Há dias em que as coisas nos parecem simples, luminosas e conseguidas. Como hoje. E digamos, desde já, que o dia, está mais para lá do que para cá. Há uma chuvisca impertinente, não chega sequer a ser molha-tolos, mas impede o escriba de gozar da sua esplanada favorita como gosta. E os habitués também não estão todos o que tira algum encanto a esta rotina do fim da manhã. Falta, sobretudo, o perdigueiro doido, freguês antigo e animoso que mendigava e conseguia sempre qualquer coisa dos clientes.
Todavia, não é desta manhã húmida que vinha falar mas apenas das primeiras críticas ( e elogiosas!) ao trabalho da Filipa César: “Le passeur”, instalação actualmente em exibição na “Ellipse Foundation” (cfr abaixo dois outros textos sobre o tema). Como disse, faço parte do filme juntamente com o Manuel Simas Santos, outro membro da tripulação do “incursões”. Mais do que isso, faço parte do “inner circle” familiar da Filipa. Sou amigo antigo, antiquíssimo, dos pais, os escultores Elsa César e Jaime Azinheira. Vi a Filipa (e os irmãos) crescer, acompanhei de longe a sua carreira, sou uma espécie de tio avô da Rosa L, a filhita nascida em Berlim a quem desde sempre associo o “Lied” “Röslein auf der Heiden”. Foram aliás essas as razões esdrúxulas que me fizeram aceitar ser filmado.
Sobre estas questões antigas, a batalha contra o salazarismo, o ter sido eventual “passador” de fronteira, durante os dois ou três últimos anos do famigerado Estado Novo, sempre pensei que o melhor era ser discreto. Já basta de tanta gentuça a pavonear-se por aí, pendurada num anti-fascismo as mais das vezes imaginado e silencioso. Os heróis do dia 26 de Abril sempre me pareceram mais rápidos do que o Lucky Luke, o cow-boy que disparava mais depressa do que a própria sombra.
Porém, a Filipa insistiu e insistiu. Em boa hora o fez, os deuses sejam louvados, que o resultado está aí para ser visto por quem se quiser dar ao trabalho de ir até à fundação já citada. E a merecer quase três páginas no “ípsilon”, suplemento cultural do “Público” de que já aqui disse algum mal (eu não entendo como é que num mesmo suplemento se junta tudo a trouxe-mouche, ornando a leitura penosa, complicada e sobretudo, porque o espaço é escasso, deixando muita coisa de fora. No entanto, desta vez há o milagre de duas criticas ocuparem o melhor de 3 páginas!...) que ao meu jornal favorito não perdoo nem uma gralha.
Confesso que me comovi ao ver o filminho (são 34 minutos, uma cagagésima parte do que nós quatro debitámos diante de uma camera atenta, sensível, encorajados pelo ar doce da Filipa e, no meu caso, pela frenética actividade de duas gatas novas para quem aquele estendal de fios era uma tentação absoluta): 2 ecrãs, num o rio corre alegre e inocente sem desconfiar dos dramas que se desenrolavam nas suas margens. Aquele riacho conheceu contrabandistas de café, refugiados da guerra de Espanha e dezenas de jovens portugueses que passavam a salto para fugirem à polícia, á guerra ou ás duas coisas ao mesmo tempo. No outro quatro pessoas de meia idade (uma mulher e três homens), contam tranquilamente a sua implicação cidadã e modesta na aventura de apoiar, proteger, transportar estes fugitivos desde o Minho até à Galiza. Ou, num contado caso, até Bilbau. A realizadora captou-lhes um “brilhozinho no olhar”, muita nostalgia, muita cumplicidade e – atrevo-me – alguma tranquilidade de quem cumpriu um dever de cidadania. Mas, eu estou lá dentro, não consigo ter distância. Se fosse apenas o facto de conhecer a autora, a dificuldade não seria grande. Exerci de crítico as vezes suficientes para não me deixar vencer por amizade, mas desta vez a coisa fiava mais fino. Muito mais fino. Felizmente, duas críticas, que não conheço de parte alguma, permitem-me romper o silêncio. E garanto-vos que isso me faz um bem danado. Estou feliz por mim, pelos meus amigos e, sobretudo, cela va sans dire, pela Filipa. E pela Rosinha, Röslein Röslein rot auf der Heiden...
Este texto vai para Cândida Laurinda Alves Simas Santos, “passadora” de fronteiras que hoje faz anos. Que os repita por muitos e bons.
