As escassas leitoras gentis que fazem o favor de me aturar (isto de escassas que, no meu caso, é uma ociosa verdade está a espalhar-se. Para que se saiba uso esta deprimente verdade há uma boa dúzia e meia de anos. Há mesmo um livrinho que cometi em anos mais verdes onde a expressão virá consignada se é que ainda me lembro do que escrevi. Agora leio por aí esta mesma lenga-lenga. Assim não vale. Já tenho tanto que me espremer para aviar meia dúzia de linhas e vem aí um curioso e zás!, mete o mesmo paleio...) sabem, ou desconfiam que eu sou um profundo admirador de Paul Lafargue, o imortal autor do “Direito à Preguiça” (melhor diria ao ócio que é do ócio inexistente naquele tempo que o genro de Marx falava).
De vez em quando ponho-me diante do computador, agora até o levo para a esplanada, e vou debitando nem eu sei bem o quê. De vez em quando aparece alguém, interrompo o que estou a escrever, ponho-lhe um título qualquer, esqueço-me e encontro-o dias mais tarde, gloriosamente inútil porque perdeu oportunidade, porque não consigo repegar no que escrevi, eu nunca consigo, escrevo de carreirinha, detesto corrigir, aliás não corrijo, quando muito umas vírgulas ou alguma palavra repetida. Se algum estilo tenho é este: não o ter. O que saiu, saiu e quem vier atrás que feche a porta.
Nessa torrente de palavras vou deixando constância de algumas angústias, muitas perplexidades e mesmo um par de espantos. O mundo, este mundo, que é o nosso, o meu, pelo menos, não deixa de me surpreender. Uma pessoa pensa que depois dos sessenta já não há novidade que a abale e, pimba!, toma lá que já bebes...
Convenhamos: não me sinto especialmente confortável neste lugar e neste agora. De resto nunca me senti. Se calhar é porque nasci canhoto, canhoto que nem um calhau, só a escola e as diárias palmatoadas, ou a ameaça delas, me levaram a usar a mão direita para escrever. O resultado, durante anos, foi uma letra que variava entre o gatafunho irreconhecível até mesmo por mim e o linear b dos saudosos cretenses. Foi preciso chegar ao fim do liceu para começar a desenhar as letras. Com a prática, aliás adquirida ao copiar integralmente os dois volumes de poesia de Rilke (tradução Paulo Quintela, se fazem o favor, directinha do alemão, rugosa, áspera, genial...) comecei a ganhar este cursivo que agora tenho e que é gabado por conhecidas e amigas. Ou melhor é gabado pelas amigas que me conhecem e que entendem, misericordiosamente, afagar-me o maltratado ego.
Lá me perdi! Estão a ver? Comecei a discorrer sobre a minha ineficiente escrita, atribuí-a à minha desconformidade com o mundo, que atribuí, por sua vez ao facto de ser canhoto e por aí fora.
Claro que, a talho de foice, também poderia acusar a rapariga que está à minha frente, ligeiramente à direita diante de um marmanjolas novo mas careca, bem feito!, feio como uma sexta-feira da paixão, mal embiocado numa vestimenta de mau gosto. E ela a jovem que bem que está! Que bem que é! Se eu fosse um grosseirão como o finado Camilo José Cela, diria que a rapariga era “boa de ver e melhor de apalpar”. Mas não sou, pelo que farão o favor de ignorar o que o Cela diz aí por cima.
A rapariga que está aí à minha frente, apareceu há umas semanas. Como só a vejo em dias úteis presumo que trabalhe em algum dos escritórios aqui do bairro. Será estagiária em algum dos advogados da zona? É que se veste com um cuidado muito clássico e tem a pose de uma menina bem comportada. Dava para estagiária... É bonitinha: um rosto muito sereno, bonitos olhos, cabelo liso e apanhado com fingida despreocupação, enfim não está mal, nada mal.
