16 julho 2008

Au Bonheur des Dames 132


La guerre est finie

Esta é uma história que alguns leitores julgarão inventada. Não é. É uma história verdadeira, uma história de dignidade e de honra. Uma história de heróis desconhecidos, felizmente vivos, uma história que me (nos) enche de orgulho. E é uma história simples, como as que desde há anos por aqui venho contando.

Há uma pequena casa de pasto em Matosinhos onde de há anos a esta parte como peixe. Um peixe fresquíssimo, a bom preço na companhia de amigos. De longe em longe, encontrava lá um velho amigo, o Pimentel, figueirense como eu, estudante em Coimbra nos idos de sessenta. Olá, como estás, duas rápidas a abater, e até à vista.
Até que, há um par de semanas comecei a vê-lo integrado num grupo, numeroso e bem disposto que, vim a saber, era constituído por ex-militares na Guiné.
Sou pouco dado a grupos festivos, sobretudo a grupos festivos militares. Há demasiada dor, demasiada injustiça, demasiado sangue, atrás disso. Todavia, estava lá o Pimentel e isso contava. E conta.
Hoje, o João Pimenta resolveu ir comigo ás sardinhas. Chegámos ao restaurante e lá estava o mesmo grupo, barulhento e bem disposto. Por fas ou por nefas, o Pimentel soube que o João também estivera na Guiné. Em dois minutos, o João estava adoptado pelo grupo que o obrigou a beber do vinho que traziam, um vinho de Santa Marta de Penaguião, uma “pomada” no dizer de alguém.
Subitamente, um dos convivas dispara: nós conhecemo-nos. Era para mim. Confessei que talvez nos conhecêssemos e começou a ladainha das tentativas. Nada. Tiros na água. Às tantas pergunta-me se eu tinha estado em Nampula. Afirmativo! No colégio-liceu Vasco da Gama? Afirmativo! E o nome. Quando me identifiquei, deu um salto. O meu pai fora professor dele. E jurava que me tinha “topado” desde o primeiro momento. Raio de memória! É que se passaram 52 anos entretanto!
O grupo de ex-combatentes começava a ser um grupo de antigos conhecidos. E se bem começou, melhor acabou. Conversa puxa conversa, vim a saber que aquele ruidoso e esdrúxulo bando de “rapazes do meu tempo” se reunia semanalmente. E que agora era uma espécie de ong. Ou seja, reuniam coisas úteis, máquinas, alimentos, livros, roupa e volta meia ia tudo para a Guiné. Ou melhor, as coisas iam num contentor de muitas toneladas e eles, aquele bando de pardais reformados, ala que se faz tarde: em carrinhas, camiões e até de mota ia tudo numa revoada via Marrocos, Mauritânia, Senegal e Gâmbia rumo à Guiné encontrar antigos inimigos, antigos soldados negros que tinham servido com eles para se verem, confraternizarem e fazerem a entrega de bens preciosos recolhidos com afinco, com sacrifício, com tenacidade, com alegria. E era uma festa.
Amigas leitoras e leitores amigos: juro-vos que fiquei emocionado. E invejoso. Desta amizade, desta solidariedade, desta simplicidade. Este grupo que junta ex-milicianos e ex- soldados profissionais, desde magalas a coronéis, esta gente que se trata toda obrigatoriamente por tu, são a honra de uma tropa e de um país. Fizeram a guerra, viram morrer camaradas, mataram, perderam oportunidades e anos de vida, passaram privações e medos, sobreviveram com um par de cicatrizes no corpo ou na alma. E agora, tantos anos depois, ei-los que se empenham em ajudar a terra onde terão passado o pior da sua juventude. Com os adversários de ontem, com a esperança de hoje.
O Pimentel contava-nos estas história e já propunha ao João, voluntário no Banco Alimentar ajuda e troca de informações e experiências. A guerra dele e dos seus companheiros é agora outra: contra a fome, a escassez de tudo, pela vida. A guerra deles é agora a paz de todos.
Fiquei a pensar que este punhado de homens, todos à roda dos sessenta, fazem mais pelo nome de Portugal no mundo, ou pelo menos naquela recôndita parte de África, que dez governos pomposos e cem discursos idem.
E tendo no grupo, pelo menos dois antigos colegas de liceu, confesso que me sinto orgulhoso. De ser desta geração, dos nossos longínquos anos de juventude, da Figueira e de Nampula, deste modo de ser português.
A guerra, dizia-se no belíssimo filme que dá título a esta croniqueta, acabou. E o mundo começa de novo. Eventualmente melhor.

la guerre est finieAlain Resnais, argumento de Jorge Semprun. Com Yves Montand e Ingrid Thulin. 1966

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