26 outubro 2007

Diário Político 67


Os tempos e o modo

Permitam-me os leitores este título que, já agora, homenageia uma revista digna e interessante que durante cerca de quinze anos foi uma voz, mais uma, da oposição possível num país impossível. E digo foi mais uma porquanto e sem ir mais longe outras duas revistas mais duradouras e dirigindo-se aos mesmos estratos, social intelectual e político, trilharam o mesmo caminho da “O tempo e o modo” e sofreram as mesmas ou talvez piores tropelias da censura e do poder. Refiro, está bem de ver, a “Seara Nova” a primeira a aparecer (anos 20) e a “Vértice”(anos 40). Estas três revistas simbolizaram e ocuparam praticamente o espaço de contestação ao regime salazarista. A Vértice persiste, ainda que bem diferente da que arrostou durante anos com a tristura sinistra do velho regime. O “TM” morreu de morte macaca ainda nos alvores da revolução de 74, dinamitada por dentro por um punhado de energúmenos que depois se foram também eles dividindo até só restar a anedota. A Seara aparece trimestral e mansamente, irreconhecível, depois de cinquenta anos de resistência. Será que a liberdade faz mal às revistas? A “Vértice” por aí anda, propriedade de uma editora se é que a editora em causa ainda mexe e, francamente, não me parece entusiasmante. Também ela viveu mal o 25 de Abril e a saída do seu quase fundador e principal animador. Histórias que alguma vez serão contadas por quem as conhece mas que de certeza não engrandecem ninguém.
E se, sem grande intenção, falei nestas três revistas, foi porque elas eram, na medida do possível os espaços de discussão pública dos anos de chumbo. Hoje é o que se vê: as revistas que por aí se arrastam estão á beira de um ataque de reumatismo agudo. Ainda agora, saíram dois números da Colóquio Letras referentes a 2004. Três anos de atraso é obra, sobretudo se, como foi o caso, já em tempos se escamoteou um outro ano inteiro!
Portanto um dos grandes espaços possíveis de discussão não o é. E convenhamos que agora fazia falta. Quanto mais não fosse porque anda por aí um tratado europeu que uns repolhudos cavalheiros entenderam viabilizar e outras iluminarias ad hoc entendem dever ser passado aos direitos referendários.
Eu faço já, como o Dr. José Miguel Júdice, a minha declaração de interesses: sou português, europeu e cosmopolita. Ainda a Europa era uma miragem e lá andava eu a caboucar nos direitos ditos comparados e em quanto seminário europeu me passasse ao alcance da mão. Com algum proveito, direi, já que quem classificava entendeu dar-me um pouco mais do que o “accessit”, coisa que me honrou, que agradeço e para a qual , valha a verdade, trabalhei.
Consigo, sem grande vergonha, ler e falar meia dúzia de línguas (as mais próximas, está bem de ver...) e mantenho um contacto constante e directo com alguns dos principais jornais europeus. Por aí vou vendo como param as modas da ratificação do tratado que tanta dor de cabeça já deu da precedente vez. Contristou-me (e tê-lo-ei aqui escrito) a votação da França, claramente viciada por jogos de poder dentro do Partido Socialista e também não me alegraram as notícias vindas de outras latitudes negadoras. Todavia, vivemos num sistema dito democrático, e por muito desagradável que as coisas por vez se mostrem, a verdade é que não se conhece outro melhor.
Espanta-me portanto o restolho que agora por aí se levanta quanto à hipótese de referendar o novel tratado. Tanto mais que havia, diz-se, a promessa (burra) de o submeter a referendo. Referendo esse que a meu ver se ganharia e por uma maioria enorme. Terá, aliás sido essa a convicção dos totós que entendiam referendar o tratado. Pessoalmente sou pouco dado a referendos (como também sou pouco dado a sistemas uni-camerais, por exemplo ou à existência de júri nos tribunais) mas a verdade é que outro grupo de criaturas pais e mães da pobre e indefesa pátria pariu uma constituição onde expressamente se reconhecia o referendo. Ora eu sempre pensei que para se recorrer a uma grave referendação do que quer que seja é mister reunirem-se um par de requisitos sensatos: ser a questão daquelas quase de vida ou de morte e poder pensar-se que os cidadãos se poderão habilitar com os conhecimentos necessários para em boa consciência decidirem. E isso, convenhamos é coisa infrequente. Se calhar 99% dos cidadãos desconhece 99% da tal “Constituição” gravemente votada no parlamento. Se calhar a grande maioria dos cidadãos, quando vota numa eleição legislativa desconhece os poderes da Assembleia onde