14 maio 2008

Maio, maduro Maio 4


Os filhos de D Camilo
e os afilhados de Peppone


1. No caso de por aí haver ainda leitores de Giovanni Guareschi, autor dos famosos “D. Camilo” onde se retratava uma Itália do Norte no imediato doppo guerra, convém esclarecer que o título é mesmo o que está aí em cima. D. Camilo o façanhudo mas bondoso arcipreste é que aqui se apresenta como pai relegando o ex-resistente comunista Peppone para o lugar de padrinho.
Isto vem a propósito do “Maio” italiano, dos seus intervenientes, do seu cenário (mais uma vez o Norte, boa parte do Centro e focos isolados no Sul) e, já agora, das classes sociais envolvidas.
Numa obra (“L’anno degli studenti”, De Donato ed., Bari, 1968) publicada a quente, em pleno processo, Rossana Rossanda (que nessa época ainda estava no C.C. do PCI embora em trânsito para o grupo Il Manifesto) disso dá conta quando, refere a brutal explosão demográfica na universidade: em 1968 há dez vezes mais estudantes do que em 1923. Em grosso, as universidades italianas (e a de Roma mais que todas) rebentam pelas costuras com o meio milhão de estudantes universitários que as frequentam. O mercado do trabalho começa a parecer reduzido perante a iminência de saída de cerca de oitenta mil novos diplomados por ano. Números não confirmados davam uma taxa de emprego na ordem dos 35% para os recém-licenciados.
O sistema político, por sua vez parece bloqueado. Uma sempiterna Democracia Cristã (a de Moro, exactamente) governa com eventuais apoios dos partidos de centro esquerda (sociais democratas de Saragat, sobretudo, mas também o velho PSI de Nenni). É o que fica conhecido por “compromisso histórico” O PCI, o mais poderoso e o mais original partido comunista da Europa Ocidental é claramente o segundo partido de Itália mas nem a sua ampla base social, a sua gigantesca máquina municipal e regional, a sua enorme influencia sindical, ou o prestigio dos seus intelectuais, o auxiliam na entrada no círculo do poder.
Contemporaneamente, ainda existem, e com singular influência, quer uma direita mais ou menos respeitosa, quer os neo-fascistas que por vários anos se distinguirão pela agressividade e pelos atentados que cometerão. Dir-se-á que são um grupo pequeno, ou uma constelação de pequeníssimos grupos. Pode ser, mas tentarão, e conseguirão por várias vezes, levar a cabo acções violentas e eficazes na medida em que alguma esquerda extra-parlamentar lhes responderá numa escalada que acabará nos longos “anos de chumbo”.
O bloqueio do sistema advém ainda da situação do Mezzogiorno e particularmente da Sicília. As máfias variadas que de Nápoles ao extremo sul pululam e a sua grande irmã siciliana controlam a base DC das regiões (e vão adquirindo crescente influência nas clientelas dos restantes partidos, PC excluído, honra lhe seja.
É neste cenário que numerosos grupos de estudantes, particularmente os de Trento, começam a manifestar-se. Ocupações, seat-in, cursos livres “universidade critica”, enfim mais ou menos as mesmas movimentações que se observam ou observarão nos restantes países europeus. Com uma diferença (e de peso), todavia: aqui a discussão política é mais nacional e recorre menos às lutas internacionais (Vietnam, anti-imperialismo, América Latina etc...).
Segunda diferença, e não menos importante: o Partido Comunista Italiano não vira costas ao movimento studentesco. Luigi Longo, o seu secretario geral recebe mesmo diversos elementos estudantis e reconhece ao movimento capacidade e razões para se incorporar numa frente ampla naturalmente dirigida pelos comunistas. É pouco? É de certeza muito mais do que em qualquer outro pais europeu. Mas dura pouco, obviamente. A ala mais ortodoxa do PCI (Giorgio Amendola, entre outros) critica o movimento estudantil, aponta-lhe as origens burguesas, o esquerdismo (a famosa doença infantil...) e a incapacidade política.
