17 maio 2008

Diário Político 84


Correu, no Público, uma forte discussão entre dois historiadores sobre massacres de judeus em Portugal. O do século XVI, a propósito do qual se inaugurou um recente monumento expiatório no Largo de S Domingos e o que eventualmente sucedeu durante a conquista de Lisboa aos mouros.
Não vou discutir se houve ou não este segundo (por data primeiro) massacre. É provável que, se havia judeus dentro de muros estes tenham sido massacrados, como de resto o foram muçulmanos e até cristãos que estavam no lugar errado no momento errado. A guerra nunca foi feita de forma civilizada, pelo menos no Ocidente. E no resto da rosa dos ventos também não me consta que fosse feita com luvas de renda.
O que me incomoda nesta discussão é o tom moralizador com que se analisa com os olhos do presente um passado de sangue e violência. Sobretudo se esse passado refere a escravatura (de negros de preferência) ou vítimas judias. A má consciência ocidental tem destas coisas. Adora o remorso mesmo que, como é o caso, não tenhamos qualquer culpa pelo que foi feito há quinhentos, mil, dois mil ou mais anos. Confesso que não me sinto minimamente responsável pela inquisição, pelo tráfico negreiro, ou pela pirataria portuguesa nas costas do Malabar. Se fosse egípcio também não me sentiria culpado pelos massacres ordenados por Ramsés II. E se fosse judeu não perderia o sono ao recordar como o povo de Israel conquistou a terra do leite e do mel.
No caso dos massacres de judeus, temos que, no que é seguro, houve uns milhares de vítimas que o zelo fanático de dois frades (dominicanos?) apontou à mão justiceira (?) da populaça cristã. O rei (D Manuel) estava longe, as autoridades municipais não tiveram mão na multidão enfurecida e as mortes dos judeus ocorreram certamente acompanhadas de roubos, violações e demais mimos próprios destas infâmias. Quando o rei regressou, houve devassas ordenadas por ele e castigos exemplares. Ou seja, o rei detentor do poder judicial não hesitou em defender a legalidade e fazer rolar cabeças. Com processos devidamente organizados como é timbre da justiça e da legalidade. Isto não ressuscitou as vítimas, nem reparou as infâmias mas poderá ter evitado, durante muitos e longos anos, outros pogroms. Se tivesse ocorrido o mesmo na Rússia, se os criminosos perseguidores tivessem sido perseguidos pelos juízes do czar talvez também se tivesse evitado a cultura do pogrom que nunca deixou de existir naquelas latitudes.
Teria gostado de ler no monumento uma palavrinha de apreço pela actuação civilizada de D Manuel. Não me repugna que a Igreja Católica reconheça que foi alguém dos seus quem atiçou o ódio vesgo e irracional da turbamulta. A Igreja tem uma especial maneira de lidar com o tempo e com as suas actuações. Como estou fora dela não discuto a virtude dessa postura.
O que me aborrece (no vero sentido da palavra) é alguém que me representa (por exemplo o Dr. Mário Soares há uns anos e na veste de Presidente da Republica) vir de metafórica corda ao pescoço (também metafórico) pedir perdão pelas ignomínias perpetradas por um grupo de aventesmas criminosas que eram portuguesas. Eu sei que fica bonito mas é ridículo. É que a nossa visão do mundo (a nossa Weltanschauungen – toma lá que já bebes) não é de modo algum a mesma dos antepassados. Aquilo que eles tinham por verdadeiro e essencial, p.ex. a fé, já não suscita cruzadas. Duvido que se o Senhor Arcebispo de Mitilene se pusesse aos urros a pedir gente para ir libertar Jerusalém dos judeus e dos muçulmanos tivesse dez criaturas aos saltos e de olhos ardentes a responder “Deus o quer!”. Provavelmente propunham-lhe uma viagem organizada pela agência Abreu com paragem em Petra e numa praia do mar Vermelho por complemento.
Dito isto convém esclarecer que o facto de me recusar a sentir-me responsável pelos latrocínios do tempo dos afonsinos não implica que ache que as matanças desse tempo eram boas e justas. A história não volta atrás nem deve ser uma espécie de julgamento moral feito no futuro. Aliás, a ser certo o que li, sobre a conquista de Lisboa, verifico que o historiador coevo não hesitou em condenar uma série de excessos dos cristãos sobre a população vencida. Li descrições idênticas sobre outras conquistas (Alcácer do Sal ou Silves) e comovi-me com o modo como o narrador contava a saída de homens, mulheres e crianças vencidas. Notei, e julgo que não me enganei, uma verdadeira piedade nessas descrições fortes. Isto significa que, apesar de nesse tempo, os valores religiosos se imporem de tal modo que a morte do infiel era uma bênção ou quase, havia em não poucas pessoas humanidade suficiente para se apiedarem do “outro”.
Finalmente, da mesma discussão, julguei ver algo que igualmente me incomoda. Portugal não foi um bom lugar para os judeus sobretudo a partir do século XVI mas houve países bem piores. E mesmo nos que eram mais acolhedores para os judeus, Veneza, por exemplo, não deixou de se inventar ghettos (a palavra é veneziana) trajes especiais, horas de recolher, impostos especiais enfim um arsenal de medidas que hoje consideraríamos discriminatórias. E que mesmo lá, e nessa altura, também o eram.
Curiosamente se houve zonas onde os judeus portugueses foram recebidos e mais ou menos bem tratados foi no Magrebe e no império otomano. Ou seja em regiões de predomínio muçulmano. Isso não significa que hoje em dia essas mesmas regiões sejam saudáveis para os filhos de Israel. Como Israel também não parece ser o melhor dos mundos para um árabe, sunita, chiita ou de qualquer grupo minoritário.
Resumindo: faça-se a história mas deixe-se no tinteiro os moralismos fáceis. Vale?

D’Oliveira (lembrado de um outro do mesmo nome queimado em efígie em Lisboa. E dizia que nunca tivera tanto frio como nesse dia. Estava com as costas quentes e longe.)

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