15 junho 2008

Au Bonheur des Dames 127


Metáfora de uma cidade e de um país

Uma explicação: há um par de anos o Porto foi uma espécie de capital cultural ou algo semelhante. Foi um presentinho que um governo (Guterres?) resolveu dar à cidade prometendo-lhe fundos, glória imortal, muita e boa cultura, turistas à pazada e muito dinheiro a ganhar.
Quando a esmola é muita o pobre desconfia, diz um ditado. Ou devia desconfiar. O Porto e a triste câmara que o geria não desconfiou (depois disso veio o senhor Rui Rio e foi bem feito) e atirou-se entusiasmado para a magna tarefa. Como de costume (já Lisboa tinha tido uma experiência decepcionante em termos de público com a Expo que prometia igualmente multidões inimagináveis a pontos de até fretar uns paquetes luxuosos para alojar quem não conseguisse hotel. O naufrágio foi o que se viu, como estarão lembrados), as multidões esperadas fizeram-se rogar e não apareceram. Em termos de público de fora da cidade e seus confins a coisa atingiu as raias duma modéstia decepcionante. Os grandes negócios ficaram por fazer e os lucros não se verificaram.
Das obras, entretanto, efectuadas uma espantou mais que todas (e foram várias as coisas que ainda hoje intrigam um cidadão mesmo benevolente e ingénuo): entre o mar e o parque da cidade, quase em pleno areal edificou-se um “edifício transparente”, uma coisa caríssima, encomendada a um desses arquitectos cinco estrelas. E qual era o programa dessa oitava maravilha do mundo? Pois desconhece-se. Era preciso arejar uns milhões e por isso fez-se uma coisa semi-oca com muito vidro para o lado do mar e para o parque cuja utilidade era, digamos por piedade, indeterminável.
E tanto foi, que o “edifício transparente”, pago com o dinheirinho dos cidadãos, andou de Herodes para Pilatos à espera que alguém lhe encontrasse um destino. O meu amigo K foi, ao que sei, a única pessoa que avançou um alvitre eventualmente rentável. Convocavam-se os cidadãos irados do Porto e seu termo que mediante uma prestação monetária variável alugariam martelos, maças, tanques de guerra, canhões enfim qualquer coisa que permitisse demolir e era-lhes dada licença para começar a destruir a obra de arte. Quem quisesse fotografar, pagava. Quem quisesse um diploma de pedreiro pagava e assim sucessivamente.
Porém, os termos radicais desta proposta que K insistia em considerar artística (chamava-lhe, mesmo “desinstalação”!!!...) não foram aceites, ou não chegaram aos ouvidos de Rui Rio. O resultado, triste resultado, foi perder uns largos anos a tentar arranjar alguém a quem impingir a obra de arte. Por duas ou três vezes os concursos ficaram desertos. Finalmente um samaritano apareceu. Se lhe fizessem um preço de amigo, ele tomava conta do elefante branco e dava-lhe destino. Ao que consta entregaram-lhe aquilo de mão beijada. Fizeram-se umas obras (numa obra de arte? Num cume da arquitectura contemporânea? Na maravilha das maravilhas? Nisso tudo!) e apareceram umas lojas, uns restaurantes e a casa encheu-se.
Aquilo, visto de fora, não prometia mas este cronista é como S.Tomé: ver para crer. E no sábado passado, arrisquei-me a percorrer os diferentes pisos do “edifício semi-transparente”. Se eu quisesse ser mesmo mau, teria apresentado uma queixa contra incertos. Quem entregou aquilo aos mercadores do templo? Então aquela peça cara, caríssima, está agora entregue a um comércio pouco menos indigente do que a feira dos treze, a meia dúzia de restaurantes manhosos e a mais duas ou três coisas do mesmo teor? Todavia, achei que não valia o incómodo. E que talvez os restaurantes não fossem assim tão fraquinhos. Sentei-me num e pedi a ementa. Em cinco minutos estava verificado que aquilo, um restaurante de cozinha estrangeira, tinha tanto a ver com o país que dizia representar como eu tinha com a Bósnia-herzegovina. Fechei a ementa (que precisava de substituição urgente por sebosa e em mau estado) e retirei-me. Da esplanada, do restaurante e da edificação transparente. Não tão transparente porque por dentro a limpeza também não parecia ser uma das preocupações principais de quem gere aquilo.

