Amigos velhos,
livros idem
e a mesma velha conversa
de bica aberta
Escrevinhei aí em baixo umas larachas sobre a “venda de livros” do Mercado da Fruta (coisa que ocorre também em Lisboa e que genericamente consiste numa espécie de venda de fundos editoriais, de colecções “descontinuadas”, ou de saldos de livros que tiveram pouca saída) e logo me saltou um comentário, simpático além de verdadeiro, sobre a minha impenitente mania da livralhada. Assinava-o um(a) “Ventoinha”. Gato escondido com o rabo de fora, ou nem isso sequer que o casal Ventoinha (Luísa e Luís) é conhecido de uma gigantesca roda de amigos, coimbrinhas na maior parte, malta de 69, da Centelha, dos livros, da Associação Académica e de mais uma série de pequenas e saborosas aventuras.
Fizemo-nos adultos nesses anos de vinho e rosas, de chumbo e medos, de desafio e solidariedade. Foram anos abençoados, imperdíveis, que acaso revelaram o melhor de nós mesmos. Dessa época que já lá vai, pontuada por mortos, muitos mortos já, alguns na guerra, sobra ainda um belo grupo de sobreviventes e com isto quero significar não os escapados à gadanha da mesquinha mas apenas todos quantos mantém acesa a pequeníssima vela da dignidade, da indignação, da recusa aquele “modo mesquinho de viver”, malta que não embarcou nas delicias da “sociedade afluente” a qualquer preço, mulheres e homens que ainda têm vergonha da miséria que nos cerca, da laparotice dos políticos, do vira-casaquismo, e dos Abranhos todos (e são muitos, uma multidão...) que se criaram connosco mas já não estão connosco.
Não estou a fazer a apologia da intransigência, do esquerdismo “a outrance” (era o que faltava...) mas apenas daqueles mínimos, muito mínimos, que andam esquecidos por um bom e nutrido grupo de “neocons” que fizeram com mais desplante e rapidez do que verdadeiro arrependimento a viagem da esquerda “pura e dura”, para a glorificação do liberalismo mais soez e boçal a troco de prebendas, de um bocadinho de poder, de uma fotografia na imprensa cor de rosa, de um emprego de assessor de um biltre qualquer, municipal, ministerial ou meramente cultural. Confesso que me vai faltando a pachorra para estes pobres conselheiros e brigadeiros que louvaminham os governos medíocres e que se julgam os ideólogos desta nova mistela que é centrão cinzento e tristonho que nem sequer nos tira do cú da Europa.
Falava, ainda ontem, disso, com o Zé Barata, perdão, o Professor Doutor José Barata que se confessava farto de remar contra a corrente. E depois, pimba!, aí está ele a preparar um belo e exaustivo livro sobre a história do teatro universitário onde, para meu espanto, não falta sequer um aderecista, um ajudante de cena, um humilde elemento de apoio. O Zé desencantou meio mundo, entrevistou outro tanto (só faltou o Alexandre exilado em Liége á sombra de uma Constanze que o atura e estraga de mimos), arranjou papeis, recortes, fotografias, cartazes, criticas, programas, apontamentos eu sei lá o que mais. Só não desenterrou mortos. E a Gulbenkian, outra vez ela!!!, abriu os cordões à bolsa ou prometeu abrir, o que é o mesmo porque aquela gente, honra lhe seja, só tem uma palavra. Ontem, vi o livro começar a nascer, nas mãos de um jovem e talentoso designer que, por acaso, é enteado de outro militante destas faenas políticas, éticas e teatrais. O mundo é pequeno!
E ao fim da tarde, um dos Ventoinhas a dar sinal de vida, lá dos Orientes. Pela brevidade há-de ter sido o Luís, livreiro de mão cheia (oh para que serve um canudo em Direito!) um dos que construíram a Unitas, cooperativa livreira e, mais tarde, a livraria Finisterra, para já não falar da saga da editora “centelha” a única editora, julgo, cujos sócios não só não recebiam dinheiro mas pagavam para aquilo funcionar. A Centelha publicava poesia e política, tudo ao molho, como se os poetas, na altura jovens, e os pensadores de uma esquerda desalinhada e iconoclasta (que desapareceu, boa parte dela, sob a pata dos aparelhos totalitários de esquerda e de direita) fossem tão urgentes como o pão pela manhã e amor pela noitinha. E eram. E são.
