Les sanglots longs...
Que é que as minhas escassas mas admiráveis leitoras dirão desta entrada tão “verlaine”? Não acredito que me votem às gemónias antigas por tão pouco. Sobretudo se eu lhes disser que estou a escrever na velha esplanada, num dia em que a temperatura baixou drasticamente o que aumenta o meu desconforto. Estou com um resfriado, é o menos que posso dizer, um desses resfriados que nos dá água pela barba, o nariz pinga, está imprestável para a respiração, o dia está escuro mas mesmo assim os olhos ardem.
Depois, tudo se conjuga para me sentir cercado pela melancolia (pela malinconia, para ser mais preciso que tenho notícias inesperadas de Itália, de Trieste mais exactamente, de uma Trieste que não tem nada a ver com Joyce, Svevo ou Magris, queridos e respeitados autores meus, mas apenas com Agnese, uma Agnese dálmata perdida nessa terra de fronteira que durante tanto tempo foi Trieste. Não voltei a Trieste depois de um ano mágico, nos primeiros setentas, ou seja já lá vão trinta e vários. Não vou agora narrar amores de um Verão, nada disso, todos os tiveram, todos os recordam, são amores de passagem, como o “primo amore (ah come è belo il prim’amore...) deixam uma cicatriz levíssima que se sente mais do que se vê. Agnese non c’é piú... mandam dizer-me com atraso de meses e mesmo assim grande milagre é esta má notícia chegar ao seu destinatário. Decididamente é o Outono. O perdigueiro doido que me vinha pedir meia sanduíche também non c’è piu.
Ora hoje, logo hoje, eu não vinha nada preparado para falar de mortes. A menos que quisesse falar das ilusões que se vão perdendo, apesar da idade que já levo. Leio os jornais e espanto-me. Como é possível uma cronista do Expresso vir em socorro de uma vereadora esperta da CML dizer que a mesma é vítima da habitual conspiração maligna dos media, tanto mais que a pobre vítima trabalhou em prol do povo português (sic) não só como enfermeira mas também como membro de um gabinete ministerial. E trabalhou quarenta e seis anos vejam lá. Quarenta e seis anos! E deixou a casinha logo que tomou posse como vereadora, prevenindo o presidente da Câmara. A cronista deveria ter mais sensatez e menos solidariedade e pensar neste pequeno pormenor. Ninguém pode ser impedido de tomar de arrendamento uma casa. Seja de um particular, de uma empresa, de uma Câmara. Mesmo se, neste último caso, for vereador da Câmara. As casas (todas as casas) estão (ou podem estar) no mercado do arrendamento pelo que não é por aí que o gato vai às filhozes. O que se critica à vereadora Ana Sara Brito é outra coisa: é o ter alugado uma casa por preços que não correspondem nem de perto nem de longe aos praticados pelo mercado. Ter alugado uma casa não como um qualquer quiddam mas apenas porque tinha uns amigalhaços que lhe faziam um desconto, a tratavam privilegiadamente em relação a todos quantos andam à procura e um apartamento. Tivesse a casa na rua do Salitre sido alugada pelo seu preço normal de mercado e a senhora vereadora poderia continuar comodamente instalada nela. Não haveria nada a dizer do contrato passado entre ela e CML. Mas a própria vereadora entendeu o contrario. Saiu da casa (após vinte anos de rendas irrisórias) porque percebeu que o contrato que a ligava à CML era um contrato que não suportava o menor escrutínio nem pareceria aceitável aos olhos de quem quer que fosse.
Saiu para, eventualmente, não ser apanhada numa falsa situação. Mas esqueceu-se desta vulgaridade: logo que o caso se tornou público, competia-lhe vir a terreiro antes que alguém a referisse como inquilina privilegiada. Não o fez ou só o fez quando já estava acossada e sem hipóteses. E aí ainda poderia ter saído não direi airosamente mas enfim, com alguma dignidade: demitindo-se. Não o fez. Usou argumentos deslavados, ridículos que não são sequer reforçados pela crónica ulterior em sua defesa. Que foi, aliás, um péssimo serviço: por bem fazer mal haver, ou lá o que é. Saiu o tiro pela culatra.
Tudo isto vai obviamente passar. Amanhã, já ninguém se lembrará disto. Ou quase ninguém. Mas o ferrete, esse, fica. E vai doer. Ou nem isso. Depende da espessura da pele da senhora vereadora e da sua capacidade de vergonha.
O Outono ronda, o frio e a chuva anunciaram-se. As bolsas de todo o mundo vão caindo apesar das medidas e das meias medidas que se anunciam. A crise está para durar. É tudo a favor dos nossos pecadilhos. Diante do jardim, ameaçado pela chuva, sem o perdigueiro doido que corria por todo o lado, o cronista “se souvient / des jours ancients/ et (...) pleure.
Et s’en va(...) /au vent mauvais/qui l’emporte.// Deçà, delà,/ pareil a la/ feuille morte.
* as citações são todas do poema de Verlaine, obviamente mesmo se se fizeam duas ligeirissimas alterações.
