06 fevereiro 2008

Au Bonheur des Dames 110


De Madrid para o Manuel Sousa Pereira
e para quantos esta interessar


Pois é Manecas. Estamos em Madrid como dois cucos em ninho quente e emprestado. De mim já sabes como sou e quanto gosto desta “villa y corte” como se dizia no antigamente. Agora a CG é que nem te digo. Não anda: flutua! Gosta de tudo e de mais alguma coisa. Por ela, ficávamos já aqui a cantar lunduns com uma caneca à frente para as moedinhas. E nem sequer se queixa dos trajectos a que a obrigo. É que temos poucos dias e quero mostrar-lhe o mais possível...
Estamos instalados no umbigo da cidade, aí mesmo onde o “dois de Maio” ocorreu. Só por isso já Madrid merecia uma serenata mas há mais, muito mais.
Do nosso modesto hotel vemos a Igreja de San Giner onde estão, julgo, os ossos de Lope, Vitória, e não sei quem mais. E ao lado há um pequeno librero de viejo. Estás a ver como me sinto bem, não? Claro que há um pequeno problema: o diabo da igreja, em chegando as sete da matina, avia um quarteirão de badaladas próprias para acordar um morto, quanto mais este vivo. Fora isso, está tudo a correr de feição. Faz sol, um belo sol, por sinal, o frio aguenta-se bem e como estamos em pleno umbigo da cidade velha está tudo perto. Daqui aos museus são dez minutos de passeio, mesmo parando nalguma livraria (e hoje explorei a “António Machado” que está melhor do que nunca...).
Imagina, querido amigo, que abriu ontem uma exposição no Thyssen-Bornemisza dedicada a Modigliani e os seus contemporâneos. Eu ia com a alma num credo, temendo bichas tremendas, o costume nestas coisas. Qual quê! Entrámos como quem entra no moinho da Joana, nas calmas, sem gente e, em cinco minutos, estávamo-nos a babar diante dos quadros do livornês e das obras dos seus amigos e contemporâneos. Ela era Braque, Gris, Picasso, Cezanne sei lá quem mais. Ou melhor sei, e porr isso te mando estas novas de alegria: Brancusi, Manel, o teu Brancusi!
Ó que falta nos fizeste, tu que serias capaz de explicar tantas coisas desta escultura puríssima, levíssima, densíssima...
A CG estava já a cinco metros de altura. Tive de a agarrar firmemente não fosse o diabo da mulher, ganhar altura e escafeder-se sabe-se lá para que estranhas latitudes.
Almoçámos no museu, claro. E um belo almoço convém dizê-lo: bem servido, a bom preço, regado com um tinto jovem destas terras castelhanas, um vinho inteiro e intenso, produto destes campos que foram talados para dar bons soldados, os dos tércios da Flandres, homens secos, austeros, sofredores e corajosos, que depois mostraram de que madeira eram feitos no tal dois de Maio, em que, de mãos nuas ou quase, afrontaram o melhor exército do mundo. E que mais tarde haveriam de defender esta cidade das hordas franquistas, cantando sob as bombas...
O resto da tarde passámo-lo nas colecções residentes do Thyssen... E digo colecções porque ao lado da do barão (sumptuosa!!!) há da viúva, Carmen (Tita) Cervera. E aqui abra-se um parêntesis. Esta mulher, esta senhora!, tem gosto, tem inteligência, tem dedo, tem generosidade. A colecção dela, muito centrada no final do século XIX e no XX principalmente é um prodígio! Estão lá os melhores e representados com grande acerto e qualidade.
Ó que distancia entre esta colecção que se mostra sem contrapartidas e essa misturada que encheu um centro nacional e que está lá, pesporrenta, desinteressante, boa para atrair papalvos a comer-nos as papas na cabeça. Vai nisso também a distancia infinita entre o Madrid cultural e Lisboa a da triste sina, entre uma mulher culta e uma criatura que deve pensar que o dinheiro justifica tudo, compra tudo e desculpa tudo.
Parafraseando, bem que podíamos aqui dizer: É a cultura, estúpido!
Mas não vale a pena, isto é remar contra a corrente, Manel, é para isto que fomos fadados, para aturar esta gentuça que, mesmo a esta distância, incomoda e irrita. Com tipos destes nem é preciso emigrar, a pátria é já um lugar de exílio.
Mas deixemos isso, que por quatro dias “Madrid me mata”. No regresso, carregados de catálogos, cartazes, livros, parámos na Porta del Sol para uma cervejinha. À nossa frente um grupo de mariachis tocava coisas mexicanas, entre elas o “cielito lindo”. A CG nem acreditou quando me viu juntar-me ao coro naquela dos gorriones e dos corazones. Nem eu, aliás.
Como nota final: estreei a minha condição de sexagenário: tive um gordo desconto no museu: deu para a garrafa de vinho que bebemos todinha, benza-a Deus. Ah nem tudo é mau nisto de ter sessenta e seis aninhos. Amanhã há mais Modigliani na Caja Madrid, mais um desconto, espero, e mais um vinho, produto da mais alta civilização nossa, mediterrânica, do sul. Para esquecer os bárbaros e o deserto que eles trazem colado à carteira. E ao (mau) hálito...
Um beijo da CG que dorme aqui ao lado enquanto dou ao dedo e oiço da rua uma banda cigana a tocar “when the saints...
E um abraço do teu
mcr, à solta em Madrid que bién resiste, como un gorrión acrata.

*na gravura: “o beijo” de Constantin Brancusi

5 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Boa estada em Madrid, MCR, que é de facto uma cidade fantástica.
Pois eu fui-me por estes dias até à capital lusa e não resisti a ir ao CCB ver a colecção Berardo. Uma verdadeira rapsódia de artistas e movimentos, uma amálgama com pouca coerência. Vale, no entanto, por chamar a si gente que de outro modo (ou seja, a ter de pagar) não contactaria com a arte. Pelo menos enquanto o acesso for gratuito. Mas tudo isto é pouco para justificar a "entrega" do CCB a Berardo.

josé disse...

E para o "bonheur des dames", por quanto tempo fica lá o Modigliani?

Até à Páscoa, por supuesto? No?

josé disse...

É que há uns Picasso, anunciados para a casa ao lado...

Sousa Pereira disse...

Caro "TIO"& CG
Que raiva... assim que acabar o trabalho para cerveira vais ver se não vos desencaminho para ai voltares...Quanto a explicar... há mais para dizer do Brancusi ou do Modigliani???...tu vê-me com olhinhos de "ver" a qualidade do desenho do sacana do italiano!!!!
Boa estadia e cá vos espero para me contarem tudo.Um grande abraço

M.C.R. disse...

Caro José
O Modigliani fica bastante tempo, esteja descansado. E tem uma 2ª parte que hoje fomos ver na Caja Madrid, Praça sw San Martin a um minuto da Porta del Sol. E de borla!!! Nus, paisagens e desenhos e o grupo de amigos do costume:L um regalo.
O Picasso que abriu no Reina Sofia é o recheio do Museu Picasso em Paris que está em obras: 400 picassos!
Mais notícias daqui a pouco no
Amanhã passaremos lá. Já conhecemos acolecção mas não custa nada revê-la...
Pereirinha
Desembaraça o diabo da escultura para Cerveira que nós estamos aptos a ser desencaminhados. eu, então, que nunca fui muito encaminhado, estou por tudo. Mas fizeste falta nesta exposição. Hoje vi dois Zadkines que me deixaram varado. Chiça que estes gajos eram mesmo muito bons!
Daqui a pouco dirtei mais qualqueer coisa na correspondencia de hoje, aí em cima se puder ser.