23 setembro 2008

Estes dias que passam 125


O Outono será quente...

Eu ia falar-vos de livros: as editoras apressam-se a apresentar as novidades, depois duma seca estival apenas pontuada pela habitual (e triunfante) literatura light. Ia recomendar-vos uma obra prima japonesa “O dito do Genji”, de Murasaki Shikibu (preferentemente Murasaki-shibiku) dois sólidos volumes publicados pela Relógio de Água.
A obra, também conhecida por “Genji Monogatari” vem do século XI japonês, dos tempos da corte de Heian e tem tido crescente êxito na Europa. Eu, leitor me confesso, apenas conhecia uma versão pequenina, dois ou três capítulos numa edição estudiosa francesa dos anos sessenta. Fiquei fascinado mas de facto só agora é que há, cá e noutros países, europeus versões integrais da obra.
Devo, até, acrescentar que há mesmo uma edição francesa, (Dianne de Selliers ed.) em três volumes ricamente ilustrados por mais de 500 reproduções de pinturas japonesas, com comentários e tradução de René Sieffert. Um prodígio! Depois de uma edição por 500 euros saiu agora, outra num formato um pouco mais pequeno (e mais legível) com as mesmas reproduções e o mesmo aparelho critico por 150 euros. Não resisti e ainda não parei de me babar ao ver, devagar, devagarinho, as ilustrações.
Mas eu não vim aqui para falar de livros. Ou melhor: vinha, mas a realidade é mais forte ou mais brutal que a ficção e eis-me aterrado com as notícias da Finlândia: então não é que um energúmeno entra num liceu técnico e pimba, tiro à vontade sobre uns pobres diabos que cometiam o feio pecado de estar por ali à mão. Claro que a coisa, incompreensível, se compreende melhor se soubermos que, na Finlândia, 55% dos habitantes possui uma arma. E que a idade legal mínima para ter armas é aos 15 anos!!! Mas os finlandeses são parvos ou fazem-se? E isto não é uma novidade. Já no ano passado um outro sacana tinha feito o mesmo. Será que não se podem acusar os governantes de cumplicidade ou, pelo menos, de negligência culposa?
Mudemos de latitude. O ainda presidente Bush foi à ONU pregar a sua (dele) boa palavra. O homem nem quando fala para a história aprende. O discurso foi patético: condenou o eixo do mal, que ele ajudou a fabricar e a crescer com a sua desastrada guerra iraquiana, cominou o público a seguir-lhe os passos na contenção da crise, como se também nós europeus tivéssemos permitido, ajudado, propagandeado aquela imensa falcatrua dessa banca de negócios, dessas hipotecas miseráveis, dessa depredação que os neo-cons sempre acharam a respiração natural do mercado. Quem é medíocre, será sempre medíocre! Bush sai de cena mas ficam (lá e cá) os babados reconvertidos à excelência do liberalismo a outrance. Vai uma aposta que daqui a umas semanas voltarão ao mesmo e ao discurso sobre as potencialidades regeneradoras do mercado?
Mais perto de nós, a ETA voltou a matar. Três atentados, três. Para dizer que está viva? Para salvar o País Basco? Porque não sabe fazer mais nada?
A razão é outra. A ETA deixou há muito de ser uma organização política no sentido em que é a política que comanda. A política na ETA está subordinada à acção seja ela qual for. Não há estratégia e a táctica é o que se vê. A miragem da independência do País Basco é cada vez mais mirífica e menos consensual no seio da sociedade basca. Aliás, é mesmo provável que afrouxar a pressão dramática que os gangs juvenis exercem sobre o seu “entorno” (e afrouxará à medida que os quadros são identificados, presos, forçados á clandestinidade, à fuga e ao exílio, cada vez mais problemático e difícil) poderá eventualmente modificar os resultados eleitorais, quer no sentido de haver mais votos expressos quer no de haver mais votos discordantes. É mesmo provável que muitos dos opositores da ETA, forçados a sair do País Basco, possam regressar às suas cidades e aldeias, desenvolver actividade política, criar alternativas ao independentismo a-histórico professado pelos seguidores de Sabino Arana.
A política é o que é. E é sobretudo o que dela fazem. Mas é preferível haver política a não haver senão isto: a violência.
Todavia quando a política recorre demasiadas vezes à violência, mesmo que controlada, corre-se também o risco de confundir uma com a outra. Ou de como os ideólogos de Bush se aproximam perigosamente de outros ideólogos que pretendem combater : acaba tudo por se resumir a uma banal matança numa sala de aula num liceu longínquo na Finlândia.

* O Outono será quente, diziam, noutro tempo, noutro contexto, mas igualmente enganadas, outras pessoas. Foi-o. E seguiram-se anos de violência irracional, de desgosto, de chumbo e de sangue. Anda por aí um texto meu a falar disso mesmo.

**Ilustração da edição francesa do “Genji-monagatari”.

3 comentários:

JSC disse...

Caro MCR

O seu post toca vários assuntos e cada um deles dava pano para mangas. O que se reporta ao jovem finlandês, que qualifica de “energúmeno”, confesso que também me chocou aquela notícia, muito mais do que se a mesma tivesse acontecido na América, onde estas coisas já são mais ou menos triviais.

Aquele jovem pode ser “energúmeno”, mas também é ou foi uma vítima. Quantos jovens lá e cá não cresceram a matar na play station? Como sabe os jogos de maior sucesso são aqueles em que a figura principal tem de ser ágil a matar, a perseguir polícias, a roubar carros e outras coisas igualmente indignificantes.

Muitos dos jovens crescem num mundo virtual, que banaliza a vida e a morte.

Depois, aparecem uns hipócritas a perguntar “como é que isto foi possível?” Mandam condolências para os governos e fingem-se muitos prostrados. Claro que é possível.

Depois, temos aquelas manchetes como a do Público, de hoje, a mostrar o herói, a dar publicidade ao negativo, a mostrar a outros tresloucados ou habitantes da realidade virtual que também podem ter assegurado o seu momento de glória, mesmo que a título póstumo.

M.C.R. disse...

Muitos jogam na tal play qualquer coisa e não matam. É por isso que a criatura me parece energúmena, isto é possessa, possuída pelo demónio (definições do dicionário Houaiss).

O meu olhar disse...

O presidente Bush foi um dos grandes responsáveis pela quase inexistência de regulação sobre o sector financeiro. A primazia da área financeira sobre o poder político é evidente desde há muito tempo, mas no reinado do Bush ganhou o formato de escândalo e os resultados estão aí. Por acaso ouve-se falar para os lados da Casa Branca das razões que levaram a esse descalabro? Não ouvi. Só ouço ameaças de um futuro negro se dinheiros públicos da América não socorrerem o sector financeiro, através de uma Agência a gerir por privados e quase sem controlo público.
Se isto vingar tal como foi pensado pela presidência americana é caso para dizer: temos mais do mesmo.