16 agosto 2008

Au Bonheur des Dames 134


Há 40 anos, a vergonha

Não foi exactamente há quarenta anos porque a vergonha inominável ocorreu no dia 20 de Agosto de 1968 e ainda são apenas dezasseis. Acontece porém que nesse dia estarei em viagem de modo que obedecendo ao velho rifão que manda o viajeiro prevenir-se em terra deixo já este post pronto e entregue.
Aliás o dia 20 de Agosto de 1968 foi apenas e só o rebentar do abcesso.
Nesse exacto dia, tropas russas, polacas, húngaras e alemãs orientais entraram na Checoslováquia, país teoricamente independente e membro do mesmo bloco político-militar dos seus agressores. Era o culminar de uma série de pressões exercidas sobre o governo e a direcção do partido comunista checoslovaco para que a tímida liberalização introduzida na vida do país fosse liquidada. Desde meados de Julho que se sucediam as reuniões entre dirigentes soviéticos e checoslovacos, os primeiros exigindo purgas e o congelamento das medidas democratizantes, os segundos defendendo a sua parca autonomia com uma teimosa paciência se é que esta contraditória expressão pode ser usada.
Por cá, alguns de nós, oposicionistas conotados com a esquerda, seguíamos os acontecimentos apaixonadamente. Se a Checoslováquia ganhava a partida, dizíamos, o governo português (sempre pronto a ver comunistas em toda e qualquer reivindicação) perderia uns pontos pois provar-se-ia que era possível haver um “socialismo de rosto humano”.
Obviamente, e para contentamento dos apoiantes da Ditadura do Estado Novo, a invasão da Checoslováquia aconteceu. Quem não acredita no que aqui escrevo que vá ver as colecções de jornais da altura para poder verificar como, uma vez sem exemplo, explicita ou implicitamente Cunhal e Caetano estavam de acordo. Não era a primeira vez e não seria a última.
Tenho a convicção que os jornais não perderão este número redondo, quarenta anos, os jornais vivem disso, e têm comentadores encartados que não falarão nesta singular aliança nem no que isso significava de continuação da guerra fria por meios mornos, como foi a invasão com o seu pequeno cortejo de mortos, com a brutal crise no movimento comunista internacional, com uma fortíssima minoria de partidos a condenar a intervenção e afastar-se mais um pouco dos sátrapas do Kremlin. Os três mais importantes partidos ocidentais (italiano, francês e espanhol) criaram um bloco informal apelidado mais tarde de euro-comunista e a China aproveitou o ensejo para, criticando os checos, atacar virulentamente os russos por eles não saberem resolver as contradições no seio do(s) povo(s) progressista(s). Um mimo de velhacaria política e ideológica propagandeado por quem ia dizimando alegremente dezenas ou centenas de milhares de cidadãos na Grande Revolução Cultural que de revolução não tinha nada e de cultural ainda menos.
Convenhamos porém que em questão de velhacaria os chineses tiveram pelo menos um émulo, o partido comunista português que conseguiu ultrapassar tudo e todos colocando-se intransigentemente ao lado dos representantes do “sol na terra” como Cunhal gostava de chamar ao PCUS e ou à URSS.
O PCP conseguiu afugentar mais um par de militantes e de simpatizantes com a sua aceitação abjecta e total das razões dos soviéticos. Perdeu obviamente o grosso dos militantes que tinha na Checoslováquia ou na Suíça, para não falar das células francesas, belgas e argelinas. Datam daí algumas das mais conhecidas dissidências e, paralelamente o fortalecimento da alternativa socialista. Foi o PCP com a sua incurável ortodoxia, com o seu integrismo, com a sua incapacidade de perceber o mundo, que deu de mão beijada a “alternativa” a outras forças oposicionistas que ele conotava com a direita. Mas a cegueira ideológica de Cunhal foi mais longe: conseguiu que à sua esquerda se afirmassem e crescessem outros (pequenos) grupos conotados em maior ou menor medida com o maoísmo e o trotskismo que aproveitaram a ocasião para criticar o “servilismo” do PCP face aos “revisionistas” soviéticos.
Ou seja: a invasão desastrada de Praga permitiu que em Portugal milhares de oposicionistas de esquerda se autonomizassem do PCP. E, como se verificou, foram esses mesmos oposicionistas que estruturaram, depois do 25 de Abril, muita da mais eficaz resistência ao PC. Eram quem melhor o conhecia e quem melhor o contraditava usando os mesmos instrumentos e projectos de agitação que o PCP.
Voltando ao plano internacional, parece que está na moda dizer-se que a vitória soviética em Praga em 68 foi uma vitória pírrica. E a prova seria a queda do muro vinte anos depois. Não é verdade. Os soviéticos conseguiram isso sim, adiar o esfarelamento do império por mais vinte anos. De facto se a Checoslováquia tivesse conseguido manter a sua independência e as reformas é muito provável que a Hungria lhe tivesse seguido os passos. E não é de todo em todo improvável que a Polónia também começasse a mudar. Tudo isto é, obviamente, um exercício inútil de suposições que lembra a teoria do nariz de Cleópatra: se fora mais curto teria mudado a face do mundo. Se...
Claro que ao invadir a Checoslováquia, a URSS e os seus servis aliados, perderam muito do seu já escasso capital político na Europa. Mas, convenhamos que também já não era a Europa, o tabuleiro onde a URSS tinha peças para movimentar.
Dir-se-á, finalmente, que a URSS retirou credibilidade aos partidos comunistas ocidentais. É verdade, mesmo no caso italiano. Todavia também já não parecia crível que alguma vez um partido comunista ocidental chegasse ao poder. Nem sequer o italiano que esteve perto graças ao compromisso histórico. A morte de Aldo Moro mostrou que havia na Itália (desde as “Brigadas Vermelhas” até á direcção da Democracia Cristã) fortes resistências à integração dos comunistas no sistema de governação. Mas que os russos ajudaram não há dúvidas.
A invasão foi sobretudo uma tentativa desesperada de parar a história, de manter um sistema que dava de si. Quando um regime é incapaz de se auto-reformar, torna-se violento e agressivo. E foi isso que sucedeu.
Se o cronista fosse um moralista, o que não está provado, diria para rematar que a partir de 68, morreram demasiadas pessoas sem qualquer razão.
É verdade. Mas até lá, e com a mesma sem razão, tinham morrido muitas outras. Milhões! Nenhum sonho justifica um tal massacre.

