efeméride
Foi o blog do João Tunes, um dos meus vícios diários, que o relembrou. Faz sessenta anos que Berlin foi bloqueada. Em poucas palavras o que ocorreu foi o seguinte: uma vez derrotados os nazis, a Alemanha foi dividida em quatro partes. O sector soviético ficava a leste e englobava a cidade de Berlin que, por sua vez, também estava dividida em quatro sectores.
O sector soviético ocupava também a zona leste da cidade e, curiosamente, a sua parte mais antiga e central (Mitte). Os três sectores ditos aliados não se distinguiam porquanto não havia quaisquer barreiras entre eles. As passagens para o sector soviético estavam relativamente guardadas mas em 1948 não existia nada que se assemelhasse ao sinistro Muro que depois se construiu. De todo o modo, o clima dentro da antiga capital do Reich milenário, que só durara escassos onze anos, era de cortar à faca. Por razões óbvias, e apesar das privações por que todos passavam, aqui ou no resto da Europa, os sectores “aliados” exerciam uma forte atracção e eram os preferidos da população. A guerra fria só ajudava a tornar mais forte esse sentimento e terá sido essa uma das razões por que Stalin entendeu proibir o trânsito terrestre entre a Alemanha Ocidental e Berlin. Com essa medida estrangulava economicamente a cidade e sobretudo cortava-lhe drasticamente os víveres e o carvão, essencial para o aquecimento durante o longo, frio e seco Inverno berlinense.
Todavia, os ocidentais, melhor dizendo os americanos (que eram quem tinha meios aéreos, combustível e logística) criaram uma ponte aérea que ainda hoje é um exemplo de organização e eficácia. Em Berlin quase que aterrava um avião a cada minuto. Aviões que traziam comida, vestuário, combustíveis, brinquedos para os meninos berlinenses (e isso foi um dos pontos importantes do programa) enfim tudo o que era necessário para manter uma aparência de vida normal na cidade sitiada.
Convém aqui relembrar os habitantes da cidade que não só se portaram com uma enorme calma mas que também rapidamente criaram sistemas de entre-ajuda exemplares. Os berlinenses são gente bem humorada e expedita.
A situação durou praticamente um ano e terminou surpreendentemente com o recuo dos soviéticos. Foram restabelecidas as ligações ferroviárias e por estrada, nos três famosos eixos de acesso à cidade.
Anos mais tarde, o Muro reeditaria, de certo modo, esta tentativa de isolamento da cidade.
Foi já nesse contexto que vivi em Berlin durante dois meses, em 1970. Vivia, aliás, num Studentenheim, em Wedding a poucas dezenas de metros do muro.
O ambiente, obviamente menos carregado do que o de 48, era todavia especial. As pessoas sentiam-se numa ilha em que um muro sinistro e ameaçador fazia as vezes de mar. Havia fortes restricções ao trânsito dos berlinenses e mesmo os estrangeiros tinham de se sujeitar a pequenas humilhações (e longas demoras) para atravessar o check-point Charlie, perto da Friederichstrasse. Nós, alunos do Goethe Institut, tínhamos por hábito ir de quando em quando ao “outro lado” para comer (era mais barato, sobretudo se se conseguia contrabandear os marcos orientais comprados nos cafundós do Zoogarten à taxa de quatro por um, ou seja quatro vezes melhor do que a taxa oficial da DDR que trocava os marcos um por um. Claro que havia o risco de se ser caçado na passagem da fronteira onde não era raro revistar as pessoas de alto a baixo. E disse para comer porque em Berlin oriental não havia nada que se comprasse. Ou melhor, o que havia era de tão fraca qualidade e tão feio que nem o preço por mais barato que fosse era atractivo. E quando digo que havia coisas para comprar convém explicar que eram poucas. Berlin oriental era, para qualquer pessoa com dois dedinhos de testa uma prova provada do falhanço do sistema “socialista” (era assim que os do leste chamavam à tremenda e ineficaz bagunça que tinham criado e que, dizia-se, era, apesar de tudo, a menos má de todo o bloco oriental. Quando uma vez, já regressado, me perguntaram pelas lojas de Berlin oriental apenas pude murmurar que me pareciam piores e menos fornecidas do que as do Buarcos da minha infância. Ou seja, em 1970, os berlinenses, habitantes da capital da DDR, farol da paz e do “socialismo”, tinham menos produtos à sua disposição do que os pobres habitantes de um arrabalde piscatório da Figueira da Foz no imediato post-guerra.
