mcr não tem emenda
e sai do ano assim
Um ano sai, outro entra ou, pelo menos é isso que dizem. Como se os anos, o tempo, soubessem entrar e sair. Nem nós sabemos. Convencionou-se todavia que daqui a um par de horas muda tudo. A esperança, que é a última a morrer, faz-nos acreditar nesta pia mentira que acaba por não ser especialmente grave porque, no fundo, ninguém acredita que as coisas mudem assim de um pé para a mão.
Aliás as pessoas precisam de balizas destas no seu percurso. Bom seria que as usassem com algum discernimento. E nelas incluo-me também, não pensem que me ponho de fora, era o que faltava. Também eu acabo por fazer um balanço a estes últimos trezentos e sessenta e cinco dias, embora, confesso, me tenha esquecido pelo menos de trezentos deles. A nossa memória não é elástica, convém não a sobrecarregar demasiadamente, ninguém viveria com tanta recordação, mesmo que só se tratasse dos últimos trezentos ou quatrocentos dias.
Como me dizia alguém que viveu pouco, muito pouco mesmo, bastam alguns momentos raros de felicidade para iluminar esta monótona sucessão de dias que nos cai em cima.
Por isso, na hora do balanço, que não irei fazer, já bastam os jornais, a televisão, quiçá a rádio, lembrei-me de meia dúzia de coisas que me deram algum prazer, esqueci penas desventuras, uma que outra aflição, ofensas intoleráveis porque pequeninas (e vindas de gente pequenina...) e dei por mim a pensar um amanhã que cantasse.
E já me estampei. Isto de escrever de carreirinha, sem rei nem roque, sem guião, pensando quanto muito a frase seguinte, como quem conversa, à soleira da porta com dois ou três amigos desenfastiados, dá nisto. Nos “amanhãs que cantam”, citação que vem de uma idade das trevas demasiado recente para ser usada sem corar. Os amanhãs não cantaram para ninguém antes se mostraram tal como eram: vazios, feios e desumanizantes. Não que do outro lado as coisas fossem muito melhores, que não foram, mas porque estas promessas incumpridas e incumpríveis esmagaram o melhor de várias gerações de gente tão generosa quanto ingénua.
Quando oiço presidentes, primeiros-ministros e outras criaturas do mesmo jaez a desejarem solenemente boas festas ou bom ano aos paisanos como nós (ou pelo menos como eu) entra-me logo uma fúria demolidora e, se eu tivesse algum poder demoníaco, garanto que o fura-vidas que gargareja na tv votos e promessas caía logo ali fulminado. Ou seja, sou um homicida que se conhece. De ginjeira! Só não malho com os ossos na choça porque a minha raiva morre entre impropérios e palavrões escandalosos que fazem fugir as gatas e alvoroçam os vizinhos de ouvido mais sensível e atento. Cosmopolita por feitio e porque já não vale a pena mudar, murmuro as mesmas ameaças e blasfémias contra os chefões alheios e estrangeiros. Como os velhos anarquistas do século XIX, não tenho deus nem mestre, nem pátria nem rei. Qualquer um serve para o efeito fatal de ser convertido em cadáver vingando assim multidões inteiras de sem voz que penam por este mundo baço e feio. Bakunine e Kropotkine guiam-me a mão justiceira, a bomba artesanal, a pontaria que nunca tive, o revólver que nunca disparei ao som da Internacional. E sob as bandeiras negras e vermelhas que Leo Ferré tão bem cantou. Senhoras e senhores, apresenta-se perante Vexas, e numa única sessão, mcr o último abencerragem da extinta Sociedade do Raio. Ah ça ira, ça ira, ça ira...
Isto vem de uma canção dos tempos da revolução francesa que, obviamente prometia um futuro pouco atraente às classes dirigentes: les pretres on les pendra, les aristocrates a la lanterne e que terminava admiravelmente com
Et quand ont les aura tous pendus
On leur fichera la pelle aux c(uls?)
E o mais engraçado disto tudo, acabo agora de o saber, é que o seu autor se chamava Ladré, nome pobre, claro, e franciú mas que, entre nós, tem ecos de ladrar. Bem lhes ladraram aos pescoços os sans-culottes, enraivecidos. E pensando bem, provavelmente se eu lá estivesse, o meu rico pescocinho também teria marchado que aquilo a certa altura era imparável.
