14 fevereiro 2008

Diário Político 77


Os mares do sul


São traiçoeiros os mares do sul. O azul intenso que lhe atribuem pode fazer esquecer algum vermelho, algum negro, ou outra cor qualquer.
Vem esta a propósito de Rui Tavares que na última página do “Público” vem insurgir-se contra quantos acham pouco interessante esta nova moda de pedir desculpas políticas por ocorrências do passado. Pede-se desculpa aos judeus pelos massacres ocorridos há séculos em Lisboa ou em qualquer outra parte, pede-se desculpa aos índios pela conquista do faroeste, pede-se desculpa aos arménios ou aos tasmanianos. Perdão, a estes não, porque já não há nenhum.
Tavares esforça-se honradamente por rebater os cépticos, arguindo com o simbólico (e a política, diz ele, é também isso) e com um outro e mais sério argumento que é o do reverso do orgulho pelo passado. Quem se orgulha das Descobertas, diz Tavares, por força que deverá convir que houve excessos, crueldades, infâmias e crimes. E vítimas, evidentemente. É verdade mas creio que mesmo neste contexto, Tavares baralha dados. As vitórias têm sempre uma outra leitura que é a derrota dos outros. Ou a hipótese de derrota nossa se as coisas não tivessem corrido bem.
Agora foram os australianos. A coisa é simples: descoberta a Austrália, os primeiros colonos, quase todos forçados, aliás, logo que se viram à solta foram liquidando por estupidez, ignorância, ambição ou qualquer outra razão pouco edificante os aborígenes. A pontos destes estarem reduzidos a dois centos de milhar de indivíduos pobres, escorraçados e infelizes.
Agora o governo vem solenemente pedir desculpa. O primeiro ministro chegou a ajoelhar diante de uma anciã. Multidões choraram. Eu mesmo comovi-me. Mas só um bocadinho. É que lembrei-me que em vez de discursos talvez fosse tempo de um par de acções: devolver as terras aos seus donos ancestrais. As terras e não uns matos desagradáveis e improdutivos. Criar um programa de ajudas económicas para se poderem constituir empresas produtivas dirigidas pelas comunidades que ainda existem. Programas educacionais a serem geridos pelas mesmas comunidades. Discriminação positiva no acesso a empregos público e a lugares de representação política. Etc...
Actos primeiro e depois palavras: ou res non verba. As desculpas são simpáticas mas se nada mais se fizer (ou se se fizer pouco) a coisa cheira a hipocrisia.

