11 junho 2008

Diário Político 86

Declaração de interesses
Conheço João Benard da Costa desde há muitos anos mas as nossas relações são mínimas. Por junto leio de vez em quando os seus artigos no Público, infelizmente sem grande constância porquanto são normalmente excelentes. Aliás ganhou há dias o prémio João Carreira Bom de crónica o que deve querer dizer alguma coisa.

Como dirigente da Cinemateca Portuguesa, o mínimo que se pode dizer é que não desmerece dos dois anteriores a quem se deve uma obra exemplar. Benárd conseguiu ser um digno sucessor e de tal modo o terá sido que quando fez setenta anos, houve um enorme coro nacional a pedir que por uma vez o Governo o mantivesse contrariando assim a regra da passagem á reforma por limite de idade. Ou seja, o pais cinéfilo e mais geralmente o pais culto, demonstraram sem ambiguidade o quanto prezam JBC.

Espanta-me por isso ler no Público um desabrido ataque ao director da Cinemateca assinado por quem durante dois anos foi seu superior. Refiro á Drª Isabel Pires de Lima, ex-ministra da Cultura cujo desempenho à frente do Ministério não queria, por mera piedade, comentar.
A ex-ministra, ora no seu papel de deputada veio defender um projecto extraordinário proveniente de um auto-intitulado Circuito Universitário de Cineclubismo do Porto que reivindica um centro de programação da cinemateca no Porto.
Comecemos por isto que é simples e devia ser sabido: Normalmente, com raríssimas excepções, apenas há uma cinemateca por país. E há apenas um organismo porquanto uma cinemateca não é exactamente um armazém de filmes mas algo mais. É igualmente um complexo laboratorial que os trata, restaura, conserve e protege; um centro de documentação; uma biblioteca e um museu. É também um centro de exibição em condições especialíssimas e um centro de intercâmbio internacional de filmes.
Por estas razões, e por muitas outras que uma simples consulta aos Estatutos da Cinemateca permite saber, é que normalmente só há uma cinemateca por país.
Aliás, no já referido intercâmbio de filmes existe normalmente, creio mesmo que sempre, uma cláusula de exibição unicamente em cinemateca. E compreende-se: o estado dos suportes exige um tratamento altamente profissional que, neste momento, não seria possível ter em qualquer sala do Porto (ou em qualquer sala de Lisboa, cinemateca exceptuada).
Portanto quando o Director da Cinemateca Portuguesa, de seu nome João Bénard da Costa, vem dizer que não pode dar mais do que apoio moral aos subscritores de uma petição de um Circuito Universitário de Cineclubismo do Porto que reclama mais exibição cinematográfica no Porto de obras anteriores a 90 , está a dizer algo que qualquer contínuo do Ministério da Cultura sabe.
A drª Isabel Pires de Lima que foi, ministra da cultura até ser despedida há um par de meses, veio alvoroçada e como “deputada” do círculo do Porto (vê-se que as eleições parlamentares já não estão longe) atacar JBC e defender algo que nunca a vi defender enquanto foi ministra. Alguém, por aí, viu alguma declaração, algum compromisso, alguma promessa, sobre um eventual pólo de programação da cinemateca no Porto, durante os anos em que Sª Exª se esforçou no ministério que detinha a tutela da cinemateca “propriedade pessoal” de Bénard? É com alguma tristeza que vejo esta senhora (que quanto ao Porto deixou cair a direcção do IPPAR na guerra com Rio... deixando o Museu Soares dos Reis encolhido junto ao túnel de Ceuta) que perdeu todas as guerras em que irreflectidamente se meteu e saiu sem glória da Ajuda) a vir agora falar sanhudamente do “autismo” de Bénard (Público, como se disse, sexta-feira, 6 de Junho, p. 51) num artigo de opinião que nem sequer um Santana Lopes assinaria.
Mas há mais: a ex-ministra resolveu falar sobre o público numeroso que há 40 e 30 anos havia no Porto. E que até alimentou dois cineclubes. É verdade que o Cineclube do Porto chegou a ter quase 3000 sócios. E que no Porto havia uma boa dúzia de grandes salas que se mantinham sem grandes problemas.
Não menos verdade é que, excepção feita, à “Cinema Novo” e ao seu “Fantasporto”, a exibição portuense está de rastos, os cineclubes vegetam e que tal facto vem de longe. Precisamente desde meados de oitenta, altura em que começou (e ainda não parou) uma quebra de público e de cineclubistas acompanhada por um afunilamento na exibição (hoje em dia não se vê praticamente outro cinema que não seja o americano) e pelo fim das grandes salas.
Paralelamente, assistiu-se à explosão do vídeo e agora dos novos suportes de tal modo que qualquer pequeno grupo que queira conhecer os clássicos pode recorrer à distribuição onde, apesar de tudo, se encontram à vontade umas larguíssimas centenas de filmes. E se for necessário sair do mercado nacional: qualquer Amazon fornece a preços quase de saldo milhares de fitas desde Griffith até Fellini, de Renoir até Dreyer. Aqui neste blog (cfr. “Farmácia de Serviço) já se deu notícia de várias belíssimas edições de filmes. E se disto falo, é apenas porque, na sua ignorância, a ex-ministra da cultura fala em cópias de filmes novos suportes a ser fornecidos pela cinemateca em colaboração com as mais diversas instituições. Não é preciso: basta ir ao mercado que uma filmoteca de qualidade organiza-se em menos de um mês e por pouco dinheiro. Olhe, só nestes últimos tempos, o Publico (como antes outros jornais) está a disponibilizar uma trintena de filmes sob a égide dos “cahiers du cinema”.
Eu não sei que mal terá o João Bénard feito à drª Pires de Lima. Será que ela não gosta do seu artigo semanal e brilhante no Público? O homem fala de coisas interessantes, mostra cultura e inteligência, duas coisas que eventualmente agastarão a senhora ex-ministra. Mas, que diabo, basta, passar à frente e não os ler, coisa que eu teria feito com o texto dela não fora o caso de em letras garrafais ter visto uma menção ao “autismo” do João e à presumivel “coragem (que falta a todos mas não a esta novel padeira de Aljubarrota) de dizer que o rei vai nu” (sic).
A drª Pires de Lima, fala já em fim de artigo na “Casa das Artes”. Para quem não saiba trata-se de uma dependência da antiga Delegação Regional de Cultura do Norte, que um triste Lopes atirou para o mato. A drª Pires de Lima foi ministra durante dois anos: que fez por este espaço, em obras, dizem, que dinamização propôs, onde estão os despachos, os estudos, os documentos, que é que aquelas casas (pois há também a casa-mãe que parece que esteve alugada não sei a quem) beneficiaram do seu esplendoroso biénio no Ministério? A nudez forte do abandono teve porventura algum fantasmático e fantasioso paninho a tapá-la?
Estamos habituados a ver este país entregue a ferrabrazes que na oposição juram fazer mil coisas. Quando por milagre injusto chegam à mesa do orçamento esvaziam-se-lhes os ímpetos e a vontade. Regressam à feliz inocência de onde nunca deveriam ter saído e zás! Ei-los que, como o sapo boi, incham a barriga e imitam o dó de peito. Mete dó!

