Como quem vende botões a retalho
Há almas pequeninas que nasceram para a chatinagem e para estar atrás de um balcão a vender inutilidades. Bijutaria de feira, por exemplo, quando não lhes dá para o contrabando de marcas: ó menina compre-me esta camisola com crocodilo que está barata!
Não costumo frequentar este comércio de enganos e pequenez. Também é verdade que parece que a minha falta não lhes causa qualquer mossa. Raras vezes, quase nem me lembro de alguma, me solicitam para estas negociatas.
Mesmo naquilo que é a minha paixão (e perdição), a livralhada, sou pouco de feiras-do-livro e embustes semelhantes. Para ter 10% servem-me as livrarias que frequento, mormente a “Leitura” de que sou freguês depois de cinquenta anos.
Volta e meia, ao comprar mais um livro, penso no que sucederá à minha biblioteca, reunida com carinho, gosto e sacrifício. Há muito que tenho o projecto de entabular conversações com a Biblioteca Municipal Fernandes Tomás, onde entrei aos oito ou nove anos pela mão da Tia Néné e onde li centenas de livros, desde os Vernes (os que não tinha) até aos Salgaris, os Burroughs, os Twain enfim tudo o que o bibliotecário Sr Santos entendia que podia ler. Eu mesmo percorria as infindáveis vielas entre estantes, alvoroçado como um pardal em Maio, à procura de um livro. Nada mais natural do que devolver, se possível com juros, à biblioteca o que de lá tirei em alegria em conhecimento.
Não imaginam quanto me custa entrar (como hoje) num alfarrabista e dar de caras, na mesa das novidades, com uma pilha de livros que parecem vir de uma mesma e única estante. De quem seriam? Quem os vendeu? Seguramente algum herdeiro apressado e cobiçoso que espalha por um par de tostões uma fortuna, muito amor e muitas horas de leitura, de sonho, de vida.
Por isso mesmo, estou decidido: amanhã mesmo vou falar com os da Biblioteca, dizer o que tenho e propor um legado sem encargos nem condições. Eles ficam com os livros, juntam-nos aos que lá há, e os leitores que descubram as velhas publicações surrealistas, a pacientemente juntada bibliografia sobre a Expansão, a poesia do último meio século, toda em primeiras edições, o teatro, a ficção, o Borges e tantos outros no seu original castelhano, os franceses ou os italianos. Ficaria contente, se alguém, um dia, descobrisse com os mesmos maravilhados olhos o meu Quijote ou os poemas de Ritsos ou Rilke. Ou os policiais de Chandler e Camileri...
Vem tudo isto a propósito de um estranhíssimo mail recebido que me anuncia uma venda garden-party lá para as bandas da linha dos Estoris e Cascais, da biblioteca do meu velho amigo E.
É que logo que ele morreu, eu soube que as pessoas mais chegadas, desde a filha à companheira, tinham resolvido cumprir a última das suas promessas, oferecendo à cidade de Famalicão a biblioteca dele. Era, ao que sei, uma velha promessa dele, do E., movido sei lá por que (boas) razões. Os livros, terá estipulado, vão para perto dos surrealistas que lá pairam. E para perto do Camilo, já agora. E assim se fez. A biblioteca local viu-se enriquecida com uma excelente escolha de livros, alguns acabados de chegar, ou chegados já E. estava enterrado e pagos pelas doadoras (enfim pelas representantes legítimas do verdadeiro doador).
Ora agora, aparece-me, casa adentro, sem eu sequer me poder opor, um convite para uma venda de livros do E. (vem lá o nome dele, raios!).
Primeira pergunta: ignorará quem vende (cujo nome não refiro para não me irritar e ter de lavar as mãos logo a seguir) as vontades do morto e enterrado E.?
Segunda pergunta: sendo certo que a criatura agora negociante de livros & similares, não me conhece de parte alguma, nunca me terá visto, até, como é que a minha humilde direcção, aqui na província, lhe chegou à pata avara e concupiscente?
Como é que se atreve?
É que isto, o convite, a venda, a negociata com ou sem garden, com ou sem venda, ofende-me. O simples facto de alguém pensar que eu iria, sôfrego, comprar livros (eventualmente interessantes que o E. era um tipo que sabia ler –assim tivesse o mesmo tino para as companhias femininas..., mas isso são outras fantasias ) que deveriam, se houvesse respeito ou, pelo menos, inteligência, estar com os irmãos nas estantes de Famalicão?
Eu era, já o escrevi, aqui e noutros sítios, amigo do E. Amigo há mais anos dos que me apetece lembrar. Dias antes da sua morte, esteve aqui mesmo em casa, a conversar durante um par de horas, cheio de projectos. Bem nos rimos, então. Ele farejou com ares de perdigueiro entendido o cafarnaúm da minha livralhada espalhada por salas e quartos, sopesou uns tantos, invejou outros e discutiu a utilidade de algum.
Agora que está morto e apodrece nobremente, alguém vem de mansinho e à socapa vender livros que dele seriam, pelo menos é o que se alega, espalhar aos quatro ventos, o que terá sido ajuntado com amor, alguma fantasia e seguramente muita inteligência.
Que lhe aproveite! E lhe cause engulhos!
Obviamente a direcção da emitente deste mail foi cuidadosamente guardada no junk do correio. Assim, não corro o risco de ler as parvoejadas que decerto escreverá nem de ter de lavar o olho envelhecido e cansado de cada vez que um correio idêntico me entrar portas adentro sem sequer ter o cuidado (e a educação) de se anunciar. Como Camilo alguma vez disse, certeiramente: “a carta de V. foi directamente para o ventre da mãe terra pelo esófago da latrina!”. Como esta da vendinha.