É claro que daí alguém perguntará porque é que um gajo já tão entrado em anos se mete nestas contemplações. Porque não, reponta o dito cujo. Aliás “a boi velho erva tenra” como dizia o meu inolvidável pai que acrescentava “olhar não tira bocado”. Sempre desconfiei que isto era dito com uma certa tristeza, mas os mortos não têm defeitos. E já agora os vivos, este vivo, mansamente voyeur, também não. Pior seria se me pusesse a admirar os marmanjolas... Meu Deus, o que fui dizer! Esta pode parecer homofóbica... se é que o não é mesmo. Se é, paciência, nasci assim, fui assim educado, já não mudo, nem sequer me apetece mudar.
Deixemos, porém, a jovem ali da frente, sossegada a ouvir o rapaz careca (bem feito! ) mas jovem como ela (grande sacana!) e se calhar simpático e bem disposto. Se calhar, há muitos, muitos anos, um gajo com a idade que agora tenho, olhou para mim a fazer-me ao piso de uma rapariga igualmente boa de ver etc..., e achou que eu tinha ar de parvo. Se calhar tinha, mas quem estava em jogo era eu e não ele, o grande invejoso!...
Já me perdi outra vez, onde é que eu ia, mãe de Jesus, que cabeça a minha, ah já sei, a solidão do escrevente num mundo que lhe parece incompreensível.
Convenhamos: o mundo é sempre incompreensível. Excepto para os cinzentões sem imaginação. Esses fazem ginástica sueca, respeitam os poderes constituídos e a igreja oficial e dão ao demo as inquietações. Provavelmente não são canhotos.
na gravura: Mondrian, uma admiração que já dura há mais de cinquenta anos
De vez em quando ponho-me diante do computador, agora até o levo para a esplanada, e vou debitando nem eu sei bem o quê. De vez em quando aparece alguém, interrompo o que estou a escrever, ponho-lhe um título qualquer, esqueço-me e encontro-o dias mais tarde, gloriosamente inútil porque perdeu oportunidade, porque não consigo repegar no que escrevi, eu nunca consigo, escrevo de carreirinha, detesto corrigir, aliás não corrijo, quando muito umas vírgulas ou alguma palavra repetida. Se algum estilo tenho é este: não o ter. O que saiu, saiu e quem vier atrás que feche a porta.
Nessa torrente de palavras vou deixando constância de algumas angústias, muitas perplexidades e mesmo um par de espantos. O mundo, este mundo, que é o nosso, o meu, pelo menos, não deixa de me surpreender. Uma pessoa pensa que depois dos sessenta já não há novidade que a abale e, pimba!, toma lá que já bebes...
Convenhamos: não me sinto especialmente confortável neste lugar e neste agora. De resto nunca me senti. Se calhar é porque nasci canhoto, canhoto que nem um calhau, só a escola e as diárias palmatoadas, ou a ameaça delas, me levaram a usar a mão direita para escrever. O resultado, durante anos, foi uma letra que variava entre o gatafunho irreconhecível até mesmo por mim e o linear b dos saudosos cretenses. Foi preciso chegar ao fim do liceu para começar a desenhar as letras. Com a prática, aliás adquirida ao copiar integralmente os dois volumes de poesia de Rilke (tradução Paulo Quintela, se fazem o favor, directinha do alemão, rugosa, áspera, genial...) comecei a ganhar este cursivo que agora tenho e que é gabado por conhecidas e amigas. Ou melhor é gabado pelas amigas que me conhecem e que entendem, misericordiosamente, afagar-me o maltratado ego.
Lá me perdi! Estão a ver? Comecei a discorrer sobre a minha ineficiente escrita, atribuí-a à minha desconformidade com o mundo, que atribuí, por sua vez ao facto de ser canhoto e por aí fora.
Claro que, a talho de foice, também poderia acusar a rapariga que está à minha frente, ligeiramente à direita diante de um marmanjolas novo mas careca, bem feito!, feio como uma sexta-feira da paixão, mal embiocado numa vestimenta de mau gosto. E ela a jovem que bem que está! Que bem que é! Se eu fosse um grosseirão como o finado Camilo José Cela, diria que a rapariga era “boa de ver e melhor de apalpar”. Mas não sou, pelo que farão o favor de ignorar o que o Cela diz aí por cima.