Berlin oriental para um português habituado ao sufoco salazarista parecia um susto. Nem a ideologia conseguia suprimir aquela sensação de tristeza morna, de falta de tudo, inclusive de ar, aquele bafio que se respirava numa cidade cinzenta e ainda com visíveis sinais da guerra. Berlin oriental era deprimente. Era uma antecipada confissão de derrota, de falta de futuro, uma falácia que nem sequer a lembrança do odioso regime anterior desculpava. Nem os museus sumptuosos, o teatro da Weigel, a ópera e a música em geral conseguiam disfarçar o espectáculo acabrunhante duma imensa esperança perdida.
De certo modo, poderia pensar-se que Stalin tinha ganho a partida. Perdera o ocidente mas criara entre a sua distante capital e as fronteiras do inimigo, uma imensa zona morta, uma terra de ninguém em que nem sequer os fantasmas que a percorriam poderiam evocar o do “Manifesto”.
A resposta, mas quem a conheceria em 70?, seria dada quase duas décadas depois no dia em que um equívoco fez afluir aos postos fronteiriços do Muro uma imensa multidão que, de facto, o destruiu. Nem os alemães de leste estavam mortos, nem o Muro era eterno. E muito menos aquela temível corruptela de palavras antigas e justas (revolução, socialismo, liberdade) que diariamente e durante décadas foram cuidadosamente dessoradas por uma clique de funcionários para quem a palavra povo soava a algo de pernicioso.
* na gravura: um pedaço de "muro" nos seus primórdios
Foi o blog do João Tunes, um dos meus vícios diários, que o relembrou. Faz sessenta anos que Berlin foi bloqueada. Em poucas palavras o que ocorreu foi o seguinte: uma vez derrotados os nazis, a Alemanha foi dividida em quatro partes. O sector soviético ficava a leste e englobava a cidade de Berlin que, por sua vez, também estava dividida em quatro sectores.
O sector soviético ocupava também a zona leste da cidade e, curiosamente, a sua parte mais antiga e central (Mitte). Os três sectores ditos aliados não se distinguiam porquanto não havia quaisquer barreiras entre eles. As passagens para o sector soviético estavam relativamente guardadas mas em 1948 não existia nada que se assemelhasse ao sinistro Muro que depois se construiu. De todo o modo, o clima dentro da antiga capital do Reich milenário, que só durara escassos onze anos, era de cortar à faca. Por razões óbvias, e apesar das privações por que todos passavam, aqui ou no resto da Europa, os sectores “aliados” exerciam uma forte atracção e eram os preferidos da população. A guerra fria só ajudava a tornar mais forte esse sentimento e terá sido essa uma das razões por que Stalin entendeu proibir o trânsito terrestre entre a Alemanha Ocidental e Berlin. Com essa medida estrangulava economicamente a cidade e sobretudo cortava-lhe drasticamente os víveres e o carvão, essencial para o aquecimento durante o longo, frio e seco Inverno berlinense.
Todavia, os ocidentais, melhor dizendo os americanos (que eram quem tinha meios aéreos, combustível e logística) criaram uma ponte aérea que ainda hoje é um exemplo de organização e eficácia. Em Berlin quase que aterrava um avião a cada minuto. Aviões que traziam comida, vestuário, combustíveis, brinquedos para os meninos berlinenses (e isso foi um dos pontos importantes do programa) enfim tudo o que era necessário para manter uma aparência de vida normal na cidade sitiada.
Convém aqui relembrar os habitantes da cidade que não só se portaram com uma enorme calma mas que também rapidamente criaram sistemas de entre-ajuda exemplares. Os berlinenses são gente bem humorada e expedita.
A situação durou praticamente um ano e terminou surpreendentemente com o recuo dos soviéticos. Foram restabelecidas as ligações ferroviárias e por estrada, nos três famosos eixos de acesso à cidade.
Anos mais tarde, o Muro reeditaria, de certo modo, esta tentativa de isolamento da cidade.