Este texto vai em memória de Jorge Delgado, um resistente, um homem de honra, com quem partilhei a angústia dos dias de Verão de 68.
E de Flausino Torres, Marcela Torres e José Bento pelas mesmas razões e celebrando a mesma ausência
A ilustração: Praça Venceslau, Praga 1968

4 comentários:

josé disse...

Aprecio estes escritos. Mas o MES...em 1974-75,não se demarcava disto, pois não?

Ou serei eu que não passo de um chato, sempre a lembrar estas coisas?

M.C.R. disse...

Demarcava-se da URSS. E de que maneira! E do PCP como se pode ler nos jornais da época. Não os leu?
E, já agora, em 74/75 tinham passado sete anos... ou V. não dá conta das datas?
E aproveito para lhe recomendar no JN uma entrevista minha enquanto dirigente do MES. Se a não encontrar forneço-lhe fotocópia. Por aí poderá ver como pensava um "inimigo do partido" nas palavras de um dos seus principais dirigentes. É uma medalha que poucos terão.

josé disse...

Já uma vez transcrevi ( e prometi escrever noutro lado), passagens de interpretação autêntica ( dos dirigentes da época), do programa do MES. Tenho até os primeiros exemplares do Esquerda Socialista.

O palavreado, a semântica usada, as referências e os conceitos, são todos da extracção marxista-leninista mais pura.

O facto de o MES se demarcar da URSS, significa tão só que se demarcava também do PCP, o que não é de admirar porque senão nem espaço político-ideológico permaneceria, fora das propostas abrangentes do "partido dos trabalhadores".

Porém, os chamados intelectuais da esquerda, como eram os do MES, com figuras tão gradas como Jorge Sampaio e Ferro Rodrigues, acreditavam piamente, pelo fervor da militância, naquelas patranhas como eram a ditadura do proletariado, expressa no programa e aceite como necessária, embora de modo edulcurado.
E isso que diferença traria em relação à URSS?
Quase nenhuma, ou então, se quiser, a diferença que um líder como Estaline, fazia de um líder como Krutschov. Uma questão pessoal e de grupo, portanto. Ideologicamente, a farinha é do mesmíssimo saco.

O que me espanta, é mesmo ler esses princípios programáticos e ficar a imaginar como é que a sua aplicação prática, traduziria outra coisa que não o colectivismno, a orientação político-partidãria por um partido único, a necessária censura e a imprescindível repressão polític ( aos fascistas, naturalmente, então e3m grupo alargadíssimo). Logo, o totalitarismo, estava inscrito de raiz e na matriz do programa do MES.

Por muito que isso custe a aceitar e sem alternativa, porque esta, desvirtuaria os conceitos de Esquerda, tal como aí definidos e que não se distinguiriam dos conceitos do marxismo-leninismo teorizado na URSS.

Am i wrong?

josé disse...

Edulcorado. Detesto este género de erros.