Mas isto descambou para o sanguinário, coisa que, para fim de ano, me parece excessiva, mesmo se dirigida só contra os de cima, os que mandam, os que vão salvar alguns dos mareantes desta nau, do terrível cancro do pulmão por via da proibição do tabaco. Eu que já não fumo há uma boa dúzia de anos, estou para aqui cheio de pena do Carteiro, da Sílvia, do JCP que aviava charutos cubanos do tamanho da Sierra Maestra com guerrilheiros castristas e tudo. A partir de amanhã vão fumar envergonhadamente para a rua, desconhecendo-se ainda se podem levar a xícara do café na mão... eu não me atrevo a dizer que estamos perante uma nova lei seca (que teve as consequências que se sabem e que, nos seus bons tempos, Al Capone agradecia...) mas dadas as características da nossa industria hoteleira, temo bem que das duas uma. Ou ninguém fuma, ou tudo estará como hoje daqui a um par de meses... Já sei que algum leitor me chamará nomes mas eu não consigo perceber porque é que um patrão de café ou de bar não pode ter um estabelecimento só para fumadores. E não me falem dos empregados. Basta que sejam também fumadores. E não me falem de despesas de saúde, sabido como é que no que diz respeito às drogas duras se gastam balúrdios em clínicas de acompanhamento, em salas de chuto e outras bizarrias.
Daqui a pouco, esta sanha higiénico-salvífica desagua na proibição de fumar em casa. Não se riam. Em vários Estados norte-americanos estuda-se essa hipótese. E não se admirem que noutros tantos do mesmo país se proibia até há pouco tempo, e sempre dentro da casa de cada um, actos de sodomia, de cunilingus e outras derivas do mesmo teor. Numa cidadezinha do Massachussets estava mesmo regulamentada a posição do coito: a de missionário. Proibiam-se outras posições sob pena de multa e num caso, de prisão: a que supunha o homem em decúbito dorsal e a mulher por cima de frente para ele. Parece que isto tornava as pilgrim mothers demasiado libertinas.
E por aqui me fico: aproveitem o ano que finda e o que por aí vem enquanto algum governante mais pundonoroso não resolve também ele, legislar sobre o kamasutra lusitano.
As minhas leitoras permitirão que dedique estas prosas bárbaras (bem que o queria!...) a alguns velhos velhíssimos amigos que fazem o favor de me ler: João Vasconcelos Costa, António Pinguel, Manuel Sousa Pereira, A Horta Pinto e mais um luzido grupo que dá por citado. De repente lembrei-me deles e deu-me para a ternura.
A gravura de hoje vem da (agora puritana) Índia, do templo de Lakshman mais precisamente.
Aliás as pessoas precisam de balizas destas no seu percurso. Bom seria que as usassem com algum discernimento. E nelas incluo-me também, não pensem que me ponho de fora, era o que faltava. Também eu acabo por fazer um balanço a estes últimos trezentos e sessenta e cinco dias, embora, confesso, me tenha esquecido pelo menos de trezentos deles. A nossa memória não é elástica, convém não a sobrecarregar demasiadamente, ninguém viveria com tanta recordação, mesmo que só se tratasse dos últimos trezentos ou quatrocentos dias.
Como me dizia alguém que viveu pouco, muito pouco mesmo, bastam alguns momentos raros de felicidade para iluminar esta monótona sucessão de dias que nos cai em cima.
Por isso, na hora do balanço, que não irei fazer, já bastam os jornais, a televisão, quiçá a rádio, lembrei-me de meia dúzia de coisas que me deram algum prazer, esqueci penas desventuras, uma que outra aflição, ofensas intoleráveis porque pequeninas (e vindas de gente pequenina...) e dei por mim a pensar um amanhã que cantasse.
E já me estampei. Isto de escrever de carreirinha, sem rei nem roque, sem guião, pensando quanto muito a frase seguinte, como quem conversa, à soleira da porta com dois ou três amigos desenfastiados, dá nisto. Nos “amanhãs que cantam”, citação que vem de uma idade das trevas demasiado recente para ser usada sem corar. Os amanhãs não cantaram para ninguém antes se mostraram tal como eram: vazios, feios e desumanizantes. Não que do outro lado as coisas fossem muito melhores, que não foram, mas porque estas promessas incumpridas e incumpríveis esmagaram o melhor de várias gerações de gente tão generosa quanto ingénua.
Quando oiço presidentes, primeiros-ministros e outras criaturas do mesmo jaez a desejarem solenemente boas festas ou bom ano aos paisanos como nós (ou pelo menos como eu) entra-me logo uma fúria demolidora e, se eu tivesse algum poder demoníaco, garanto que o fura-vidas que gargareja na tv votos e promessas caía logo ali fulminado. Ou seja, sou um homicida que se conhece. De ginjeira! Só não malho com os ossos na choça porque a minha raiva morre entre impropérios e palavrões escandalosos que fazem fugir as gatas e alvoroçam os vizinhos de ouvido mais sensível e atento. Cosmopolita por feitio e porque já não vale a pena mudar, murmuro as mesmas ameaças e blasfémias contra os chefões alheios e estrangeiros. Como os velhos anarquistas do século XIX, não tenho deus nem mestre, nem pátria nem rei. Qualquer um serve para o efeito fatal de ser convertido em cadáver vingando assim multidões inteiras de sem voz que penam por este mundo baço e feio. Bakunine e Kropotkine guiam-me a mão justiceira, a bomba artesanal, a pontaria que nunca tive, o revólver que nunca disparei ao som da Internacional. E sob as bandeiras negras e vermelhas que Leo Ferré tão bem cantou. Senhoras e senhores, apresenta-se perante Vexas, e numa única sessão, mcr o último abencerragem da extinta Sociedade do Raio. Ah ça ira, ça ira, ça ira...