Saravah, manos Ventoinhas! Se alguma vez me pilharem por essas terras chinesas podem ter a certeza que é mesmo só para vos ver que, para mim, do Oriente, bastam-me os livros, alguma gravura japoninha e os filmes do mesmo sítio. A menos que me saia um prémio gordo e, na ida para a Nova Zelândia (com que sonho desde que li o Júlio Verne) possa fazer escala em Macau. De outro modo, não! A Índia não me puxa, pese o Sandokan, Bali idem e os mares do sul já não são habitados pelos fantasmas de Gauguin, Brel, London ou Corto Maltese.
Ou então, dá-me outra e meto-me no Transiberiano. O transiberiano ainda me seduz. Leituras (outra vez!!!) do Verne e do Cendrars: a “prose du transibérien et de la petite Jeanne de France”. Oh quantos sonhos! Eu não me envergonho de Vos dizer que li este poema imenso com o coração aos saltos e os olhos marejados. Fui pelo livro: “Du monde entier” (poesie/gallimard) comprado em Setembro de 67(!!!) por 21 escudos! Dez cêntimos actuais! Meu Deus, há quantos anos e há quanto dinheiro. Com 21 escudos, nesse ano da graça de 1967, almoçava-se decentemente no “Mandarim” (lembram-se Ventoinhas?) com direito a bebida, sobremesa, café e provavelmente um café para os amigos que aparecessem: por exemplo o Horta Pinto, outro que tal, desses tempos difíceis...
E depois de oito dias de viagem por essas terras sonoras e infamadas pela tirania estalinista chegar ao Pacífico e descer esse mar assombrado pela recordação de Magalhães até alcançar essas terras roubadas ao mar onde os Ventoinhas, fartos desta pequenês, encontraram um porto de abrigo onde recebem fidalgamente amigos de passagem.
Que lhes chegue, à falta de presença física, este abraço e esta duvidosa promessa: algum dia...
a ilustração: mais um troço da biblioteca que procura casa condigna onde os livros possam estar todos juntos e quentinhos.
Fizemo-nos adultos nesses anos de vinho e rosas, de chumbo e medos, de desafio e solidariedade. Foram anos abençoados, imperdíveis, que acaso revelaram o melhor de nós mesmos. Dessa época que já lá vai, pontuada por mortos, muitos mortos já, alguns na guerra, sobra ainda um belo grupo de sobreviventes e com isto quero significar não os escapados à gadanha da mesquinha mas apenas todos quantos mantém acesa a pequeníssima vela da dignidade, da indignação, da recusa aquele “modo mesquinho de viver”, malta que não embarcou nas delicias da “sociedade afluente” a qualquer preço, mulheres e homens que ainda têm vergonha da miséria que nos cerca, da laparotice dos políticos, do vira-casaquismo, e dos Abranhos todos (e são muitos, uma multidão...) que se criaram connosco mas já não estão connosco.
Não estou a fazer a apologia da intransigência, do esquerdismo “a outrance” (era o que faltava...) mas apenas daqueles mínimos, muito mínimos, que andam esquecidos por um bom e nutrido grupo de “neocons” que fizeram com mais desplante e rapidez do que verdadeiro arrependimento a viagem da esquerda “pura e dura”, para a glorificação do liberalismo mais soez e boçal a troco de prebendas, de um bocadinho de poder, de uma fotografia na imprensa cor de rosa, de um emprego de assessor de um biltre qualquer, municipal, ministerial ou meramente cultural. Confesso que me vai faltando a pachorra para estes pobres conselheiros e brigadeiros que louvaminham os governos medíocres e que se julgam os ideólogos desta nova mistela que é centrão cinzento e tristonho que nem sequer nos tira do cú da Europa.
Falava, ainda ontem, disso, com o Zé Barata, perdão, o Professor Doutor José Barata que se confessava farto de remar contra a corrente. E depois, pimba!, aí está ele a preparar um belo e exaustivo livro sobre a história do teatro universitário onde, para meu espanto, não falta sequer um aderecista, um ajudante de cena, um humilde elemento de apoio. O Zé desencantou meio mundo, entrevistou outro tanto (só faltou o Alexandre exilado em Liége á sombra de uma Constanze que o atura e estraga de mimos), arranjou papeis, recortes, fotografias, cartazes, criticas, programas, apontamentos eu sei lá o que mais. Só não desenterrou mortos. E a Gulbenkian, outra vez ela!!!, abriu os cordões à bolsa ou prometeu abrir, o que é o mesmo porque aquela gente, honra lhe seja, só tem uma palavra. Ontem, vi o livro começar a nascer, nas mãos de um jovem e talentoso designer que, por acaso, é enteado de outro militante destas faenas políticas, éticas e teatrais. O mundo é pequeno!