* na gravura: mais uma da série "biblioteca procura casa onde caiba"
Não costumo frequentar este comércio de enganos e pequenez. Também é verdade que parece que a minha falta não lhes causa qualquer mossa. Raras vezes, quase nem me lembro de alguma, me solicitam para estas negociatas.
Mesmo naquilo que é a minha paixão (e perdição), a livralhada, sou pouco de feiras-do-livro e embustes semelhantes. Para ter 10% servem-me as livrarias que frequento, mormente a “Leitura” de que sou freguês depois de cinquenta anos.
Volta e meia, ao comprar mais um livro, penso no que sucederá à minha biblioteca, reunida com carinho, gosto e sacrifício. Há muito que tenho o projecto de entabular conversações com a Biblioteca Municipal Fernandes Tomás, onde entrei aos oito ou nove anos pela mão da Tia Néné e onde li centenas de livros, desde os Vernes (os que não tinha) até aos Salgaris, os Burroughs, os Twain enfim tudo o que o bibliotecário Sr Santos entendia que podia ler. Eu mesmo percorria as infindáveis vielas entre estantes, alvoroçado como um pardal em Maio, à procura de um livro. Nada mais natural do que devolver, se possível com juros, à biblioteca o que de lá tirei em alegria em conhecimento.
Não imaginam quanto me custa entrar (como hoje) num alfarrabista e dar de caras, na mesa das novidades, com uma pilha de livros que parecem vir de uma mesma e única estante. De quem seriam? Quem os vendeu? Seguramente algum herdeiro apressado e cobiçoso que espalha por um par de tostões uma fortuna, muito amor e muitas horas de leitura, de sonho, de vida.
Por isso mesmo, estou decidido: amanhã mesmo vou falar com os da Biblioteca, dizer o que tenho e propor um legado sem encargos nem condições. Eles ficam com os livros, juntam-nos aos que lá há, e os leitores que descubram as velhas publicações surrealistas, a pacientemente juntada bibliografia sobre a Expansão, a poesia do último meio século, toda em primeiras edições, o teatro, a ficção, o Borges e tantos outros no seu original castelhano, os franceses ou os italianos. Ficaria contente, se alguém, um dia, descobrisse com os mesmos maravilhados olhos o meu Quijote ou os poemas de Ritsos ou Rilke. Ou os policiais de Chandler e Camileri...
Vem tudo isto a propósito de um estranhíssimo mail recebido que me anuncia uma venda garden-party lá para as bandas da linha dos Estoris e Cascais, da biblioteca do meu velho amigo E.
É que logo que ele morreu, eu soube que as pessoas mais chegadas, desde a filha à companheira, tinham resolvido cumprir a última das suas promessas, oferecendo à cidade de Famalicão a biblioteca dele. Era, ao que sei, uma velha promessa dele, do E., movido sei lá por que (boas) razões. Os livros, terá estipulado, vão para perto dos surrealistas que lá pairam. E para perto do Camilo, já agora. E assim se fez. A biblioteca local viu-se enriquecida com uma excelente escolha de livros, alguns acabados de chegar, ou chegados já E. estava enterrado e pagos pelas doadoras (enfim pelas representantes legítimas do verdadeiro doador).
Ora agora, aparece-me, casa adentro, sem eu sequer me poder opor, um convite para uma venda de livros do E. (vem lá o nome dele, raios!).
Primeira pergunta: ignorará quem vende (cujo nome não refiro para não me irritar e ter de lavar as mãos logo a seguir) as vontades do morto e enterrado E.?
Segunda pergunta: sendo certo que a criatura agora negociante de livros & similares, não me conhece de parte alguma, nunca me terá visto, até, como é que a minha humilde direcção, aqui na província, lhe chegou à pata avara e concupiscente?
Como é que se atreve?
É que isto, o convite, a venda, a negociata com ou sem garden, com ou sem venda, ofende-me. O simples facto de alguém pensar que eu iria, sôfrego, comprar livros (eventualmente interessantes que o E. era um tipo que sabia ler –assim tivesse o mesmo tino para as companhias femininas..., mas isso são outras fantasias ) que deveriam, se houvesse respeito ou, pelo menos, inteligência, estar com os irmãos nas estantes de Famalicão?
Eu era, já o escrevi, aqui e noutros sítios, amigo do E. Amigo há mais anos dos que me apetece lembrar. Dias antes da sua morte, esteve aqui mesmo em casa, a conversar durante um par de horas, cheio de projectos. Bem nos rimos, então. Ele farejou com ares de perdigueiro entendido o cafarnaúm da minha livralhada espalhada por salas e quartos, sopesou uns tantos, invejou outros e discutiu a utilidade de algum.
Agora que está morto e apodrece nobremente, alguém vem de mansinho e à socapa vender livros que dele seriam, pelo menos é o que se alega, espalhar aos quatro ventos, o que terá sido ajuntado com amor, alguma fantasia e seguramente muita inteligência.
Que lhe aproveite! E lhe cause engulhos!
Obviamente a direcção da emitente deste mail foi cuidadosamente guardada no junk do correio. Assim, não corro o risco de ler as parvoejadas que decerto escreverá nem de ter de lavar o olho envelhecido e cansado de cada vez que um correio idêntico me entrar portas adentro sem sequer ter o cuidado (e a educação) de se anunciar. Como Camilo alguma vez disse, certeiramente: “a carta de V. foi directamente para o ventre da mãe terra pelo esófago da latrina!”. Como esta da vendinha.
* na gravura: mais uma da série "biblioteca procura casa onde caiba"
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