Convenhamos. Amendola não deixa de ter também razão. O movimento reúne tendências extremamente variadas, desde estalinistas empedernidos (mal vistos desde a época de Togliatti) até maoístas e trotskistas que também não cabem nos quadros “euro-comunistas” avant la lettre do PCI.
Em termos simples os estudantes apenas podem contar com o apoio de Rossanda e seus amigos. É pouco como depressa se verá.
Por outro lado, apesar do movimento não ter o beneplácito do único partido que poderia fornecer-lhe uma base operária real, não deixou de se projectar no mundo do trabalho. Não só porque havia jovens operários que se sentiam seduzidos pela militância dos jovens intelectuais mas também porque o mundo fabril acolhia muitos emigrantes do mezzogiorno menos politizados que os seus camaradas do Norte (e mais sensíveis à contestação da autoridade e dos poderes istalados) mas também porque as condições de trabalho eram extremamente duras.
Convém não esquecer que a Itália saíra de uma experiência muito dura. O regime mussoliniano, o fascismo puro e duro, quebrara o velho sindicalismo, perseguira as elites sindicais e reforçara o poder do patronato. A guerra com o seu cortejo de derrotas, sacrifícios e bombardeamentos, a guerra civil (e no norte foi exactamente isso o que ocorreu), travada entre resistentes, republicanos de Saló e ocupantes alemães, deixaram uma Itália devastada que nos anos sessenta ainda se estava a recompor.
E se é verdade que os ajustes de contas foram violentos não é menos verdade é que o golpe palaciano contra o Duce (que é deposto pelo Grande Conselho do Fascio) salvou muito colaborador da ditadura e forneceu um atestado de bom comportamento democrático a inumeráveis e respeitosos seguidores do regime deposto. A guerra fria e o governo da Democracia Cristã resolveram boa parte das questões políticas com a proclamação da República e o exílio do Rei. Também parece pouco. E é.
Não admira que num quadro destes onde se mistura uma DC desvirtuada, que aposta na “estratégia da tensão”, um centro esquerda que a ampara, um Estado dentro do Estado (a Máfia) um Sul reduzido à função de fornecedor de mão de obra barata, uma Administração corrupta e pesada e um PC impotente, a solução comece a ser procurada fora do sistema.
E é isso que um grupo de teóricos brilhantes se vai dedicar. A partir da experiência do “movimento” o passo seguinte traduz-se na criação de grupos políticos que se dedicarão à luta no meio fabril. Não pela via sindical mas recorrendo primeiro ás “acções exemplares”, ao combate contra os neo-fascistas particularmente activos e implicados em vários atentados bombistas (que obviamente começaram por ser assacados a anarquistas) e a acções de doutrinação. A Itália jovem e de esquerda é um labirinto de publicações teóricas, de jornais militantes, de revistas onde se encontra de tudo. Neste ponto estão a milhas dos franceses que os italianos devem achar bastante primitivos.
E até 1969 é este em linhas gerais o quadro em ue se insere a movimentação estudantil. A universidade é esporadicamente ocupada, as lutas com a polícia são frequentes, a discussão com os partidos políticos permanece aberta mas vai perdendo força e o Governo e as forças policiais continuam a apostar no esvaziamento do movimento, a tolerar a escalada dos grupos neo-fascistas e a sua cultura de violência ao mesmo tempo que se desenham cada vez mais nítidas as opções pela “strategia della tensione” (dentro da DC elabora-se a teoria de que é preciso incentivar os conflitos exteriores para depois se chamar a DC como bombeiro) apoiada na denúncia dos extremismos opostos (gli opposti estremisti): o perigo vermelho e o perigo negro que hão-de servir à polícia como indicadores de investigação (pista rossa e pista nera).
Numa segunda e última parte veremos (assim o espero) como é que um movimento tão espontâneo e interessante desagua nos anni di piombo com a sua caravana de atentados, cisões, assassínios e outras infâmias.