Foi já nesse contexto que vivi em Berlin durante dois meses, em 1970. Vivia, aliás, num Studentenheim, em Wedding a poucas dezenas de metros do muro.
O ambiente, obviamente menos carregado do que o de 48, era todavia especial. As pessoas sentiam-se numa ilha em que um muro sinistro e ameaçador fazia as vezes de mar. Havia fortes restricções ao trânsito dos berlinenses e mesmo os estrangeiros tinham de se sujeitar a pequenas humilhações (e longas demoras) para atravessar o check-point Charlie, perto da Friederichstrasse. Nós, alunos do Goethe Institut, tínhamos por hábito ir de quando em quando ao “outro lado” para comer (era mais barato, sobretudo se se conseguia contrabandear os marcos orientais comprados nos cafundós do Zoogarten à taxa de quatro por um, ou seja quatro vezes melhor do que a taxa oficial da DDR que trocava os marcos um por um. Claro que havia o risco de se ser caçado na passagem da fronteira onde não era raro revistar as pessoas de alto a baixo. E disse para comer porque em Berlin oriental não havia nada que se comprasse. Ou melhor, o que havia era de tão fraca qualidade e tão feio que nem o preço por mais barato que fosse era atractivo. E quando digo que havia coisas para comprar convém explicar que eram poucas. Berlin oriental era, para qualquer pessoa com dois dedinhos de testa uma prova provada do falhanço do sistema “socialista” (era assim que os do leste chamavam à tremenda e ineficaz bagunça que tinham criado e que, dizia-se, era, apesar de tudo, a menos má de todo o bloco oriental. Quando uma vez, já regressado, me perguntaram pelas lojas de Berlin oriental apenas pude murmurar que me pareciam piores e menos fornecidas do que as do Buarcos da minha infância. Ou seja, em 1970, os berlinenses, habitantes da capital da DDR, farol da paz e do “socialismo”, tinham menos produtos à sua disposição do que os pobres habitantes de um arrabalde piscatório da Figueira da Foz no imediato post-guerra.
Berlin oriental para um português habituado ao sufoco salazarista parecia um susto. Nem a ideologia conseguia suprimir aquela sensação de tristeza morna, de falta de tudo, inclusive de ar, aquele bafio que se respirava numa cidade cinzenta e ainda com visíveis sinais da guerra. Berlin oriental era deprimente. Era uma antecipada confissão de derrota, de falta de futuro, uma falácia que nem sequer a lembrança do odioso regime anterior desculpava. Nem os museus sumptuosos, o teatro da Weigel, a ópera e a música em geral conseguiam disfarçar o espectáculo acabrunhante duma imensa esperança perdida.
De certo modo, poderia pensar-se que Stalin tinha ganho a partida. Perdera o ocidente mas criara entre a sua distante capital e as fronteiras do inimigo, uma imensa zona morta, uma terra de ninguém em que nem sequer os fantasmas que a percorriam poderiam evocar o do “Manifesto”.
A resposta, mas quem a conheceria em 70?, seria dada quase duas décadas depois no dia em que um equívoco fez afluir aos postos fronteiriços do Muro uma imensa multidão que, de facto, o destruiu. Nem os alemães de leste estavam mortos, nem o Muro era eterno. E muito menos aquela temível corruptela de palavras antigas e justas (revolução, socialismo, liberdade) que diariamente e durante décadas foram cuidadosamente dessoradas por uma clique de funcionários para quem a palavra povo soava a algo de pernicioso.
* na gravura: um pedaço de "muro" nos seus primórdios
13 comentários:
Passei a noite de S. João na companhia de um casal alemão. Às tantas ouviram-se umas bombinhas de S. João. Reacção imediata da Senhora alemã: “Ui, vêm aí os Russos!”
Tantos anos depois… o que ainda não vai nas profundezas…
"E a verdade é só uma, RADIO MOSCOVO NÃO FALA VERDADE".
Por essas e outras é que o nosso Botas se aguentava.
Ou seja, em 1970, os berlinenses, habitantes da capital da DDR, farol da paz e do “socialismo”, tinham menos produtos à sua disposição do que os pobres habitantes de um arrabalde piscatório da Figueira da Foz no imediato post-guerra.