E marchei à procura de um restaurante italiano que tinha um nome pouco abonatório mas que prometia cozinha siciliana. Entrei um pouco admirado. Num espaço amplíssimo, agradabilíssimo, um pé direito que já não há, umas largas dúzias de mesas bem ataviadas, guardanapos de pano e tudo, vazias. Eu era o único comensal! O único, repito, para o caso de terem pensado que isto era uma figura de estilo.
Desconfiado (um restaurante vazio à uma e meia de um sábado sem sol) lá me resolvi a ler a lista. Eu tinha dito restaurante siciliano? Se disse, não desdigo, mas a Sicília, devia andar muito ocupada naquele dia porque brilhava pela ausência. Não tem mal, pensei, a Itália é como o porco, aproveita-se tudo.
E requisitei spaghetti de frutos do mar (prometia-se amêijoa, mexilhão, camarão e lulas). Pobre, quando a esmola é grande desconfia, já o disse. E mais uma vez se comprovou a sabedoria do rifoneiro luso.
O que me apareceu em dose generosa (há que dizê-lo) foi um prato de spaghetti mergulhado numa molhanga castanha clara onde navegavam uns camarões que retintamente mostravam vir dos congelados, algumas amêijoas e mexilhões nas suas cascas e uns nacos de lula que também tinham conhecido os frios polares. Atrevi-me a provar tanto mais que estava com fome. As leitorinhas gentis que me aturam sabem que eu não sendo um cozinheiro, sei cozinhar. Sou como as antigas criadas de servir que quando se lhes perguntava pela arte respondiam que sabiam fazer o trivial.
Só que o meu trivial naquele bonito restaurante atingiria as raias do fenomenal, do óptimo, face àquela desolada molhanga, á massa recozida e saída do ponto “al dente” pelo excesso de líquido. Líquido desnecessário, diga-se de passagem, tanto mais que, se tivesse sabor, aniquilaria os frágeis sabores dos mimosos frutos do mar. As lulas sabiam a nada, os camarões idem aspas e os bivalves tinham perdido o frágil gosto.
Estava explicado o mistério da minha intensa solidão refeiçoeira. Aquele restaurante era um cenário para um entremez de quinta categoria, com actores amadores e ignorantes. Salve-se todavia, o empregado de mesa, simpático e compassivo que ao ver o pouco que comi, se atreveu a perguntar a razão e a sugerir que eu respondesse a um inquérito da casa para melhorar o serviço. Avisei-o que não valia a pena o esforço. A ementa era demasiado grande mas á custa de pratos vulgares. As pizzas propostas só tinham a originalidade de meter umas picardias desnecessárias mas muito estilo pizza hut. Fora das pastas não havia um vero prato italiano e eles são muitos e bons. Para comer bife de pimenta não se vai a Itália que fica longe. E menos à Sicília cuja cozinha opulenta se descreve (tão bem) nos romances de Andrea Camilleri (leiam-no leitorinhas que é um notável escritor. E leiam também, os restantes sicilianos que a terra não é só mafiosos e luparas. Ainda agora trouxe da minha excursão romana uma senhora – Simonetta Agnello Hornby – que escreve que é um espanto). Portanto, o problema não era só de cozinha, era de programa e de alma. Aquele velho casarão tão bem aproveitado (ao contrario do “transparentinho”) era uma casca maravilhosa de pérola falsa.
De quando em quando, algum dos camaradas desta galera ou algum leitor, censura-me o facto de só referir o “negativo”, de não me babar gozosamente perante os progressos formidável da pátria valente e imortal. Talvez tenham razão, mas a mim, o patriotismo dá-me para reclamar. Vivo aqui há sessenta e seis anos, aqui me criei, aqui fiz pela vida, aqui tentei melhorar o que podia melhorar. Nunca desanimei, nunca me calei mesmo quando isso era difícil, para não dizer coisa pior. Tenho, mais do que o direito, o dever de continuar a reclamar. A terra é sáfara, metade areia e metade montanha, o clima é doce, as gentes amáveis, cordatas e, uma vez emigradas, trabalham como mouros ou como galegos. O que é que nos falta para “nos cumprirmos como nação”?
Estas duas frustrações ilustram bem o modo de estar portuense (desculpem lá amigos e vizinhos mas é mesmo assim.). Reclamam de Lisboa mil coisas, querem tgv para Vigo, para ganhar dez minutos no caminho e fazer o frete aos do lado de lá que não choram. Querem o perfume do poder sem o cheiro das estrebarias. Querem ser Barcelona sem perceber que os catalães se fizeram a eles próprios e são repugnantemente realistas.
E ilustram o modo de estar português: construir castelos na Índia, em Marrocos (gloriosa estupidez!), naufragar ao peso da canela, usar o ouro dos brasis para ganhar um patriarca e um convento gigantesco onde os percevejos caçam soldados e o fantasma duma inexistente Blimunda faz chorar as pedrinhas da calçada. Portugal, que não é o Sião, é o verdadeiro país do elefante branco. O de pedra, o inútil, o caro e o ridículo. Assim não vamos lá, manas e manos. Não vamos lá!

1 comentário:

JSC disse...

Portugal é isso mesmo, caro MCR, “é o verdadeiro país do elefante branco”. Gastam-se milhões e milhões para ter umas pizzarias ou restaurantes aligeirados assim-assim. Mas não é que o povo gosta dessas coisas. O povo não utiliza o TGV, mas quer o TGV. O povo pouco visitará o Centro Cultural de Belém, mas fica embasbacado com a dimensão volumétrica da coisa. O povo pouco utilizará o novo aeroporto, mas acha bem o aeroporto. E em matéria de auto-estradas? Já viu como o país está a ser retalhado? Mas enquanto cada Município não tiver uma auto-estrada este investimento vai continuar. Depois, seguir-se-ão as freguesias. Portugal é, historicamente, mesmo assim: investe onde o dinheiro público chega mais depressa ao bolso dos interessados, não investe onde poderia gerar mais valor. É o país da táctica e do curto prazo.