18 novembro 2008

Au Bonheur des Dames 149


Os trabalhos e os dias

Ora aqui está um título do melhor que há. Um título baril, diria o Aranha, um título fiúza retorquiria o Joca Tripé, outro que a maligna levou. Mas foi de papo cheio, voltaria o Aranha, invejoso duma figa. O “Tripé” era assim chamado não porque usasse bengala, longe disso, era perfeito, ou quase que o nome apanhou-o no colégio (num dos muitos colégios que de má vontade me albergaram e que asinha, asinha, me deram carta de prego) onde se tornou notada uma característica física que deixava assombrados os colegas. Anos mais tarde emparceirava com o Beto “Tubo” e com um o Chip, outro revolucionário angolano que também já passou para o outro lado. Não lhe digo o nome porque isto aqui funciona assim: alcunhas e diminutivos que não estou a escrever para a Lux ou para outra cor de rosice qualquer.
Antes estivesse que era sinal que enchia a bolsa que aquilo parece que paga bem. A “jet” local compra e a gentinha adora (e compra também): parece que saber da vida das notabilidades televisivas e adjacências dá um prazer incomensurável.
Bem, voltando à vaca fria, isto é ao título, cumpre esclarecer quem de direito que foi usurpado a um cavalheiro grego já falecido (isto hoje parece um cemitério!) chamado Hesíodo. Por acaso, um homem de bom senso que deixou textos sensatos e conselhos óptimos:
convida para a tua festa quem te ama(...)
e (...) sobretudo quem mora perto de ti.
Se te acontecer alguma coisa na tua terra,
Os vizinhos acodem sem apertar o cinto, os parentes têm de o fazer. ...
(R
ecorri à grande senhora que se chama Maria Helena da Rocha Pereira, uma estudiosa de grande gabarito que fez o possível por vulgarizar os clássicos. A tradução é obviamente dela)
Mas, retornando ao texto, eu apenas pretendia contar esta última semana de insanas tarefas bibliotecárias. Acho que já contei que, num gesto generoso e moscovita, a CG cedeu-me uma belíssima sala onde montara o seu estaminé. Achou que a antiga sala de estudo da Ana era mais que suficiente para servir de escritório para ela (e, hipótese do Manel Simas, nosso companheiro bloguista: mais quentinha porque virada a poente...) e entregou-me espaço para pelo menos oitenta de estantes! Um regabofe!
Corri rápido, à IKEA por estantes e toca de as montar. Bom, isto de montar estantes da Ikea não tem muito que se lhe diga valha a verdade. Eles vendem lá coisas bem mais difíceis, por exemplo uma cama enorme que me fez praguejar como um carroceiro além de me ter pelo menos criado um par de hérnias que aquilo pesava que se fartava.
Uma vez montadas as estantes, começaram os verdadeiros trabalhos. É que uma nova zona para livros não exige apenas a trasfega deles, e Deus sabe quão pesados são (sobretudo se caem num pé mimoso e desprevenido), quanto pó trazem, para já não falar do embevecimento do reencontro com volumes que já não tocava há anos. Ora deixa cá ver: e era mais um quarto de hora a ler uma que outra passagem, a recordar essa imensa alegria da primeira leitura, algumas conversas que ela suscitara (e vieram à fala os fantasmas amáveis do Feijó, do Namorado, do Delgado e de tantos outros que me ajudaram e me fizeram ser o leitor ( e não só) que hoje sou.
Uma sala inteira para encher de livros permite reorganizar a nossa biblioteca, e isso significa mudar também as outras, reorganizar tudo ou quase. E foi assim que pela primeira vez se juntaram todos os livros de cinema, de música, de arte (excepto catálogos que continuam a ocupar a zona da lareira) os de tema africano (oito metros finalmente juntos), boa parte das revistas de cariz literário, os surrealistas e anexos (dois metros e meio!) os volumes de crónicas, os livros de viagens, os guias das cidades favoritas (mas não consegui tirar Paris do escritório nº 1 porque além de serem muitos são “especiais” (eu se pudesse vivia boa parte do ano lá, aliás ainda não desisti, é só ganhar um euro-milhões e, ala que se faz tarde, directo à Rue Medicis em frente do Luxemburgo (há-de haver um apartamento para alugar, que diabo) para poder ficar bem próximo das casas de Athos e d’Artagnan, das livrarias favoritas, de algum passado meu e de boa parte dos meus mitos.) e finalmente um punhado de livros curiosos, divertidos ou brejeiros: “La belle captive” de Magritte e Robbe-Grillet, o “Catalogue des objects introuvables” de Carelman ou a “Semioologie du parapluie” de Noguez. E a “Arte de ponerse la corbata” de Mr. Émile, Baron de l’Empesè, um fac-simil de uma edição de 1832.
Quando se monta mais uma sala de livros há que ter em linha de conta que convém haver uma mesa, uma cadeira e já agora um sofá cómodo para se ler. Toca pois de comprar um sofá (já agora sofá cama, para o que der e vier e sobretudo para os amigos que quiserem dormir entre livros) que a gata Kiki de Montparnasse imediatamente estreou e adoptou. Pela manhã enquanto o sol entra pela janela, ei-la que se estica nas costas do sofá.
Tudo isto durou dias, pesou toneladas, provocou montes de pó, e ainda não acabou. Falta pendurar os estores para o que já ando a fazer o cerco à CG pelo menos para ajudar senão a coisa sai mal. E torta, que eu conheço-me, olá se me conheço.
Em suma, ando como um cuco, é o que é. A minha primeira mulher dizia que o pai gostava de brincar às bibliotecas, tira daqui, põe ali, sobe este livro, muda aquela estante, enfim, o habitual. Pois eu também: sobretudo se isso me faz, como me fez reler muitas páginas ao acaso, como por exemplo algumas da “Hélade, antologia de cultura grega” que já referi.

(neste afã de encontrar livros descubro agora El guarda ropa del perfecto caballero, uma oportuna e amável oferta do Francisco Bélard em Março de 92! Há dezasseis anos, obrigadinho Chico, vou reler umas páginas e as leitoras que se amanhem. )


2 comentários:

O meu olhar disse...

Olá mcr, mas que trabalhadeira! Todavia consigo imaginar bem o prazer que está a ter com tão “árdua” tarefa. Só não consigo imagina-lo ás voltas com a montagem da estante. É que não consigo mesmo… :)

M.C.R. disse...

sou um cavalheiro surpreendente e com muitos ases na manga.
E depois não me atrevo, nesta idade, a pedir ajuda à CG ou socorro ao escultor marceneiro Manuel Sousa Pereira. vontade não me faltou, mas a vergonha foi maior...