26 março 2008

Missanga a pataco 46


Experiência?

As leitoras gentis não negarão que até agora tenho sido tão silencioso quanto possível no que toca à corrida dos candidatos democratas nos Estados Unidos. Isto não quer dizer que não tenha a minha preferência mas tão só que entendi desinteressante a discussão dos méritos comparados de Hillary Clinton ou Barak Obama.
Melhor dizendo, tenho de há muito uma certa desconfiança do casal Clinton. Detestei, é o termo mais suave, a insistência de Clinton nos bombardeamentos ao Iraque. Acontece que boa parte deles foram perfeitamente injustificados e apenas ocorriam quando o escândalo Lewinsky voltava à cena. Nessas alturas era certo e sabido que lá vinha a ordem fatídica para largar mais umas bombas. E quando as bombas caíam havia sempre um par de vítimas “colaterais”, traduzindo: umas dezenas de mortos civis. Convenhamos que o para esconder os desvarios da braguilha presidencial há outros meios menos imorais.
Também não recordava nenhuma excepcional actividade da senhora Clinton nesse conturbado tempo, ou até depois, quando ela, já senadora, achou por bem apoiar a guerra de Bush (e, ao que parece, do senhor Pacheco Pereira, mas isso é com ele, coitado...).
De Obama recordava apenas um extraordinário discurso na convenção democrata que nomeou Al Gore. Já nessa altura se falava num possível candidato negro (enfim, mulato) às presidenciais próximas. Convenhamos que também não chegava, pese embora um percurso politico surpreendente, brilhante e remetendo para a velha tradição dos Stevenson, Eugene Mc Carthy, H Humphrey, isto é para os grandes mitos da esquerda democrata americana. Vivi os dois últimos, claro, e senti a derrota quase como um americano. Justamente por isso, por esse hábito perdedor, achei melhor cuidar-me e assobiar para o lado. Tinha a ideia de que ao apoiar Obama apoiaria uma vez mais um looser e isso, aos sessentas e tais, já não é ingenuidade, é vício.
Todavia comecei a interessar-me, a tentar perceber, a ir aos discursos, a surpreender-me com a intensa mobilização para as primárias.
Convenhamos que comecei a irritar-me contra alguns golpes baixos do ex presidente Clinton que obviamente pensava que lhe bastaria assobiar para juntar as tropas. Juntou notáveis, é um facto, e as grandes fortunas, mas ficou-se por aí e sobretudo, despertou no campo adversário uma actividade e um entusiasmo que já se não via desde os anos sessenta. Uma vez mais a elite intelectual americana e a as massas jovens mostraram o que se pode fazer com imaginação e entusiasmo. A começar pela recolha de fundos. Pequenas somas mas muitas pequenas somas! Só isso já dá uma ideia de como as primárias foram uma vez mais “democratizadas” pelos pequenos votantes, pelos anónimos, pela gente que está fora do aparelho. E o resultado está à vista. Obama tem o dobro dos Estados, vai à frente em delegados e só perde nos grandes Estados (Califórnia, N Iorque etc...). Com uma segunda mostra de elegância: não fez campanha nos Estados que, como a Florida, entenderam modificar (com que motivos e com que finalidades?) as datas das primárias. Pelo contrario, Hillary, mesmo sabendo disso, entendeu, contra as decisões da direcção do partido democrata, fazer campanha aí o que é, pelo menos, surpreendente, para não usar uma expressão mais forte.
Durante grande parte do debate foi posto em evidência a “experiência” de Hillary contra a inexperiência de Obama. Singular discurso! Sobretudo quando, repentinamente, os adeptos da primeira declaram que Obama seria um excelente vice-presidente! Obama precisaria de mais uns anos para amadurecer!...
O drama de Hillary resume-se num só: tem sessenta anos ou seja é a sua última oportunidade, dizia-me o Onésimo da Silveira. Talvez, mas John McCain tem setenta e cinco e ali está firme como candidato republicano. Será que os republicanos ligam menos à idade do que os democratas?
E agora regressemos à experiência, essa arma incessantemente brandida contra o “jovem” Obama. A senhora Clinton teria tido enormes e importantes conversas com tudo o que era líder mundial durante anos. Teria afrontado as balas malignas dos snipers sérvios numa visita às tropas americanas na ex-Jugoslávia.
Eu mesmo a vi, na televisão descrever, comovida mas determinada, essa gesta do desembarque, a corrida sob as balas, enfim, o desembarque possível na Normandia moderna.
Agora, cai fatal nas redacções um desmentido, ou melhor, uma correcção que aliás também vi: afinal tudo não passou de um lapso da memória. As balas terão sido noutra ocasião não especificada ou nem isso. De facto a senhora Clinton saiu calmamente do avião, acompanhada pela filha, passeou pela pista, recebeu flores de uma menina nativa que estava acompanhada por mais uns tantos civis e quanto a tiros estamos conversados.
Neste momento, à minha frente, um comentador pergunta-se se estas balas inexistentes não serão idênticas ás conversas importantes, aos contactos diplomáticos e a outras provas da experiência multifacetada da senadora por N Iorque.
Nestas discussões eleitorais as regras são poucas mas são draconianas. Os maus passos são punidos e a mentira é para os eleitores algo de insuportável. Nem tudo serve para vencer.
Ou: os fins não justificam os meios.

Na gravura: a Senhora Clinton desembarca na bósnia sob uma chuva de balas e recebe flores envenenadas de uma sniper juvenil...

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