E ao fim da tarde, um dos Ventoinhas a dar sinal de vida, lá dos Orientes. Pela brevidade há-de ter sido o Luís, livreiro de mão cheia (oh para que serve um canudo em Direito!) um dos que construíram a Unitas, cooperativa livreira e, mais tarde, a livraria Finisterra, para já não falar da saga da editora “centelha” a única editora, julgo, cujos sócios não só não recebiam dinheiro mas pagavam para aquilo funcionar. A Centelha publicava poesia e política, tudo ao molho, como se os poetas, na altura jovens, e os pensadores de uma esquerda desalinhada e iconoclasta (que desapareceu, boa parte dela, sob a pata dos aparelhos totalitários de esquerda e de direita) fossem tão urgentes como o pão pela manhã e amor pela noitinha. E eram. E são.
Saravah, manos Ventoinhas! Se alguma vez me pilharem por essas terras chinesas podem ter a certeza que é mesmo só para vos ver que, para mim, do Oriente, bastam-me os livros, alguma gravura japoninha e os filmes do mesmo sítio. A menos que me saia um prémio gordo e, na ida para a Nova Zelândia (com que sonho desde que li o Júlio Verne) possa fazer escala em Macau. De outro modo, não! A Índia não me puxa, pese o Sandokan, Bali idem e os mares do sul já não são habitados pelos fantasmas de Gauguin, Brel, London ou Corto Maltese.
Ou então, dá-me outra e meto-me no Transiberiano. O transiberiano ainda me seduz. Leituras (outra vez!!!) do Verne e do Cendrars: a “prose du transibérien et de la petite Jeanne de France”. Oh quantos sonhos! Eu não me envergonho de Vos dizer que li este poema imenso com o coração aos saltos e os olhos marejados. Fui pelo livro: “Du monde entier” (poesie/gallimard) comprado em Setembro de 67(!!!) por 21 escudos! Dez cêntimos actuais! Meu Deus, há quantos anos e há quanto dinheiro. Com 21 escudos, nesse ano da graça de 1967, almoçava-se decentemente no “Mandarim” (lembram-se Ventoinhas?) com direito a bebida, sobremesa, café e provavelmente um café para os amigos que aparecessem: por exemplo o Horta Pinto, outro que tal, desses tempos difíceis...
E depois de oito dias de viagem por essas terras sonoras e infamadas pela tirania estalinista chegar ao Pacífico e descer esse mar assombrado pela recordação de Magalhães até alcançar essas terras roubadas ao mar onde os Ventoinhas, fartos desta pequenês, encontraram um porto de abrigo onde recebem fidalgamente amigos de passagem.
Que lhes chegue, à falta de presença física, este abraço e esta duvidosa promessa: algum dia...
a ilustração: mais um troço da biblioteca que procura casa condigna onde os livros possam estar todos juntos e quentinhos.
2 comentários:
Saravah, Marcelo.
Enganaste-te! Apesar de curto, o comentário foi meu e não do Luís, que esse continua com o nariz enfiado em livros, textos, fotos e gravauras, cuidando da sua "mais que tudo" que, como calcularás, não sou eu e sim a Revista de Cultura, do I.C. de Macau.
Eu navego por mares bem mais prosaicos, mergulhada em textos pouco poéticos sobre integridade no exercício de funções públicas (que bem estaria aí!). Vale o ir tendo por aqui amigos-dos que falas (e não tantos como gostaria)- e o próximo há-de ser o Manel Simas. Altura para pôr várias escritas em dia e ter mais e melhores notícias tuas. Quando chegará a tua vez? Difícil, que tu és mais de Paris, Berlim, Nova York...
Um abração
Ventoínha (a)
Olá Luís!
Finalmente encontrei-te!
Vou realizar um Grande Encontro de Trunfos no dia 12 de Abril em minha casa em Gandufe.
Contacta-me: abilio.travessas@gmail.com
Um abraço,
Travessas
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