Berlin oriental para um português habituado ao sufoco salazarista parecia um susto. Nem a ideologia conseguia suprimir aquela sensação de tristeza morna, de falta de tudo, inclusive de ar, aquele bafio que se respirava numa cidade cinzenta e ainda com visíveis sinais da guerra. Berlin oriental era deprimente. Era uma antecipada confissão de derrota, de falta de futuro, uma falácia que nem sequer a lembrança do odioso regime anterior desculpava.
Como é possível, depois dessa experiência, entrar no MES que prometia o mesmo, economicamente?
Mas como, santo Deus?!!
Caro José
Nem todos os muros são maus. Como nem todas as prisões políticas são más. O que devemos é seguir a sua linha justa de pensar e... relativizar.
Por exemplo, o muro que divide a Palestina é um muro bom. Por sua vez, Guantanamo é uma prisão própria de quem entende a civilização e a democracia como devem ser entendidas.
Ainda bem que o farol do socialismo se apagou. O que nos falta agora é saber qual o farol que nos ilumina.
Se falarmos só no de Berlim, porque é que só se tornou um muro mau, para certas pessoas, em 1989?
Pelos vistos, já em 1970, havia quem tivesse percebido que era mesmo um muro mau.
A minha pergunta, tem a ver com o fenómeno que conduziu muita gente de bem e inteligente e culta e com pensamento correcto no sentido da liberdade, a optar por partidos e movimentos que negavam necessariamente na sua base fundamental, essa mesma liberdade.
É só isso que me torna perplexo.
É um fenómeno tipo Gunther Grass, do lado oposto da ideologia.
Maior perplexidade ainda experimento quando vejo a defesa, ainda hoje, de partidos e ideias que negavam a liberdade- e continuam a negá-la, embora o disfarcem muito bem.
Sejamos claros: o PCP é um partido antidemocrata, tal como entendemos a democracia de tipo ocidental.
E outros partidos e movimentos de um certo espectro político defendiam ideias próximas às do PCP, em matéria de organização económica, ao negarem o capitalismo e ao defenderem a implantação da sociedade sem classes.
É isto.
Não entendo esta lógica.
1 radio moscovo dizia mais do que se sabia mas não contribuiu em nada para a cadeira de onde o botas caiu.
todavia: dizer que o muro era o que era (e hoje toda a gente está de acordo) não significava que não houvesse um muro à volta da liberdade em Portugal.
2 O leitor José tresleu o programa do MES que obviamente não prometia nada que se assemelhasse ao socialismo entre aspas da DDR
3 O muro da Palestina ainda é pior do que o muro de Berlin pela simples razão de que é feito em terra palestina e não israelita e porque revela além do medo a arrogancia de quem, como eventualmente o Irão tem uma bomba atómica debaixo do travesseiro e estará (eventualmente) disposto a usá-la.
Guantanamo é a negação de tudo inclusive da pobre liberdade que os carcereiros pensam ter. Guantánamo parece não ter presos mas algum vírus terrível que tem de ser isolado.
todavia, o Supremo Tribunal dos EUA parece estar a abrir brechas nesse raciocínio "buchesco" e criminoso de que Guantánamo é a prima essência.
Gunther Grass tinha sete anos quando Hitler chegou ao poder e dezassete quando em fins de 43 se ofereceu para defender a pátria em guerra e bombardeada. Tentar usar o exemplo de um rapazola educado pelas Juventudes hitlerianas num país onde o pensamento único era de longe o mais radical que se conheceu é ignorar a história e os mecanismos por onde ela se move. sobretudo se, como no caso Grass estivermos perante alguém que vem de uma família vulgar, eventualmente simpatizante do regime sem ligações a resisentes, sejam eles socialistas comunistas ou simples democratas.
quem viveu a ditadura e tentou lutar contra ela sem estar enfeudado a partidos sabe bem quão difícil era a sua luta e sabe ainda melhor como, recobrada a liberdade, lhe parecia possível refazer o mundo de outra maneira.
quem conheceu de perto muitos dos militantes do MES sabe bem que mal o movimento acabou o seu primeiro congresso e a sua viragem m-l, logo começaram as saísas de militantes. alguns saíram no mesmo dia. Outros tentaram organizar-se internamente e criar alternativas à nova direcção e ao novo quadro de referências. durou pouco esta segunda ilusão e, pela parte que me toca, saí depressa mas sozinho. E amargurado. quem quiser testemunhas disso leia "Os anos decisivos" de César Oliveira que fez o favor de destacar a minha saída.