Na elaboração deste texto servi-me sobretudo de algo muito falaz: a memória de longas conversas, em Lisboa (1969), com Enrico de Angelis que me forneceu os primeiros documentos sobre o movimento; com Maria Baptisti, militante do Potere Operaio em Berlin, Novembro-Dezembro de 1970 e com Giancarlo (licenciado em Química mas porteiro de um hotel em Pescara. A sua militância num grupo insignificante – Stella Rossa – fora suficiente para entrar numa lista negra do patronato da indústria química.).
Obviamente repassei brevemente a obra de R Rossanda, já citada e o nº 44 de “Partisans” (Oct-Nov 1968:"le complot international", nomeadamente o texto “Théorie et Praxis du mouvement etudiant italian” de Carlo Donolo). Há um par de meses encontrei e voltei a perder alguns textos da época emanados das universidades de Turim, Trento, Roma e Milão. Se voltarem a reaparecer no labirinto desta biblioteca, pô-los-ei digitalizados para apreciação dos curiosos, mormente o leitor José.

* gravura: manifestação estudantil nas Galeria V. Emannuelle em Milão

3 comentários:

josé disse...

O leitor José anda sempre atento a estes escritos que deveriam sair do limite estreito do blog, para a luz das rotativas.

Ninguém por cá, falou da Itália, como sendo outro centro de agitação, em 1968. E contudo, foi esse o viveiro das Brigate Rosse.

Sobre Rossanda, ainda no outro dia, vinha um artigo no La Repubblica, dedicado a ela. Deitei fora o jornal, mas agora arrependo-me, porque iria consultar o assunto.

Tenho ideia que era qualquer coisa de prosaico e nada a ver com a postura lefty e esquinada da mesma, nos anos de brasa do ideologismo esquerdizante.

O nome, já era um programa: Rossana Rossanda.

M.C.R. disse...

A Itália foi viveiro de uma infinidade de coisas como espero contar na 2ª parte.

Rossana Rossanda foi (ou ainda é se está viva) uma brilhante intelectual e política. Basta ver que chegou cedo ao CC do PCI, um partido diferente mas de todo o modo um partido onde a lógica do aparelho e o preconceito machista também existiam. conheci-a em Lisboa numa conferencia organizada pelo GIS (Grupo de Intervenção Socialista) onde pontificavam Sampaio, Cravinho, Mestre, Brederode et alia logo depois de sairem do MES. Estava casada com o K.S. Karol, um dos bons autores de história do mundo comunista. Rossanda foi uma das animadoras da publicação Il Manifesto (era aliás a directora) e uma das redactor(e)as de "Per il Comunismo" as famosas 200 teses 2per l'unità della sinistra revoluzionaria e la costruzione di una nuova forza politica". É, no meu modesto ponto de vista, uma das mais originais contribuições para a esquerda post Maio 68. em qualquer parte do mundo...

josé disse...

A Itália, tem uma história contemporânea, interessantíssima.

Desde o fim do fascismo que viveram e sentiram na pele, de modo diverso do nosso pseudo-fascismo, que se organizaram em partidos tradicionais: comunistas e social-democratas e ainda os extremados, à direita e à esquerda.

Nos anos setenta, viveram a aventura revolucionária, de tentarem mudar a sociedade por métodos violentos. Tanto da direita como da esquerda. Por cá, tivemos o ELP e as FP25. Por lá, o extremismo era mais violento e radical.
Tiveram outro fenómeno de peso que continua a mandar na sociedade: as organizações secretas, com destaque para a Mafia e N´Dranghetta e ainda a Camorra. Mas também a P2 e outros grupos ligados aos serviços secretos implantados pela DC, contra os comunistas que aliás, nunca foram estalinistas, como por cá.

Nos anos noventa, deitaram as bandeiras dos partidos tradicionais ao lixo, prenderam ou julgaram alguns dos seus dirigentes ( Craxi) e inventaram outros partidos, incluindo os dirigidos por antigos magistrados tornados populares pela coragem de enfrentar o sistema corrupto de décadas.
Viram que ainda assim a coisa não fuincinava bem e deitaram abaixo governos e legislaturas, passando a ser governados por comissões de gestão.

Há anos que andam nisso e escolheram agora Berlusconi e aliados à direita, por se sentirem desiludidos com as propostas herdadas da Rossanda.
AH! E para discutir estes assuntos, têm pelo menos duas revistas de grande circulação e peso intelectual indiscutível: Limes e Micromega.
E têm turismo, indústria e moda. E livrarias como não há noutros lados.