Timor! Eu não gosto de falar de Timor. Por várias razões. À uma, noventa por cento dos preopinantes que têm assinatura timorense em jornais e revistas é de uma ignorância gritante quanto á história da colónia. Fale-se-lhes de Celestino da Costa e perguntam quem é?. Idem se lhes referirmos Cal Brandão, o homem de “Fumo, guerra em timor”. Verdade se diga que era branco, oposicrático, advogado e já morreu. E o mesmo se diga do tenente Pires
Timor apareceu no imaginário post-colonial português por via de uma desgraçada, escusada e criminosa guerra civil promovida por insensatos, consentida por uma potência colonial impotente que inclusivamente abandonou à sua sorte os poucos militares que lá estavam, e que por milagre não morreram, e finalmente porque a Indonésia, depois de uma longa maratona de conversações sem êxito, acabou por entrar na zona. Com brutalidade? Sem dúvida! Com cumplicidades internas? Absolutamente. E mais que muitas. E com o agrément de quase toda a gente, Portugal incluído. Pelo menos in imo pectore. O resto é fantasia. O barquinho ridículo com Eanes a bordo que prudentemente se ficou por águas internacionais a deitar florinhas ao mar, as marchas folclóricas cá, as velas e tudo o resto. A ideia de resto foi copiada a papel químico de outras não menos brilhantes. Portugal que nada fizera contra a ocupação japonesa, que não protegeu nem apoiou os resistentes dessa altura, que não desenvolveu minimamente o território, que nunca percebeu (ou fingiu nunca perceber) o fenómeno indonésio e a teoria que estava subjacente de unificação das milhentas ilhas desde Java à nova Guiné, do Bornéu a Sumatra, incluindo Bali ou Timor. Isso foi proclamado pelo Presidente Sukarno, recebido festivamente em Lisboa antes de ser derrubado pelos generais contra os quais aliás conspirou. A Igreja católica inventou uma Indonésia muçulmana ameaçadora como se não houvesse vinte e não sei quantos bispos na Indonésia além de protestantes, para não falar na panóplia completa das grandes religiões asiáticas. O povo apaixonou-se por Timor, noiva longínqua e por Xanana o seu profeta. Esse mesmo Xanana, a ferros numa cadeia horrível e fazendo filhos a uma senhora australiana e sua actual mulher. Nas prisões indonésias o regime parecia ser menos duro do que nas portuguesas...
Entretanto Timor era governado por cavalheiros com nomes portuguesíssimos. Cavalheiros que certamente sabiam das exacções militares. Cavalheiros que por lá continuam, ao que sei. Todos ou quase todos. Como a Igreja, campeã popular e exemplo da mais verrinosa resistência às mais simples precauções quanto a relações sexuais. Haja quem recorde a objurgatória do bispo Belo contra os preservativos.
Timor é governado (enfim é isso que consta) por partidos cujos dirigentes vêm quase todos das burrices de 75. Sejam eles a Fretilin por quem as virgens portuguesas desmaiavam de solidariedade ainda há pouco tempo, ou os outros que apareceram como as formigas depois da chuva e da saída dos indonésios.
Só que Timor é, tem sido, um pais sob protectorado. Australiano sobretudo ainda que travestido de internacional. O cheiro do petróleo é embriagador. Só que uns cheiram-no e outros vendem-no. E não são os timorenses. Um comentador que poderia passar por cínico se não tivesse razão dizia que os australianos depois de terem eliminado os seus pretos se preparavam para eliminar os que estivessem mais próximos. A saber os timorenses.
Todavia, mesmo com as tropas australianas, as coisas em Timor, não correm como se esperava. Falta de leitura da história pregressa do território. E das mais de cem campanhas “de pacificação” portuguesas. Se lessem, saberiam que o governo colonial local, usava o expediente de atacar um chefe tribal de cada vez. Com a ajuda de outros chefes tribais a quem se oferecia o saque e as cabeças. E assim sucessivamente.
As tropas australianas podem dar para policiar Dili e redondezas. Foram ineficazes para prender Reinado, agora morto, sem se saber exactamente por quem e como. Também não se sabe se Xanana e Horta eram alvo do mesmo grupo ou de grupos diferentes. Também se não percebe como é que ninguém excepto uma sobrinha do presidente dá pelo assalto á casa deste. E que é que faziam as tais forças internacionais, que não intervieram. Enfim ninguém sabe grande coisa, se é que alguma vez se saberá.
Duma coisa porém podemos estar certos: isto não foi o principio do fim das dificuldades mas apenas o fim do princípio delas. Ou seja: piores tempos poderão estar para vir.
E para isto parece que já há um consenso entre os novos protectores e alguns dos protegidos. Há que aumentar a intervenção dos estrangeiros. Se isto não é o velho argumento dos colonialistas radicais não sei o que será.

Tata!
Acaba de vez com a mentira.
Afina o teor que vibra ainda
e se lamina ao sol da desventura!
Mata!
Ressuscita!
Desce a Timor!


*Rui Cinatti: Invocação ao Tata Mai Lau (in Paisagens Timorenses com vultos, 1974)
Cinatti foi um verdadeiro amigo de Timor onde permaneceu por vários anos até ser proibido de lá viver por ordens do poder colonial. Fez juramento de sangue com dois clãs timorenses e tem o seu nome ligado a duas plantas timorenses que estudou e descreveu.

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