Em nota de rodapé: A Cinemateca e a Delegação Regional do Norte programaram no Auditório Nacional Carlos Alberto, por várias vezes, ciclos de grandes cineastas em v.o. O resultado foi catastrófico: o tal público que enche a imaginação desmemoriada da drª Pires de Lima brilhou pela ausência. Se bem recordo, houve um ciclo dedicado a Murnau que teve uma média de seis espectadores. Por acaso estava lá, bem como o Henrique Costa e a Manuela Bacelar o que significa que juntos já significávamos 50% do numeroso público...
Mas continuemos: a Cinemateca Portuguesa tem um orçamento ridiculo e vive no fio da navalha. Onde é que deve JBC cortar para satisfazer o apetite saudável da juventude universitária e cineclubista do Porto?
Eu sei que alguém me viria dizer que circulou uma petição na Internet e que essa petição obteve um impressionante número de assinaturas. Assinar é a coisa mais fácil do mundo e permite passar por culto sem pagar um cêntimo. Espanta-me que esses assinantes, e há pouco estive com dois (envergonhados...), não se decidam a tornar-se sócios do que resta em matéria cineclubista. A resposta destes meus dois amigos foi que não estavam para essa chatice. Como não estão para a mesma chatice os inexistentes espectadores que abandonam dia após dia a única distribuidora que ainda trazia filmes diferentes a uma sala do Porto. Daqui a pouco, restarão nas salas pipoqueiras dos centros comerciais apenas as distribuidoras do mainstream cinematográfico americano. Onde andam os buliçosos rapazes e raparigas (ou vice-versa) do tal circuito universitário?
Mas se à juventude se perdoam estas grandiloquências reivindicativas quanto mais não seja por falta de informação, o mesmo não pode ocorrer com quem, apesar de tudo, teve responsabilidade no sector cultural. Dá a ideia que, uma vez fora do MC, a Dra Pires de Lima resolveu ajustar contas antigas ou actuais e que para o efeito arranjou um bode expiatório na pessoa de Benard da Costa que, convenhamos, nisto de cultura, e não só, poderia dar lições magistrais à senhora deputada pelo círculo do Porto.
É por estas e por outras que sou a favor dos círculos uninominais na eleição de deputados: a gente pode não voltar e com isso libertar o parlamento de algumas inutilidades.

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