponta o primeiro. - Prefiro Rimbaud, diz, um tanto ou quanto incoerentemente o segundo.
E nesta troca lenta e suave, polida e intranscendente, continuam a sua plácida caminhada.
-A leitura... diz um. - Isso, responde o outro, não há nada como a leitura. E este tempo, pede-a. - Sem dúvida, mas algo mais de acordo com a estação, sei lá: Bossuet (de que a sr.ª ministra da educação tanto gosta) Racine, autor favorito do senhor primeiro ministro...
- Wittgenstein, corta o interlocutor. No Outono é dar-lhe no Wittgenstein. Além do mais previne o catarro, a obstipação e o hemorroidal.
-E há disso por cá?
-Tem de se perguntar. Olhe está ali o sindicato dos professores. Essa gentinha lê que se farta, lê demais, treslê, às vezes. Mas à cautela não há como perguntar-lhes.
E entram numa casa de mau aspecto, pejada de cartazes, nódoas de barricas de petróleo (para confecção de artefactos explosivos?) duas cadeiras diferentes, exemplares do Gramma, do Pravda (encadernados) e do Avante, (com falta de páginas centrais, as que trazem a tradicional sindicalista nua).
-Ora bolas, pensa o mais novo, já sacaram as fotografias...
-Wittgenstein?, o mais velho interpela uma criatura, sentada a uma secretária ou melhor com os pés em cima da secretária e o dito cujo refastelado num maple que já conheceu melhores dias.
- Quem?, diz a criatura, escondendo o vol IIº das “grandes opções do plano”.
- Wittgenstein, seu ignaro. O velho Ludvig, não me diga que não sabe... Filisteu! O do Tratactus-logico-philosophicus, seu caramelo com duas bossas.
- Porra, é a bófia, pensa o sinistro personagem ainda sentado mas a tentar retirar os pés da mesa. Não, não me soa.
- Ai ele é isso? Polícia! E é melhor lembrar-se do Wittgenstein senão...
- Ó senhor comissário, juro-lhe pela alma da minha mãezinha que não conheço, sou novo cá na casa, só vim para fazer um cordãozinho humano à volta do nosso primeiro para o acarinhar, como manda e muito o senhor deputado Magalhães, grande homem, nem parece que foi do partidão..
- Oiça lá ó seu biscateiro grevista, pensa que somos lorpas, que não cheiramos a merda no meio do estrume ó seu cabeça de martelo veja bem, pense melhor que sem o Wittgenstein não saímos daqui. E não me esfregue nas fuças com o Magalhães que esse não assusta sequer uma criança autista.
- Ai senhor comandante, eu desse vit qualquer coisa, népia mas em troca tome lá uns papelinhos e não me faça mal que eu só estou aqui por estar desempregado, a ganhar o meu...
- Cambada de ignorantes, e diz-se esta gente sindicalista, boa razão tinha o nosso primeiro quando disse que com os sindicatos nem um copo de água da chuva beberia. Bem leva-se a papelada. Se valer a pena lê-se, se for fraca, retrete com ela, que cortaram o orçamento do papel higiénico e a malta tem de se aviar com jornais.
Senhoras leitoras: foi isto, e só isto o que se passou na Covilhã. Dois esforçados agentes da ordem, a caminho da repartição onde trabalham, como assevera a senhora governadora civil (que os anjos a tenham em seu regaço!) em prol de todos os portugueses e portuguesas dignos desse nome, e até dos outros, apesar de não merecerem, foram por uma informação bibliográfica vital para o natural e harmonioso desenvolvimento das óbvias aptidões de inteligência, cultura e convivialidade que sempre se reconheceu às forças de segurança, ao seu ministro, à senhora Serrasqueiro mui digna governadora civil, e às autoridades políticas, civis, militares e religiosas em geral (que Deus as guarde, ou o Arquitecto supremo para as que pertencerem a essa portuguesíssima instituição que é a Maçonaria) e viram-lhes ser recusadas informações meramente culturais sem pretexto válido. Todavia, e sem que o rogassem, pedissem, mandassem, cominassem ou exigissem foram-lhes oferecidos diversos documentos produzidos por essa central da desinformação pública que se chama sindicato dos professores da região centro, da Covilhã, com o claro intuito de os arregimentar para o conluio anti nacional, anti-democrático e anti europeu que pretende transformar Portugal, o torrãozinho de açúcar, numa espécie de ditadura do proletariado ao serviço de obscuros interesses que não recuam diante de nada no seu afã de tudo destruir. E disse.
mcr, enviado especial à Covilhã
na gravura: Racine, Wisconsin. Achou-se que o Jean Racine por ser em francês, não valeria a pena. Ao contrário a garbosa povoação Racine (ler reissaine) está indicada para quem fez a cadeira de inglês (técnico).
1 comentário:
Achei graça, mas comente lá a historieta do Che...
Então , o celebrado herói é ou não um rematado assassino?
E dizer que tive o poster ( e ainda tenho, cof cof cof), na garagem. Velhinho e corrompido como convém, mas lá está.
Foi a minha única concessão à esquerda e valeu-me alguns dissabores. Mas valeu a pena. Não estou arrependido.
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