Todavia, não é desta manhã húmida que vinha falar mas apenas das primeiras críticas ( e elogiosas!) ao trabalho da Filipa César: “Le passeur”, instalação actualmente em exibição na “Ellipse Foundation” (cfr abaixo dois outros textos sobre o tema). Como disse, faço parte do filme juntamente com o Manuel Simas Santos, outro membro da tripulação do “incursões”. Mais do que isso, faço parte do “inner circle” familiar da Filipa. Sou amigo antigo, antiquíssimo, dos pais, os escultores Elsa César e Jaime Azinheira. Vi a Filipa (e os irmãos) crescer, acompanhei de longe a sua carreira, sou uma espécie de tio avô da Rosa L, a filhita nascida em Berlim a quem desde sempre associo o “Lied” “Röslein auf der Heiden”. Foram aliás essas as razões esdrúxulas que me fizeram aceitar ser filmado.
Sobre estas questões antigas, a batalha contra o salazarismo, o ter sido eventual “passador” de fronteira, durante os dois ou três últimos anos do famigerado Estado Novo, sempre pensei que o melhor era ser discreto. Já basta de tanta gentuça a pavonear-se por aí, pendurada num anti-fascismo as mais das vezes imaginado e silencioso. Os heróis do dia 26 de Abril sempre me pareceram mais rápidos do que o Lucky Luke, o cow-boy que disparava mais depressa do que a própria sombra.
Porém, a Filipa insistiu e insistiu. Em boa hora o fez, os deuses sejam louvados, que o resultado está aí para ser visto por quem se quiser dar ao trabalho de ir até à fundação já citada. E a merecer quase três páginas no “ípsilon”, suplemento cultural do “Público” de que já aqui disse algum mal (eu não entendo como é que num mesmo suplemento se junta tudo a trouxe-mouche, ornando a leitura penosa, complicada e sobretudo, porque o espaço é escasso, deixando muita coisa de fora. No entanto, desta vez há o milagre de duas criticas ocuparem o melhor de 3 páginas!...) que ao meu jornal favorito não perdoo nem uma gralha.
Confesso que me comovi ao ver o filminho (são 34 minutos, uma cagagésima parte do que nós quatro debitámos diante de uma camera atenta, sensível, encorajados pelo ar doce da Filipa e, no meu caso, pela frenética actividade de duas gatas novas para quem aquele estendal de fios era uma tentação absoluta): 2 ecrãs, num o rio corre alegre e inocente sem desconfiar dos dramas que se desenrolavam nas suas margens. Aquele riacho conheceu contrabandistas de café, refugiados da guerra de Espanha e dezenas de jovens portugueses que passavam a salto para fugirem à polícia, á guerra ou ás duas coisas ao mesmo tempo. No outro quatro pessoas de meia idade (uma mulher e três homens), contam tranquilamente a sua implicação cidadã e modesta na aventura de apoiar, proteger, transportar estes fugitivos desde o Minho até à Galiza. Ou, num contado caso, até Bilbau. A realizadora captou-lhes um “brilhozinho no olhar”, muita nostalgia, muita cumplicidade e – atrevo-me – alguma tranquilidade de quem cumpriu um dever de cidadania. Mas, eu estou lá dentro, não consigo ter distância. Se fosse apenas o facto de conhecer a autora, a dificuldade não seria grande. Exerci de crítico as vezes suficientes para não me deixar vencer por amizade, mas desta vez a coisa fiava mais fino. Muito mais fino. Felizmente, duas críticas, que não conheço de parte alguma, permitem-me romper o silêncio. E garanto-vos que isso me faz um bem danado. Estou feliz por mim, pelos meus amigos e, sobretudo, cela va sans dire, pela Filipa. E pela Rosinha, Röslein Röslein rot auf der Heiden...
Este texto vai para Cândida Laurinda Alves Simas Santos, “passadora” de fronteiras que hoje faz anos. Que os repita por muitos e bons.
Na gravura: ilustração de Christine Künzel sob o poema de Goethe que, aliás, está musicado por Schubert. Bons padrinhos, Filipa, bons padrinhos...
2 comentários:
Saber olhar para a vida, é o principio para a compreender!!! Os meus Parabéns.
Pois Marcelo, temos que ver esse filme!
E já agora, parabéns por estar inserido nesse projecto e, sobretudo, por ter estado envolvido nos factos que lhe deram origem.
Um abraço
Guilhermina
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