finalmente: partidos anti-democratas há vários mesmo que digam o contrário. aliás bastaria ler as declarações de quem vai saindo deles (ou meramente pondo-se de lado...) para entender o que estou a dizer. não vale a pena atirar todos os tiros ao PC quando ele tem insuspeitos aliados do outro lado do espectro partidário. quanto ao aparelhismo convém dar uma volta pelo que se vai vendo nos restantes partidos para perceber que as raízes de um autoritarismo que , em momentos especiais,pode tornar-se tão temível quanto o do pc. Aliás, alguém ainda pensa que o PC quer refazer os anos de ouro do Komintern? quando esteve no Governo foi o que se viu: até greves abafou...
Gostaria, como autor do post, que se tivesse discutido aquilo que eu descrevia (e não era pouco) e não aspectos interessantes mas marginais e laterais. Mas isso provavelmente é assim mesmo neste género de diálogos por interposta blogo-esfera...
Centremo-nos então no programa do MES, nos anos de PREC.
Vou dar uma volta aos arquivos e volto já.
Antes, porém, só uma achega ao síndroma Gunther Grass:
Um alemão, crescido e educado durante o período nazi, fatalmente seria impregnado de certas ideias.
Associar-se ao regime e alistar-se, voluntariamente, nas Waffen SS, aí é que a coisa fia mais fino.
O paralelo então, é este:
Muitos combatentes do Estado Novo, acreditavam num regime de sinal contrário e com efeitos simétricos, com uma diferença de vulto: os efeitos, eram muito mais especiais e os instrumentos muito mais aprefeiçoados. Parece-me de evidência meridiana, apresentar este fenómeno como paradoxal de quem defende a liberdade, enfeudar-se a outra tirania, em nome e por causa dessa mesma liberdade.
Sobre o paralelo com Grass, refiro-me ao fenómeno dos compagnons de route do PCP,nos quas evidentemente incluo o MES.
A ideologia do MES, não era a social-democracia ocidental. Era, de base, o marxismo leninismo, com retoques aggiornatos, como os italianos souberam fazer com o PCI. E com os resultados que se conhecem. Logo, o caldo de cultura marxista, influenciou de tal modo a inteligentsia portuguesa que mesmo aqueles que rejeitavam o estalinismo ainda vigente no PCP de 1974, aceitavam a lógica da concentração de poder e organização económica que daí derivava.
Apenas discordavam de aspectos da barbárie que foi o estalinismo.
Podados estes e seguindo a via do PCI, estava tudo nos eixos.
"Enganarei-me"?
Vou aos arquivos.
Eu sei que o tema é o "Muro", mas a conversa já tergiversou.
Por isso, vou continuar noutro lado - Daloja.blogspot.com.
Por agora, fica este cheirinho a alecrim:
" O socialismo em Portugal, terá de ser obra dos próprios trabalhadores portugueses, ou então, não será socialismo. Com efeito, socialismo há só um: é aquele que se orienta para uma sociedade sem classes ( sem explorados nem oprimidos), onde a riqueza produzida é equitativamente distribuida pelos produtores e onde não existe lugar para qualquer forma de dominação, seja ela política, socio económica ou cultural."
Este pequeno texto, constitui parte de um documento intitulado " Para uma sociedade socialista em Portugal- Notas para uma discussão colectiva", da Comissão de Imprensa do MES, publicado na Flama, de 7 de Junho de 1974. Faz agora, 34 anos.
E depois continua assim, em grande:
" Torna-se evidente que esta sociedade sem classes terá de ser garantida na fase de transição pela dominação dos trabalhadores sobre a burguesia, isto é, pela ditadura do proletariado."
Se isto não é o marxismo leninismo mais puro e retinto, não sei que mais dizer.
Aliás, sobre isto nem é preciso dizer mais, depois de se acrescentar que nesta altura ( Junho 74, já faziam parte do Movimento da Esquerda Socialista, nomes como NUno Teotónio Pereira ( apresentado como "o cristão", César de Oliveira, precisamente, Ferro Rodrigues, apresentado já como "consultor sindical e ex-dirigente estudantil; Joaquim Mestre, José Manuel Galvão Teles, Carlos Prates, José Galamba, Rogério de Jesus, António Rosas e outros.