** a gravura pertence ao excelente trabalho de Nuno Campos já aqui mencionado.
Que é que as minhas escassas mas admiráveis leitoras dirão desta entrada tão “verlaine”? Não acredito que me votem às gemónias antigas por tão pouco. Sobretudo se eu lhes disser que estou a escrever na velha esplanada, num dia em que a temperatura baixou drasticamente o que aumenta o meu desconforto. Estou com um resfriado, é o menos que posso dizer, um desses resfriados que nos dá água pela barba, o nariz pinga, está imprestável para a respiração, o dia está escuro mas mesmo assim os olhos ardem.
Depois, tudo se conjuga para me sentir cercado pela melancolia (pela malinconia, para ser mais preciso que tenho notícias inesperadas de Itália, de Trieste mais exactamente, de uma Trieste que não tem nada a ver com Joyce, Svevo ou Magris, queridos e respeitados autores meus, mas apenas com Agnese, uma Agnese dálmata perdida nessa terra de fronteira que durante tanto tempo foi Trieste. Não voltei a Trieste depois de um ano mágico, nos primeiros setentas, ou seja já lá vão trinta e vários. Não vou agora narrar amores de um Verão, nada disso, todos os tiveram, todos os recordam, são amores de passagem, como o “primo amore (ah come è belo il prim’amore...) deixam uma cicatriz levíssima que se sente mais do que se vê. Agnese non c’é piú... mandam dizer-me com atraso de meses e mesmo assim grande milagre é esta má notícia chegar ao seu destinatário. Decididamente é o Outono. O perdigueiro doido que me vinha pedir meia sanduíche também non c’è piu.
Ora hoje, logo hoje, eu não vinha nada preparado para falar de mortes. A menos que quisesse falar das ilusões que se vão perdendo, apesar da idade que já levo. Leio os jornais e espanto-me. Como é possível uma cronista do Expresso vir em socorro de uma vereadora esperta da CML dizer que a mesma é vítima da habitual conspiração maligna dos media, tanto mais que a pobre vítima trabalhou em prol do povo português (sic) não só como enfermeira mas também como membro de um gabinete ministerial. E trabalhou quarenta e seis anos vejam lá. Quarenta e seis anos! E deixou a casinha logo que tomou posse como vereadora, prevenindo o presidente da Câmara. A cronista deveria ter mais sensatez e menos solidariedade e pensar neste pequeno pormenor. Ninguém pode ser impedido de tomar de arrendamento uma casa. Seja de um particular, de uma empresa, de uma Câmara. Mesmo se, neste último caso, for vereador da Câmara. As casas (todas as casas) estão (ou podem estar) no mercado do arrendamento pelo que não é por aí que o gato vai às filhozes. O que se critica à vereadora Ana Sara Brito é outra coisa: é o ter alugado uma casa por preços que não correspondem nem de perto nem de longe aos praticados pelo mercado. Ter alugado uma casa não como um qualquer quiddam mas apenas porque tinha uns amigalhaços que lhe faziam um desconto, a tratavam privilegiadamente em relação a todos quantos andam à procura e um apartamento. Tivesse a casa na rua do Salitre sido alugada pelo seu preço normal de mercado e a senhora vereadora poderia continuar comodamente instalada nela. Não haveria nada a dizer do contrato passado entre ela e CML. Mas a própria vereadora entendeu o contrario. Saiu da casa (após vinte anos de rendas irrisórias) porque percebeu que o contrato que a ligava à CML era um contrato que não suportava o menor escrutínio nem pareceria aceitável aos olhos de quem quer que fosse.
Saiu para, eventualmente, não ser apanhada numa falsa situação. Mas esqueceu-se desta vulgaridade: logo que o caso se tornou público, competia-lhe vir a terreiro antes que alguém a referisse como inquilina privilegiada. Não o fez ou só o fez quando já estava acossada e sem hipóteses. E aí ainda poderia ter saído não direi airosamente mas enfim, com alguma dignidade: demitindo-se. Não o fez. Usou argumentos deslavados, ridículos que não são sequer reforçados pela crónica ulterior em sua defesa. Que foi, aliás, um péssimo serviço: por bem fazer mal haver, ou lá o que é. Saiu o tiro pela culatra.
Tudo isto vai obviamente passar. Amanhã, já ninguém se lembrará disto. Ou quase ninguém. Mas o ferrete, esse, fica. E vai doer. Ou nem isso. Depende da espessura da pele da senhora vereadora e da sua capacidade de vergonha.
O Outono ronda, o frio e a chuva anunciaram-se. As bolsas de todo o mundo vão caindo apesar das medidas e das meias medidas que se anunciam. A crise está para durar. É tudo a favor dos nossos pecadilhos. Diante do jardim, ameaçado pela chuva, sem o perdigueiro doido que corria por todo o lado, o cronista “se souvient / des jours ancients/ et (...) pleure.
Et s’en va(...) /au vent mauvais/qui l’emporte.// Deçà, delà,/ pareil a la/ feuille morte.
* as citações são todas do poema de Verlaine, obviamente mesmo se se fizeam duas ligeirissimas alterações.
** a gravura pertence ao excelente trabalho de Nuno Campos já aqui mencionado.
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