A rapariga que está aí à minha frente, apareceu há umas semanas. Como só a vejo em dias úteis presumo que trabalhe em algum dos escritórios aqui do bairro. Será estagiária em algum dos advogados da zona? É que se veste com um cuidado muito clássico e tem a pose de uma menina bem comportada. Dava para estagiária... É bonitinha: um rosto muito sereno, bonitos olhos, cabelo liso e apanhado com fingida despreocupação, enfim não está mal, nada mal.
É claro que daí alguém perguntará porque é que um gajo já tão entrado em anos se mete nestas contemplações. Porque não, reponta o dito cujo. Aliás “a boi velho erva tenra” como dizia o meu inolvidável pai que acrescentava “olhar não tira bocado”. Sempre desconfiei que isto era dito com uma certa tristeza, mas os mortos não têm defeitos. E já agora os vivos, este vivo, mansamente voyeur, também não. Pior seria se me pusesse a admirar os marmanjolas... Meu Deus, o que fui dizer! Esta pode parecer homofóbica... se é que o não é mesmo. Se é, paciência, nasci assim, fui assim educado, já não mudo, nem sequer me apetece mudar.
Deixemos, porém, a jovem ali da frente, sossegada a ouvir o rapaz careca (bem feito! ) mas jovem como ela (grande sacana!) e se calhar simpático e bem disposto. Se calhar, há muitos, muitos anos, um gajo com a idade que agora tenho, olhou para mim a fazer-me ao piso de uma rapariga igualmente boa de ver etc..., e achou que eu tinha ar de parvo. Se calhar tinha, mas quem estava em jogo era eu e não ele, o grande invejoso!...
Já me perdi outra vez, onde é que eu ia, mãe de Jesus, que cabeça a minha, ah já sei, a solidão do escrevente num mundo que lhe parece incompreensível.
Convenhamos: o mundo é sempre incompreensível. Excepto para os cinzentões sem imaginação. Esses fazem ginástica sueca, respeitam os poderes constituídos e a igreja oficial e dão ao demo as inquietações. Provavelmente não são canhotos.
na gravura: Mondrian, uma admiração que já dura há mais de cinquenta anos
2 comentários:
Como não sou dame, mas, por outro lado, me coloco facilmente no lugar do narrador, desta breve incursão no território equívoco do flirt, comento com a reserva devida:
O segredo da boa escrita pode ser esse, ou seja, o modo automático de lançar palavras ao éter.
Neste pequeno escrito, perpassam sensações bem descritas e contidas no tempo de um momento.
Há uns anos atrás, muitos anos, li nas Selecções do Reader´s Digest ( que devorava com gosto, principalmente os livros condensados), para aí 1970 ou 71 ( não fui confirmar porque a revista está ali atrás), um pequeno texto parecido e de uma elegância rara.
Até o coloquei para aí num blog.
O caso passava-se no metro novairoquino ou bostoniano ou para
aí. Um entrado a meio da idade, reparou numa morena que se equilibrava num belíssimo palmo de cara ( o desenho não engana) e fazia de conta que não reparavam nela. Toda a gente sabe, como é, nestes casos, que certas mulheres seguras da sua beleza, fazem...bem, durante a viagem, entrou uma loira, ainda mais atraente e apelativa e postou-se a dois passos daquela, numa atitude de desafio impossível, mas latente.
E...então, o que fez o nosso entrado maduro? Continuou a olhar, discretamente e com enlevo contido e púdico, admirando os traços do encanto moreno, sem prestar qualquer atenção curiosa, ao desafio loiro.
Dali a algumas paragens, saiu a morena que fazia de conta que em nada reparava e em voz baixa e fugidia, disse apenas: obrigada!
Este pequeno texto para o bonheur des dames, lembra-me fatalmente, esse pequeno apontamento com dezenas de anos em cima.
Há coisas que são eternas...
Honni soit qui mal y pense.
bela história! Dava para um postal ou até mais.
Meu Caro José os textos que vou escrevendo para as Dames e seu eventual bonheur não estão proibidos aos Cavalheiros, longe de mim essa ideia tão andrógina (será assim que se diz? ).Um abraço
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