estadearão os felizes eleitos e porventura nem sequer conhece as criaturas que, à molhada, vota numa lista. E nem falo de Lisboa ou do Porto onde o número de criaturas a eleger é desconforme mas por exemplo Coimbra onde a coisa não chega a uma equipa de futebol. Será que os cidadãos conhecem todos os candidatos e seus substitutos, mesmo que seja de um só partido? Aposto dobrado contra singelo que será ínfimo o número de cidadãos votantes que vai mais além dos três ou quatro primeiros nomes. Não aposto, por desnecessário, que os mesmos cidadãos sejam capazes de citar os candidatos dos outros partidos excepção feita dos cabeças de lista e mesmo assim... No caso de concorrerem essas pitorescas e folclóricas formações que ainda se não deram por mortas e enterradas julgo poder afirmar que ninguém sabe o nome sequer do primeiro concorrente. E isto depois de semanas de matraqueio por todos os meios.
Todavia, ainda não vi ninguém contestar o bem fundado da eleição sequer o facto de ir tudo à molhada. Ou seja: elegemos os nossos representantes ignorando os seus nomes, desconhecendo-lhes as caras, os vícios e as putativas virtudes. Também não é certo que se conheçam as linhas mais concretas do programa que defendem se é que defendem qualquer coisa respeitante ao seu círculo. Também é duvidoso que se conheçam, de facto, e bem, as linhas de força que entendem aplicar às políticas no caso de ganharem as eleições. Ou seja: vota-se cada vez mais num cavalheiro que, razões de toda a sorte, ou até de nenhuma, empurraram para a beira do palco. Quem conhecia o senhor José Sócrates quando pimpão e garboso, se alcandorou à direcção do PS e, nessa qualidade, se propôs governar o país? Ponhamos que alguns o teriam visto a correr por aí. Que outros o teriam ouvido falar da co-incineração (seguramente muitos de Coimbra) ou outros ainda o terão visto num divertimento televisivo num mano a mano com o dr Santana Lopes, ídolo das eleitoras figueirenses ao que me dizem.
Ai o gajo é contra a democracia!, rosnará alguém. De modo algum, defendo-me eu. Apenas aponto o estado a que chegou a democracia no reino do espectáculo. E dito isto convém esclarecer que não estou a citar os senhores Debord ou Vaneighem, e muito menos a internacional situacionista. Estou tão só a situar esta justificação parlapiante e desonesta de não sujeitar a referendo um tratado porque os eleitores não o leram, se leram não perceberam e por aí fora (até ao se perceberam não o votam). É que os dois grandes partidos que malgovernam a pátria absurda andaram entretidíssimos a prometer que sujeitariam a aprovação do tratado a referendo. Agora, é o que se vê. Que o tratado aprovado não era o “outro” sobre o qual o dr Santos Silva se tinha debruçado embevecidamente. Que os eleitores são uma cáfila, uma récua de bestas e que por isso atirar-lhes com um referendo é deitar pérolas a porcos, que este tratado é muito difícil de perceber e que por isso a sua aprovação deve ser feita por cavalheiros politicamente correctos e quimicamente puros e não pela “rua” muito dada a jacqueries e à troça, enfim um despautério.
O tratado é o que é: pobre e feínho. Provavelmente é o possível num continente que politicamente é um bando, militarmente um anão e economicamente uma soma desastrada de egoísmos (veja-se a França versão sarkozy 2007, a suicidária Polónia dos gémeos e a Itália aos gritos por um deputado que, aliás, lhe deram numa prova provada que isto pode ser, ou já é, como dizia Eça, uma choldra. Muita da nossa bem pensância político-jornalista arreou forte e feio no tratado. Pareceu-me demais mas eu apenas tenho um canto deste blog onde a camaradagem de uns excelentes cavalheiros e damas me permite amesendar. Antes isto, que é pouco e triste do que nada. Só que me pareceu excessiva a efusão dos tratadantes e tola a justificação dos que negam à populaça vil e inculta a palavra que democraticamente poderia dizer. Foi assim que faleceram outra democracias. Melhores e mais fortes. Esperemos que a história não se repita ou que a repetir-se não seja como Marx (o Carlos, não o Groucho) alguma vez, num esquecido livrinho, escreveu.
Messieurs les censeurs bonne nuit!
A gravura é uma reprodução de uma peça do grande, genial, Rauschenberg. O mesmo que se exporá em Serralves muito proximamente. Até que enfim, uma exposição interessante e útil!
A citação com que se acaba este texto é de um grand seigneur da cultura francesa. E da política, também. E agora adivinhem quem é ele.

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