O MES, nessa altura embrionário, era um partido da esquerda mais esquerdista que podia haver.
Nem sombra de social-democracia, pelo que não vale a pena tentar definir o movimento por aquilo que nunca foi: democrático, como agora se entende esta palavra.
Quem era contra a burguesia, não podia aceitar a democracia burguesa, o que aliás me parece inteiramente lógico.
Sobre estas questões remeto o leitor José para as bases programáticas dos partidos entretanto aparecidos desde o CDS ao PPD sem sequer escamotear os mortos á nascença. E para o programa do PS.
era tudo a favor de uma sociedade igualitária e, no horizonte, sem classes
era tudo pelos trabalhadores e contra os patrões ou por um patronato açaimado e domesticado
era tudo o mais anti-burguês possível, como aliás muita direita pura e dura se intititula: anti-burguesa, anti-capitalista e anti-plutocrática como o Caetano da juventude.
parece que o leitor José acha que o Nuno Teotónio Pereira seria um ateu a fingir de papa hóstias e que o Ferro Rodrigues não era sindical. Pode ter a certeza que eram o que diziam (e adversários meus dentro do MES, já agora). Como o Jesus de que já não me lembrava e outros não referidos.
conviria quando se fala de partidos políticos com curta história ver mais além de manifestos programáticos. O MES teve um jornal e algumas publicações de textos avulsos: nele se podem ler os (fortes) limites ao manifesto. Todavia é verdade que no Congresso foi evidente o "regresso" ao marxismo-leninismo. E conviria, já agora, reler as críticas surgidas na altura ao MES. Radical? Sem dúvida! M-L? nunca, diziam os adversários desde o PC aos trotskistas e aos pró-chineses. Inspirado pelos italianos? Razoavelmente! E pelo A Gortz e pelo PSU francês e por mais meia dúzia de ideias que circulavam no tempo. E com ligações á esquerda desalinhada espanhola, alguma empatia com a LUAR e com a esquerda do PS (GAPS, por exemplo).
voltando ao estafado exemplo Grass. Grass ofereceu-se para a Marinha mas foi recusado porque na altura a Marinha era já imprestável E foi redireccionado para as tropas Waffen que na altura (e no caso dos miúdos mobilizados) apenas serviam de defesa de segunda linha sobretudo á volta das grandes cidades. Nada que se comparasse com as anteriores divisões. não é desculpa, mas aos 17 anos gostaria de ver quantos se recusaram, se é que algum se atreveu.
convem acrescentar que no fim da guerra quem não se oferecia era mobilizado à mesma. Pouco depois de Grass ter começado o serviço militar a idade deste foi baixada para os 16 anos, como é sabido. E os regimentos de enquadramento foram quase todos da waffen, claro. Já se desconfiava do Exército e sobretudo este estava nas frentes longínquas de batalha. aí não serviam miúdos sem preparação militar.
Caro M.C.R.:
Ainda não tive o tempo da recolha arquivística ( umas Flamas, uns Manifestos, uns Expressos e outras coisas assim- nada de especial), mas para já, importa colocar uma questão que me parece a essencial e que se resume a uma palavra estrangeira, de ressonância helénica:
Pathos. Ambiente intelectual e social.
É sempre a isso que me refiro quando escrevo sobre estas coisas. O Pathos é um terreno fugidio e ainda por cima escorregadio. Não tem contemplações com a nostalgia, mas eu gosto de o recolocar no lugar de origem, sempre que o associo a um fenómeno.
Acho até que é assim que se faz História, para quem entende que historiar é repor o passado perante os olhos do presente o futuro, mas traçando-lhe o retrato exacto da época numa espécie de prognose póstuma.
Por isso é que se costuma dizer que a História so é possível de fazer com alguma objectividade, passados que sejam alguns anos sobre o Pathos do passado.
O problema é que alguns, misturam os Pathos e fica tudo uma confusão.
A memória atraiçoa-nos também e por isso, nada melhor do que mergulhar nos arquivos e retomar o fio condutor do tempo. Está lá, sempre.