Isto vem de uma canção dos tempos da revolução francesa que, obviamente prometia um futuro pouco atraente às classes dirigentes: les pretres on les pendra, les aristocrates a la lanterne e que terminava admiravelmente com
Et quand ont les aura tous pendus
On leur fichera la pelle aux c(uls?)
E o mais engraçado disto tudo, acabo agora de o saber, é que o seu autor se chamava Ladré, nome pobre, claro, e franciú mas que, entre nós, tem ecos de ladrar. Bem lhes ladraram aos pescoços os sans-culottes, enraivecidos. E pensando bem, provavelmente se eu lá estivesse, o meu rico pescocinho também teria marchado que aquilo a certa altura era imparável.
Mas isto descambou para o sanguinário, coisa que, para fim de ano, me parece excessiva, mesmo se dirigida só contra os de cima, os que mandam, os que vão salvar alguns dos mareantes desta nau, do terrível cancro do pulmão por via da proibição do tabaco. Eu que já não fumo há uma boa dúzia de anos, estou para aqui cheio de pena do Carteiro, da Sílvia, do JCP que aviava charutos cubanos do tamanho da Sierra Maestra com guerrilheiros castristas e tudo. A partir de amanhã vão fumar envergonhadamente para a rua, desconhecendo-se ainda se podem levar a xícara do café na mão... eu não me atrevo a dizer que estamos perante uma nova lei seca (que teve as consequências que se sabem e que, nos seus bons tempos, Al Capone agradecia...) mas dadas as características da nossa industria hoteleira, temo bem que das duas uma. Ou ninguém fuma, ou tudo estará como hoje daqui a um par de meses... Já sei que algum leitor me chamará nomes mas eu não consigo perceber porque é que um patrão de café ou de bar não pode ter um estabelecimento só para fumadores. E não me falem dos empregados. Basta que sejam também fumadores. E não me falem de despesas de saúde, sabido como é que no que diz respeito às drogas duras se gastam balúrdios em clínicas de acompanhamento, em salas de chuto e outras bizarrias.
Daqui a pouco, esta sanha higiénico-salvífica desagua na proibição de fumar em casa. Não se riam. Em vários Estados norte-americanos estuda-se essa hipótese. E não se admirem que noutros tantos do mesmo país se proibia até há pouco tempo, e sempre dentro da casa de cada um, actos de sodomia, de cunilingus e outras derivas do mesmo teor. Numa cidadezinha do Massachussets estava mesmo regulamentada a posição do coito: a de missionário. Proibiam-se outras posições sob pena de multa e num caso, de prisão: a que supunha o homem em decúbito dorsal e a mulher por cima de frente para ele. Parece que isto tornava as pilgrim mothers demasiado libertinas.
E por aqui me fico: aproveitem o ano que finda e o que por aí vem enquanto algum governante mais pundonoroso não resolve também ele, legislar sobre o kamasutra lusitano.
As minhas leitoras permitirão que dedique estas prosas bárbaras (bem que o queria!...) a alguns velhos velhíssimos amigos que fazem o favor de me ler: João Vasconcelos Costa, António Pinguel, Manuel Sousa Pereira, A Horta Pinto e mais um luzido grupo que dá por citado. De repente lembrei-me deles e deu-me para a ternura.
A gravura de hoje vem da (agora puritana) Índia, do templo de Lakshman mais precisamente.
3 comentários:
Tomei a liberdade, meu caro, de rapinar uma parte do seu magnífico texto para colocar n'O Anónimo.
Aproveito para lhe desejar um Bom Ano, enquanto não é proibido.
abraço
Incrível, as soluções portuguesas foram mais radicais que as portuguesas! Aqui não se pode mais fumar em ambientes "fechados", mesmo assim há certa tolerância ( certa, apenas) com os lugares fechados . Sendo uma cidade de clima quente há sempre varandas nos bares ( em geral, há). Sempre um lugar perto de uma porta aberta.
Aí sofrerei?
Abraços
Meu caro Carteiro:
V. não rapina nada porque tem a elegância de anunciar o autor e reenviar para o post original.
Em segundo lugar não posso, babado, deixar de agradecer os qualificativos exagerados à minha croniqueta. Sabem bem mas não me enganam: eu sou apenas isto: um cronista desfasado a remar contra a corrente.
Cara Sílvia: em Portugal somos assim: radicais que depois envergonhadamente se arrependem e volta tudo á mesma bandalheira. Daqui a meses o mais certo é andar tudo a fumar por aqui e por ali.
Cá fazem-se leis mas não se cumprem.
A única proibição que nunca verá a luz é a que versar a corrupção galopante dos políticos nacionais, regionais e municipais.
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