07 janeiro 2008

Diário Político 73


O Dr Correia de Campos entendeu, já entrado o ano, produzir algumas declarações que mais não são do que enviesadas respostas ao Presidente da República. Como é sabido, este, fez-se eco de algumas preocupações que começam a ser consensuais num país de população envelhecida que vê desaparecerem-lhe das redondezas os SAP, as urgências enfim o que até à data lhe parecia ser uma segurança contra as maleitas da idade, os achaques vários de um povo pouco saudável e rudemente castigado pela inépcia dos serviços de saúde. Só quem nunca entrou num Centro de Saúde, desesperado e sem médico de família, como este que se assina, é que sabe o percurso derrotante que tem de seguir. Dá vontade de desistir e ir morrer tranquilamente para casa. Ou de, tendo dinheiro, e não pouco, arriscar uma consulta na privada.
Dos hospitais nem vale a pena falar. Ainda há bem pouco fui num fim de tarde ao Santo António (esse mesmo o do Porto...) com um familiar que se sentia mal. Verdade seja dito que não foi difícil entrar na urgência. E foi rápido o primeiro exame que lhe fizeram, um electrocardiograma. Só que... depois foi uma longa espera por um médico (digamos que a coisa ultrapassou as três horas, para sermos comedidos e não contar os largos minutos a mais). A criatura que se sentia mal nem uma cadeira tinha, para esperar, como Job, a palavra do Senhor. Às tantas sentou-se numa mesa enquanto via circular à sua frente todas as misérias do mundo. Cá fora, eu esperava e desesperava numa sala cheia de gente que disputava um lugar sentado. Um bar a pedir urgentemente uma visita da ASAE dispensava umas sanduíches duvidosas e uns sumos que, parece, se serviam nuns copos de onde, tal qual a esperança no portão de Dante, a higiene tinha desaparecido.
A criatura minha familiar lá se salvou daquela confusão depois de convenientemente assistida por uma médica. Afável aliás, contou-me. E contou-me igualmente que, lá “dentro”, a confusão era indescriptível: corriam médicos aqui e ali a chamar pelo mesmo doente, como se não houvesse pacientes que chegassem para mais um batalhão de esculápios. O povo resignado assistia àquilo sem uma queixa, sem uma lamúria, com a estóica paciência com que os humildes esperam enganar a morte ou pelo menos obter um adiamento.
Isto ainda com vários SAP abertos. A ver vamos como será depois. O Santo António não estica, as pessoas envelhecem e adoecem com facilidade.
O Dr Correia de Campos não tem culpa do país ser assim. Mesmo sendo português e pertencendo a uma elite que há quarenta anos governa e desgoverna o torrãozinho de açúcar lusitano. Porque como ele mesmo diz, ele é “um servidor público. Já tinha idade para me reformar, tenho 65 anos, 42 de serviço, tenho um sentido do dever. O Estado pagou-me bolsas de estudo, tornou-me provavelmente uma pessoa conhecedora, acima da média, dos problemas de saúde dos portugueses....” Ou seja o Dr Correia de Campos acampou na direcção de vários serviços onde deu o litro e recebeu um salário. Foi várias vezes responsável, suponho até de um qualquer quinto governo provisório ou coisa semelhante. Paulatinamente terá feito o seu caminho de Damasco desde uma esquerda revelada durante a crise de 62 onde foi inclusivamente expulso de uma universidade até à passagem pela alta administração pública ainda mesmo em tempos da “outra Senhora”. Nada tenho contra isso, um técnico é um técnico mas a verdade é que nem todos os anti-salazaristas tiveram a sorte de verem os seus méritos reconhecidos por sucessivos governos desde Salazar até Sócrates.
Todavia as declarações do Dr Correia de Campos enfermam de alguns pequenos vícios que não são apenas de forma. Ninguém põe em causa as excelsas qualidades de que se arroga, ainda que alguma humildade não lhe fizesse mal à epiderme, ninguém contesta que ele tenha sido um fiel servidor público, coisa que de resto está bastante generalizada entre nós, ou que tenha conhecimentos acima da média. Só que isso faz um técnico mas não faz um político. E o Dr Correia de Campos, porventura a contrecoeur é um político. Um ministro. Dir-se-á que, tal e qual como Cavaco em seu glorioso tempo, o senhor Sócrates não liga muito aos ministros e delega-lhes uns vagos poderes mantendo-os de rédea curta. E de freio e bridão, até, se for o caso, como sucede com a senhora da Cultura. Mesmo assim, eles são ministros. São políticos. E como tal seria bom que agissem. Ora como político, custa-me dizer, o Dr Correia de Campos está abaixo da média. Não convence, não explica (aliás admite “alguma falta de dialogo do Ministério da Saúde”... o que sendo pouco já é começo sobretudo se substituirmos ministério por ministro) e quando o vejo na televisão é a arrogância que predomina. Os portugueses mesmo quando não se revoltam como deviam, não merecem ser tratados como débeis mentais, como retardados ou pior como gentinha. E, por muito que o Dr Correia Campos não queira, é isso que transparece de cada vez que Sª Exª se digna debitar alguma rara pérola da sua incomensurável sabedoria.
Também não colhe o argumento (e a velada ameaça de largar tudo?) de que já tem idade para se reformar mas está aqui por "dever", ou seja por amor dos portugas. Por favor, Dr Correia de Campos, ame-nos menos, estime-nos apenas como um vago conhecido que, com tanto amor, a malta arreia. Tem 65 anos? Parabéns e não se canse mais. Deixe o lugar a um incompetente que saiba explicar para onde vamos ou para onde vai o seu atribulado ministério. Para onde vão as maternidades, os SAP, os funcionários, os doentes, as doenças, as ambulâncias os helicópteros enfim essa pangaiada toda de que nos fala e que volta e meia chega tarde e a más horas. Más horas para nós, não para Vª Exª que provavelmente nunca teve esta maçada de levar, com o coração nas mãos, alguém a um hospital.
O Dr Correia de Campos pode ter carradas de razão nos encerramentos de serviços hospitalares. O interior desertifica-se, as despesas aumentam, os cuidados de saúde para ser bons sairiam demasiado caros sobretudo havendo um hospital a cinquenta quilómetros. Todavia há quilómetros e quilómetros como talvez não saiba porque nem tudo é auto-estrada. Depois nem toda a gente tem transportes rápidos e eficazes. Acresce que a percentagem de idosos cresce continuamente e serão estes os que mais acorrerão a um serviço que, ao estar longe, os descoroçoa, abate (em todos os sentidos possíveis da palavra) e confunde. O país não é exactamente aquela abstracção que eventualmente o Dr Correia de Campos supõe mas algo mais real, mais ignorante, mais pobre e mais desconsolado. As medidas que são bonitas e eficazes no papel podem ser profundamente desumanas e levar-nos a crer que os alvos da nossa atenção além de meros números são gente a mais com o prazo de validade ultrapassado. E isso, ou o que pode passar por isso, é insuportável. Pelo menos para muita gente que, como o Dr Correia de Campos, andou pelas greves universitárias, desejou um país diferente e vivo, serviu o público mas não deu o passo fatal (ou não mereceu...) que leva um técnico competente a um gabinete ministerial. Gente que, provavelmente, não se desdobraria em declarações sobre a declaração de Cavaco mas pura e simplesmente lhe enviaria uma cartinha de demissão. É chato mas é assim mesmo que faz quem se sente.

na gravura: um hospital medieval. Morria-se muito mas com mais apoio e piedade.

No inicio do ano, d'Oliveira deseja aos seus leitores saúde e impaciência.

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