Quanto ao Grass, é o mesmo problema: nunca saberemos o que passou naquelas mentalidades, ao saberem como era verdadeiramente o nazismo, mesmo sem o horror dos campos. Sabiam o suficiente e mesmo assim, deixaram-se enganar.
Exactamente como os comunistas e outros compagnons de route.
O idealismo é mesmo uma coisa perigosa, não acha?
A ideologia utópica ou, na vertente ainda mais perigosa da ideologia praticamente utopista, mas de ideias aparentemente realizáveis à vista, remete para a paixão, para a obnubilação dos sentidos e o descambo mental da razão.
Talvez seja esse o estado arrebatador de quem se deixou alguma vez enganar por proposições utópicas, mas de programa garantido, com amanhãs a cantar e a assobiar ao mesmo tempo.
E percebe que tal como os desapaixonados, se orientam por vezes, para os lados contrários ao objecto da paixão, também os que deixaram arrefecer os ânimos do amor passado, gostam de o lembrar com a nostalgia do "foi bonita a festa, pá!"
Dái à condescendência e á desvalorização das razões objectivas para um completo divórcio com essas ideologias, vai o pequeno passo que a manutenção da identidade pessoal, ajuda evidentemente a dar.
Compreendo, em muitos casos e é por isso que também condescendo.
Eu não penso que nos meus textos perpasse sequer qualquer condescendência mas isso é apenas a minha opinião. E quem lê, lê com outros olhos, com óculos, porventura e nisso já não posso ter mão. tenho tentado ser objectivo no que escrevo, não me aquece nem arrefece o meu passado excepto num ponto: dar a explicar as minhas razões naquele exacto tempo e não hoje. E ainda outro: defender nesse passado a honradez das posições, a coerencia entre a teoria e a prática (e daí valorizar muito o "à polícia e aos costumes diz-se nada")
Não achei a festa bonita e devo mesmo dizer-lhe, muito à puridade, que nunca fui de arrebatamentos ou entusiasmos: ia para as manifestações sempre convicto que aquilo de pouco valia e em troca corriam-se riscos sérios. Mas ia. Como já aqui terei dito, nunca fui de blasonar coragens parvas. eu, pela parte que me toca, tinha medo. Mas ia. Nunca achei a cadeia uma glória. Mas passei por lá muito contra vontade e lembro-me que nos primeiros dias reflectia nas circunstancias que mais uma vez me tinham levado ali e zangava-me comigo (e só comigo) porque descobria as burrices entretanto feitas que me tinham levado até ali.
quando chegou a minha vez de ser vencedor não prendi ninguém, bem pelo contrário, não persegui ninguém e nunca advoguei campos pequenos, médios ou grandes. aliás em 75, finda a ilusão do MES arrumei as botas e disse para comigo próprio que era altura de passar à peluda. 16 anos de luta política é mais do que a grande maioria e sobretudo é ainda mais quando é feita quase sempre como franco-atirador. Perdeu-se um deputado, como dizia o Zé Luis Nunes? ganhou-se um jogador de bridge, digo eu. Perdeu-se um vago secretário de estado? Portugal pela minha mão não ficou pior. Perdeu-se um chefe (ou 2 ou 3) de gabinete? Não diminuiu significativamente a oferta, pelos vistos. Perdeu-se um conviva á mesa do orçamento? nunca fui de grandes fomes e a vergonha tira-me o apetite.
Estive a reler cartas minhas de há 35/40 anos. fora a ingenuidade e a dose de auto-confiança próprias da mocidade ainda hoje subscreveria 70% (pelo menos) do que lá digo. É que o passado não é modificável, como sabe. eu arrasto este e confesso-lhe que não me custa muito. se isto é condescendencia, que seja mas confesso que me parece apenas apenas um olhar sereno sobre a minha juventud divino tesoro, para citar Dario. E sobre o "ar do tempo"...
O que se anda a perder é um escritor de crónicas do quotidiano atrasado, presente e futuro.
Um alter-Pacheco. O Assis, que não o outro.
Não um escritor de romances ou novelas, mas de crónicas. Como esta do Muro ou outras que por aqui aparecem.
Nesse papel, não há substituto. Em qualquer um dos outros, há milhentos.
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